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Julio Zamarrón

A caravana antifascista dos punks italianos em Donbass

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Ação direta da banda italiana Bassotti no leste europeu revive o compromisso da luta internacionalista que bandas como The Clash reivindicavam décadas atrás. Reportagem inédita conversou com integrantes da banda e habitantes na região, atualmente em disputa entre Rússia e Ucrânia, assolados pelos dez anos de bombardeios e a ameaça neonazista.

David Cacchione é uma figura ímpar que faz jus ao verdadeiro espírito punk. Integrante da lendária banda Bassotti, o italiano não se limitou a espalhar sua mensagem apenas aos renegados dos bairros operários de Roma. Para ele, fazer música revolucionária e anti-imperialista é um desafio que ultrapassa as fronteiras dos palcos e da cidade onde vive.

Com a Caravana Antifascista, Cacchione, que também trabalha na limpeza urbana da capital italiana, já possui um longo histórico de ações solidárias junto a povos oprimidos mundo afora. Eu o conheci em um contexto de brutalidade, onde o silenciamento se faz presente há pelo menos uma década. Nosso encontro aconteceu em Donetsk, região pró-russa localizada ao leste da Ucrânia. 

Em um cenário onde sobreviver é a regra, vi de perto a importância e o impacto do trabalho desenvolvido por David nas comunidades locais. O militante contou que a iniciativa em levar ajuda e assistência humanitária para aquelas pessoas começou em 2014, logo após os movimentos do “Euromaidan”, ao qual se seguiu uma perseguição das populações russófonas daquela região – e deu origem a uma longa guerra civil, que, na verdade, se intensificou em 2022. 

O contexto atual, portanto, se deu, após o Kremlin reconhecer as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk e entrar em conflito bélico contra a Ucrânia, apoiada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Sobre isso, criticou Cacchione:

A maioria dos italianos é contra a guerra. Enviar armas para Kiev é o que está acontecendo em muitos países. Mas, os governos são súditos dos EUA e continuam nos privando de escolas e saúde pública para gastarem o nosso dinheiro comprando armas para um narco-comediante (Volodymyr Zelensky)

Enquanto vejo uma foto de Chico Buarque pregada na parede da taberna, vou escutando algumas histórias da caravana. Entre elas a da primeira entrega de mantimentos, medicamentos e material escolar às populações massacradas pelo exército ucraniano. Debaixo de um lustre improvisado, folheei as páginas do livro Não passarão! – organizado por David e pelo fotojornalista espanhol Julio Zamarrón.

David segura um envelope com a Irina Mihailovna, diretora do Orfanato de Stakhanov. Ela recebeu recebeu David e a Caravana Antifascista na sede do Ministério da Educação e Ciência da República Popular de Lugansk. Fotos de Julio Zamarrón

Atravessando o Donbass

A cada imagem impactante, Julio comentava a respeito do quanto contar a história de resistência e solidariedade internacional nas cidades insurgentes do Donbass foi um marco em sua vida, tanto profissional quanto pessoal. A primeira viagem da saga antifascista, que contou com a presença de outros 33 brigadistas internacionalistas oriundos de várias localidades do mundo, começou logo após o massacre do dia 2 de maio de 2014 na Casa dos Sindicados, na cidade de Odessa. 

Esse trágico episódio foi a fagulha que faltava para reacender a chama neonazista que sempre esteve na região, mas se fortaleceu após o fim da União Soviética, em 1991, e com o avanço capitalista liderado pelas potências ocidentais. Outras bandas do underground italiano participaram da ação, como a NH3, RedSka, Radici Nel Cemento, 99 Posse e NAO. 

“Segundo ele, a Itália também faz parte do que chama de ‘a internacional da mentira’.”

Outros nomes importantes da cena punk/ska também se juntaram, incluindo os estadunidenses da Anti-Flag, os espanhois da Ska-P e os bascos da Berri Txarrak. Cacchione explicou que parte das arrecadações são feitas através da ajuda do próprio público, que contribui levando donativos aos shows que a banda produz ou participa, além da colaboração financeira que alguns camaradas de vários cantos do planeta fazem à caravana com certa frequência. 

“Acreditar que o mundo inteiro é a favor do ‘pensamento único’ é falso. Muitas pessoas estão cansadas das falácias contadas pela comunidade internacional e apoiam como podem essa luta contra o imperialismo”, disse. Apesar do notório trabalho realizado por ele e pelos integrantes da banda e da caravana, David lembra que jamais recebeu qualquer tipo de incentivo governamental e que nunca esperou por isso, já que, segundo ele, a Itália também faz parte do que chama de “a internacional da mentira”.

Explicou ainda que antes das eleições, Giorgia Meloni falava de soberania nacional e independência italiana. Hoje, de acordo com Cacchione, a primeira-ministra não passa de um fantoche nas mãos das decisões da confederação das indústrias, do congresso dos Estados Unidos, da ONU e da União Europeia. “O governo italiano é mais um tentáculo dessa aliança”, reforçou. 

Punks agem e a Caravana não para

Para compreeder melhor a grandeza das iniciativas de David Cacchione e da Caravana Antifascista, é importante conhecer um pouco da trajetória da Bassotti. Apesar do grupo de ska punk ter sido formado em 1987, a consciência de classe desse coletivo de trabalhadores de Roma se iniciou bem antes, em 1981. 

Foi em meio aos canteiros de obras da capital italiana que esses operários começaram a traçar as primeiras ações efetivas para mudar a realidade material das pessoas. Entre as tarefas desempenhadas, estava a construção de residências e escolas em territórios devastados por guerras. 

“Conhecemos bem o rosto sujo do imperialismo”, comentou David ao dividir comigo um pouco mais sobre as atividades que a caravana e a banda realizam em países que enfrentam os horrores dos embargos econômicos e do conflito armado. “Estivemos na Nicarágua, na Venezuela, na Colômbia, na Síria, na Palestina e em Cuba”, pontuou. 

“A cultura e a música são uma arma. E como sempre digo, das inúmeras armas, está a luta contra o fascismo. Cada um deve fazer a sua parte.”

Foi durante anos de um intenso trabalho de campo que esses proletários decidiram compartilhar não só ideais políticos e sociais, mas também seu amor em comum pela música. Sob a inspiração de nomes como The Specials e The Clash  – grupos que também carregam em suas obras um comprometimento com causas importantes – nasceu o Bassotti: uma verdadeira sinfonia internacionalista. 

Hoje, essa linha de frente sonora é formada por onze integrantes: Gianpaolo “Picchio” Picchiami, Fabio “Scopa” Santarelli, Michele Frontino, Enrico Luciani, Mattia Passamonti, Francesco “Sandokan” Antonozzi, Maurizio Gregori, Michele Fortunato, Giovanni Todaro, David Cacchione e Luca Fornasier. “Nós cantamos e contamos o que vemos. A cultura e a música são uma arma. E como sempre digo, das inúmeras armas, está a luta contra o fascismo. Cada um deve fazer a sua parte”.

O militante punk já escreveu quatro livros: Uma vida inteira – memórias de um trabalhador internacionalista, de 2020; Lágrimas e sangue – o mundo visto pelos olhos de um trabalhador, de 2021; Chovendo bombas – uma semana no Donbass, de 2022 e Não passarão: história fotográfica da caravana antifascista e solidariedade internacional no Donbass, 2024.

Atuar pela escrita, como mais uma ferramenta de conscientização de classe e transformação social, é outra de suas frentes. “Escrevi este último livro, que também é uma obra fotográfica do Julio Zamarrón, onde relato os dez anos da Caravana Antifascista. As fotos são 90% do Julio, mas consideramos um trabalho coletivo, pois não fazemos nada sozinhos.” 

O poeta operário lembrou que apesar das dificuldades, viveu grandes momentos e conheceu pessoas dispostas a lutarem pelo que acreditam. “Muitos momentos ficaram comigo. Faces, olhares, lágrimas, além também de homens e mulheres livres que tive a sorte de conhecer. Houve ainda registro de descontração e de sorrisos nossos ao lado de homens que pouco depois morreriam lutando contra o fascismo.” 

Rememorou a fala do falecido comandante da brigada militar socialista Prizrak, Alexei Mozgovoy, que perguntou a eles sobre a Caravana, em uma reunião, se estavam do seu lado e se eram mesmo antifascistas ou simples idiotas. Outra lembrança que fez questão de partilhar foi dos rostos das senhoras que choravam nos mercados de Mariupol. Fora o barulho contínuo das explosões. “Lembro-me das bandeiras com a Foice e o Martelo nos postos de controle, acima das trincheiras e em defesa de todos nós.”

Arte propulsora de atitude

O punk acaba desempenhando um papel elementar, sendo mais uma via influenciadora na criação, agitação e perpetuação de movimentos antifascistas e anti-imperialistas por milhares de jovens em todo o mundo. Bassotti é parte disso, oriunda em bairro de operários em plenos anos 80 em meio a conflitos laborais e às combatividades sindicais por um povo italiano castigado pela brutalidade da repressão policial e da extrema direita. 

Com o compromisso arraigado de reivindicar a emancipação da classe trabalhadora, a banda segue adiante há mais de três décadas nesse sentido. Canções italianas populares como Bandera rossa e a internacionalmente conhecida Bella Ciao são tocadas em alguns eventos na ritmicidade punk, abrasiva e instigante como deve ser. 

No álbum Siamo guerriglia, a faixa-título retoma o papel dos lutadores pela liberdade ao longo da história e deixa claro em um de seus versos: “não se vive escravo quando se nasce rebelde”. Ou então “nossos velhos foram a cidades ocupadas, sempre livres e nunca domesticados”. 

“Desde os sandinistas a Che Guevara, passando por Ho Chi Minh e até mesmo Tupac Shakur, somos mesmo todos filhos da mesma raiva.”

Esse último mantém viva a memória dos guerrilheiros antifascistas italianos que lutaram em todas as montanhas e em todas as cidades da sua terra, desde a organização da luta até as suas mortes defendendo as suas ideias de liberdade contra a ditadura de Mussolini. Essa é a identidade de um militante, de um brigadista politicamente empenhado. 

A solidariedade internacionalista é um compromisso firmado. Inspiração para um de seus hinos: Figli della stessa rabbia [Filhos da mesma raiva] que lembra que desde os sandinistas a Che Guevara, passando por Ho Chi Minh e até mesmo Tupac Shakur, somos mesmo todos filhos da mesma raiva. A raiva contra a exploração da classe trabalhadora e contra a desigualdade social, ou como finalizou:

Se as condições permitirem, voltaremos ao Donbass. Espero que possamos regressar a um território livre. Não faço ideia de quanto tempo durará esta situação de guerra, mas espero que termine logo. Assim, os cidadãos de lá, o povo russo e o povo ucraniano, voltarão a viver em paz, pois os governantes da Ucrânia, sob o comando dos Estados Unidos, estão exterminando o seu próprio povo.

Sobre os autores

é repórter na Revista Brasil Já, jornalista correspondente para o Opera Mundi e escreve sobre cultura na Hedflow e no portal português Sapo Mag.

Cierre

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Published in Análise, Cultura, DESTAQUE, Europa, Guerra e imperialismo and Música

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