Com o genocídio do povo palestino escancarado ao mundo após o dia 7 de outubro de 2023, ações de solidariedade internacional se tornaram mais do que nunca indispensáveis e urgentes. Além de ações de chefes de Estado, como a iniciativa conduzida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, o rompimento de relações diplomáticas com Israel por parte da Colômbia, e as diversas declarações de Lula condenando o genocídio (seguidas pela convocação do embaixador brasileiro em Tel Aviv), neste momento, o destaque está nas mobilizações estudantis ao redor do mundo.
Iniciadas em abril na Universidade de Columbia, em Nova York, a Intifada das Universidades já alcançou 48 estados nos Estados Unidos até maio, além de ter se expandido para diversos países na Europa, Ásia, Oceania e Américas. Há iniciativas no Brasil, como os acampamentos na UFMA, UNICAMP e, o primeiro de todos, que aconteceu na USP, entre os dias 7 e 9 de maio, organizado pelo Comitê de Estudantes em Solidariedade ao Povo Palestino da USP (ESPP), que pedia:
“Nossa exigência é clara: demandamos a imediata renúncia dos convênios da USP com Israel, parte importante da reivindicação do povo palestino por boicote acadêmico! A liberdade acadêmica e a produção de conhecimento não combinam com a colaboração com instituições que produzem conhecimento a serviço de massacre e de catástrofe de um povo, como são as universidades israelenses.”
Essa exigência por parte dos estudantes da USP não vem de hoje. Desde 1984 a Universidade de São Paulo têm vínculos com Instituições Israelenses, sendo o primeiro firmado com a Universidade de Tel Aviv e, nos anos seguintes, com a Universidade Hebraica de Jerusalém, a Technion – Instituto de Tecnologia de Israel, a Universidade de Haifa e, o mais absurdo de todos, com a Universidade de Ariel.
Em 2010, foi firmado pela primeira vez um convênio de cooperação acadêmica entre o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação de São Carlos, da USP e a Universidade de Ariel – Center of Samaria, que, segundo consta nos documentos da época estaria localizada em Israel, mas, na verdade, está situada dentro de um assentamento israelense na Cisjordânia – ou seja, território ocupado.
Após a publicização, esse convênio foi bastante questionado. Alunos e professores se mobilizaram pelo seu rompimento, e houve significativa mobilização. Após dois anos, o convênio foi encerrado sem renovação, o que foi considerado uma vitória à época… Até um acordo similar ser firmado novamente em 2021, dessa vez mais abrangente, entre a Universidade de Ariel e “todas as áreas ‘disponíveis’ nas duas instituições envolvidas”.
“Além da parte militar, ao final do ano passado, a ocupação contava com mais de 730 mil colonos morando confortavelmente na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, em cerca de 374 assentamentos.”
De 2021 para cá, as relações entre USP e Israel foram estreitadas com feiras e encontros de Universidades Israelenses anuais, divulgação de bolsas e até a criação do Israel Corner dentro do Centro Intercultural Internacional da USP, um espaço que já promoveu exibição de filmes e aula de culinária israelenses, além de encontros mensais de língua hebraica mediados por uma professora israelense. Atualmente, além do acordo com a Ariel, há outros vigentes: entre a FEA e a Universidade Hebraica; entre a USP e o Consulado Israelense no Brasil; entre a FFLCH e a Universidade de Haifa; e um outro entre a USP e a Universidade Hebraica de Jerusalém.
Mesmo dentro de todo esse histórico de relações, que deveria ser questionado e revogado em nome da solidariedade ao povo palestino, o convênio entre a USP e a Universidade de Ariel se destaca, já que a USP segue afirmando que se trata simplesmente de uma universidade de Israel, ignorando sua localização na Cisjordânia ocupada, dentro de um assentamento ilegal segundo o direito internacional.
Vale lembrar o que diz o artigo 49 da IV Convenção de Genebra: “A Potência Ocupante não deve deportar ou transferir partes de sua própria população civil para o território que ocupa.”
“De acordo com um relatório da ONG B’Tselem, os assentamentos dessa região foram estabelecidos em uma das áreas mais populosas e férteis da Cisjordânia, das quais os moradores dependiam para seu sustento.”
O assentamento de Ariel
A ocupação da Palestina começou em 1967 e cresce até hoje. Além da parte militar, ao final do ano passado, a ocupação contava com mais de 730 mil colonos morando confortavelmente na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, em cerca de 374 assentamentos.
Esses assentamentos formam blocos que isolam cidades e vilas palestinas, arruinando as possibilidades de desenvolvimento dos palestinos nas áreas ao redor. O muro e os checkpoints são instalados “para garantir a segurança dos colonos”, fazendo com que estradas e vias principais passem a ser proibidas para palestinos, terras de pequenos agricultores sejam confiscadas ou cercadas e casas e construções palestinas sejam demolidas, por “questões de segurança” genéricas e sem maiores detalhamentos. Sem falar nas invasões e ataques de colonos, que também são frequentes.
“De acordo com um relatório da ONG B’Tselem, os assentamentos dessa região foram estabelecidos em uma das áreas mais populosas e férteis da Cisjordânia.”
O assentamento de Ariel, onde fica a Universidade de Ariel, faz parte de um grande bloco de assentamentos, que ocupa terras de três províncias palestinas – Salfit, Qalqilya e Ramallah – e impacta diretamente a vida de 34 mil palestinos, em 10 vilas ao seu redor. Em 2021, ano em que o acordo com a USP foi firmado, somente nesse bloco que já se apossou de 26,5 km² de terras palestinas, moravam 32 mil colonos.
De acordo com um relatório da ONG B’Tselem, os assentamentos dessa região foram estabelecidos em uma das áreas mais populosas e férteis da Cisjordânia, das quais os moradores palestinos da região dependiam exclusivamente para seu sustento. Por acaso, essa é também uma das regiões com o maior confisco de terras palestinas.
Além desses impactos, há ainda a questão da violência constante por parte dos colonos aos palestinos. Em 16 de abril, dois palestinos – Mohammed Jama’a e Abdulrahman Fadel – foram assassinados a tiros por colonos israelenses nesta região. Em 13 de maio de 2024, gangues de colonos da região realizaram pogrons e atacaram moradores das vilas de Jalud e Qusra, colocando fogo em casas, carros e plantações palestinas. Em 19 de maio, enquanto escrevo esse texto, a cidade de Yatma é atacada por colonos que também estão colocando fogo nas árvores e carros da região.
Enquanto isso, o clima de normalidade paira dentro dos assentamentos – inclusive na Universidade de Ariel.
Israel não vai parar sozinho
Da fundação de Israel em 1948 até 1977, todos os governos israelenses foram ininterruptamente de esquerda, seja com o Partido dos Trabalhadores da Terra de Israel (Mapai) ou com o Partido Trabalhista (Ha-Avoda). O primeiro acordo bilateral entre Brasil e Israel foi o Decreto Nº 59.059, de 11 de agosto de 1966, promulgado pelo “presidente” da época, Castelo Branco, durante a ditadura militar, e que instituiu o Convênio de Intercâmbio Cultural, articulado por Golda Meir, na época Ministra das Relações Exteriores de Israel.
Em 2012, foi Ehud Barak, na época ministro da Defesa de Israel, que concedeu o status de Universidade à Ariel, já que anteriormente, inclusive na época do primeiro convênio com a USP, tratava-se de um College, que, ilogicamente, levava o nome de Ariel University Center of Samaria. Essa elevação de status indica o movimento discreto e constante pela valorização e expansionismo dos assentamentos ilegais na Cisjordânia.
É importante levar em consideração esse contexto para não cairmos em falsos discursos que tentam reduzir o genocídio em curso ao que aconteceu no dia 7 de outubro de 2023, ou atribuir a culpa exclusivamente ao governo de Benjamin Netanyahu. Apesar da intensidade e da gravidade da situação atual, não se pode esquecer que a limpeza étnica, o apartheid e a ocupação militar na Palestina já acontecem há muitos anos, independente de governos israelenses ultra-direitistas ou de esquerda.
Sabemos que Israel não vai parar, e, como dizem Sabrina Fernandes e Bruno Huberman: Israel não vai cumprir acordos, nem descolonizar a si mesmo – o mundo precisa agir.
Um importante chamado da sociedade civil palestina é o BDS (Boicotes, Desinvestimentos e Sanções a Israel), que apela ao mundo para que se imponham boicotes amplos e iniciativas de desinvestimento contra Israel, semelhante ao que aconteceu com a África do Sul na era do apartheid, além de também pedir por embargos e sanções contra Israel.
Estas medidas punitivas não violentas devem ser mantidas até que Israel cumpra a sua obrigação de reconhecer o direito inalienável do povo palestino à autodeterminação e cumpra integralmente os preceitos do direito internacional.
“Manter convênios acadêmicos e acordos de cooperação com instituições israelenses, sobretudo com uma universidade em território ocupado, é uma atitude da USP que soa como um deboche aos direitos humanos.”
No campo acadêmico, há o PACBI (Campanha Palestina por Boicote Acadêmico e Cultural de Israel), um braço do BDS que pede pressão internacional contra universidades israelenses, devido ao envolvimento dessas Instituições no establishment do militarismo israelense; à atuação no desenvolvimento da infraestrutura da opressão israelense; ao fomento do racismo contra palestinos e no apoio aos crimes israelenses; e por fazerem parte de parte do sistema que ataca sistematicamente o sistema educacional palestino (desde 7 de outubro de 2023, 103 escolas e universidades foram totalmente destruídas em Gaza e 309 foram parcialmente).
O PACBI, fundado por Omar Barghouti, pede que o boicote seja aplicado às instituições israelenses e não necessariamente aos indivíduos, além de delimitar algumas ações que devem ser tomadas pela comunidade internacional:
- Recusar qualquer forma de cooperação acadêmica e cultural com instituições israelenses;
- Defender um boicote abrangente às instituições israelenses a nível nacional e internacional;
- Promover o desinvestimento de Israel por parte de instituições acadêmicas internacionais;
- Trabalhar para a condenação institucional das políticas israelenses;
- Apoiar diretamente as instituições acadêmicas e culturais palestinas, sem exigir que façam parcerias com homólogos israelenses.
Manter convênios acadêmicos e acordos de cooperação com instituições israelenses, sobretudo com uma universidade em território ocupado, é uma atitude da USP que soa como um deboche aos direitos humanos. Compactuar com Israel, ignorando o que acontece com o povo palestino, especialmente ao mesmo tempo em que vemos o genocídio diante dos nossos olhos, é algo inaceitável e que deve ser reconsiderado urgentemente.
É imprescindível que todos os acordos entre instituições brasileiras e israelenses sejam rompidos, não somente a nível acadêmico, mas em todos os níveis, incluindo governos, prefeituras, instituições e empresas. A solidariedade ao povo palestino deve ser demonstrada através de ações concretas e imediatas, que extrapolem o discurso. Afinal, é muito fácil pedir paz… mas como ficam os palestinos e a libertação da Palestina?
Sobre os autores
é formada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Membra da antiga Frente Palestina da USP, atual Estudantes em Solidariedade com o Povo Palestino (ESPP-USP), participou como observadora de direitos humanos junto ao Conselho Mundial das Igrejas em Tulkarem, na Palestina ocupada.