Shoshana Zuboff (Nova Inglaterra, Estados Unidos, 1951) é filósofa, professora emérita da Harvard Business School e autora do livro The Age of Surveillance Capitalism, traduzido livremente como A era do capitalismo de vigilância. Obra que disseca o panorama de uma tendência econômica que é efeito da mutação do capitalismo a partir da era digital.
O argumento central da obra é que o capitalismo de vigilância é um regime de ordem econômica, anti-civilizatório, na concepção liberal. Isso ocorre, pois a instrumentalização do poder chega a tal ponto que afetas os modos de viver, por meio de uma espécie de engenharia comportamental soft, que incide nos laços sociais, na reciprocidade e reconhecimento, nos pactos de confiança e no esvaziamento da capacidade de criação de compromissos pela descrédito de uma perspectiva de futuro em que o sujeito se reconheça entre outros. Seria um golpe na autonomia e na livre vontade, caras ao pensamento liberal.
Diferente do totalitarismo, o capitalismo de vigilância é operado por empresas que fazem um condicionamento soft dos comportamentos, para intensificar os lucros. É uma mudança de perspectiva do panóptico em que o olhar que observa, sem ser olhado, é o olhar do próprio sujeito. Seus efeitos colocam uma questão ontológica, pois a violação do reduto da intimidade e a programação dos comportamentos põem em xeque os limites entre a cena e o obsceno da vida: o íntimo de um modo de gozo que sustenta relações como desejo no laço social por meio da fantasia.
Cultura da vergonha
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oloca-se, então, o problema ético no sentido de que o espaço íntimo e o público são aspectos condicionantes das formas de viver desde a antropologia apontou para uma cultura da vergonha.
Nesse sentido poderia-se falar em declínio da vergonha?
Em nossa época, acalentamos hospedeiros. Celulares e toda sorte de gadgets acoplados em nosso corpo libidinal, induzem efeitos de produção voluntária e involuntária daquilo que se transformou na maior mercadoria de nosso século, os dados. Os gadgets monitoram processos fisiológicos, registram comportamentos, interações, capturando o tempo e o espaço das pessoas, suas emoções e hábitos, para antecipar ações e realizar vendas. O Pokémon Go foi exemplo de experiência que levou as pessoas a agirem no mundo real como se estivessem no mundo virtual, gerando lucros reais para as empresas que o contrataram. Em últimas consequências, o sujeito conectado do capitalismo de vigilância, caracteriza uma espécie de proletário de si mesmo, ou aquilo que Lacan apontou, em A Terceira, como único sintoma social, onde cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso com que fazer laço social, em outras palavras, semblante.
A figura do proletário, segundo Lacan, não se limita a uma classe social, mas constitui um paradigma da subjetividade do sujeito contemporâneo. Em Radiofonia, Lacan define o proletariado, apontando que o trabalho é radicalizado no nível da mercadoria pura e simples, o que significa que isso reduz ao mesmo nível o próprio trabalhador. O sujeito, no proletariado, é afetado por um discurso que não é mais o de um mestre que explora e extrair algo, mas o discurso a partir do qual o sujeito se explora. O proletário, nesse discurso, é o que Lacan chama de a. Entre mestre e servo, um saber que é o da técnica, o saber-fazer do servo.
Ideia em consonância com Walter Benjamin, quanto ao estatuto da técnica e suas consequências na racionalidade capitalista. Capitalismo como religião, experiência e pobreza, Magia e técnica, arte e política, Benjamin constata que o capitalismo é responsável por essa ruptura de referenciais que levam a expropriações e ao esvaziamento da vida. É uma verdadeira guerra cotidiana pela sobrevivência cuja destruição das referências pela técnica esvazia a vida e a torna sem finalidade.
É como mercadoria, como a, que o proletário é subjetivamente destituído e reduzido a um autômato sem ciência e sentido do seu trabalho. Absorto em sua atividade, o proletário nada sabe sobre seu fazer. Zuboff destaca algo como uma lógica de colmeia dirigida por empresas de tecnologia, com efeitos nefastos às democracia. Assim, o sujeito administrado da colmeia oscila na instabilidade das identificações, na medida em que é um sujeito que cessa de ser representado por um significante que o valha, S1. Quando o significante falha em amarrar essas identificações, a experiência identificatória pode variar entre o sentimento de indeterminação ou inexistência até ao empuxo de tornar-se qualquer um, mesmo através do que há de mais momentâneo e instantâneo, como as celebridades e políticos de redes sociais, seguidas e cultuadas por milhares de pessoas.
O capitalismo de vigilância
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moderno self-made man do capitalismo de vigilância, anda de mãos dadas com forma de existir contabilizada por likes, seguidores ou medidas de gozo reguladas e estabelecidas por Bigtechs. Por trás das tentativas de tornar-se alguém, corta a angústia da nadificação, do medo de ser trocado ou cancelado, do não pertencimento a uma história, uma perda da familiaridade, de não fazer parte de nada. Há uma condição à deriva do sujeito, cooptada pelas estratégias de produção de subjetividade, no capitalismo de vigilância, em que corta a angústia modulada entre a inexistência virtual e a efemeridade. A consistência ontológica do sujeito implica um desespero de não ter, no simbólico, um significante que o sustente, como em um laço em uma relação de amor, ou seja, que represente o sujeito para outro significante. Algo cujo efeito clínico é uma sintomatologia de angústia e indiferença caracterizados por uma certa apatia, dificuldade de falar sobre si e a ansiedade auto-identificada nos TDAHs, TODs, e nas demais comodites de sofrimento psíquico mobilizadas pelo mercado do saber científico.
Nas colmeias virtuais do capitalismo de vigilância, é importante que os sujeitos, ontologicamente, não se orientam para o desejo. Como efeito, pode-se perceber como o medo e o desespero se tornaram ativos políticos e mercadológicos tão fortes, pois, ao não encontrar, na linguagem, um significante que o faça saber sobre o desejo do Outro, se mantém a instabilidade narcísica que necessita de constante confirmação a consistência imaginária do Eu.
A perda de perspectiva temporal de si, na forma de um passado autobiográfico e um futuro projetado, caracteriza o desespero no sentido forte do termo, como perda da esperança, un désespoir. O desespero se diferencia da angústia por esta efetivar uma própria possibilidade em direção ao desconhecido. Assim, não ser capaz de realizar sínteses simbólicas de experiências de indeterminação, sofrimento e limitações, os famosos “gatilhos”, tem como efeito o desespero diante de enigmas da existência como o sexual e a morte. O que se busca são palavras/imagens que, de certo modo, estabilizam o desespero.
O psiquiatra e psicanalista Serge Tisseron, em sua obra L’intimité surexposée, comenta sobre a superexposição na cultura atual. Para ele, o fenômeno das pessoas que expõe a vida na TV, mostrando questões intimas que não conseguiriam dizer em outro momento da vida. Para Tisseron, esta seria uma confissão catódica, um termo que condensa a ideia confissão católica, um dispositivo em que se confessa o pecado para ser perdoado, com o termo eletroquímico “cátodo”, que é o agente oxidante, pólo ou eletrodo positivo que na eletrólise sofre redução por ganhar elétrons. A ideia seria a de uma confissão que reduz a culpa pela saturação do eu como um resíduo oxidado pelo que vem do outro. Na confissão catódica, ao dirigir-se a todos, não se dirige a ninguém. Uma espécie de dizer que nem se pode confinar, um dizer que se deixa cair no vazio. Um cátodo que oxida o eu, inflacionando-o com resíduos.
A vergonha é um traço de precarização das identificações, como efeito do mais-de-gozar condicionado sempre por um olhar que torna o sujeito objeto. No obsceno há o movimento que vai da repressão para o imperativo de gozo, da satisfação direta, a partir da sintaxe que faz do sujeito objeto de gozo do próprio olhar. Dessa forma, a subjetividade do sujeito contemporâneo por estar impelido à gramática que não se forma pela relação mestre/servo, fica livre dos deveres determinados por uma ordem que o faz engajar na busca pelo saber. Mas esta liberdade é apenas suposta, pois a sua efetivação é a própria eliminação do desejo. Por isso, podemos dizer que as aspirações modernas não se dirigem à realização de algo sob as coordenadas do dever simbólico do significante, mas sim de uma tentativa de coincidência cuja ordem é identificar-se a imagens e identidade prontas, mesmo que ao preço de um coletivismo com exclusão social.
Trata-se de uma lógica cínica que se serve da espetacularização da vida em que o sujeito performa, justamente pelo caráter instável das identificações. Na cultura capitalista, a apresentação estética de si mesmo se faz através da circulação de mercadorias. Como consequência, há toda uma publicidade que interpela o desejo em busca de identificação ao espírito da mercadoria. O principal produto é a própria ideologia de satisfação identificada à felicidade no curso assintótico que Lacan chamou de mais-gozar.
O fascínio das aparências – de mercadorias/felicidade – movimento o reconhecimento social, utilitário e identificado ao bem de consumo. Socialmente observamos isso na forma de um imperativo de eficácia que se sustentam por medidas de rendimento. A vergonha jorra quando o rendimento não é alcançado, quando a infelicidade, a solidão, o medo, a hesitação, a dispersão – antítese da onipresente palavra “foco”, ou do resguardo de um espaço/tempo próprios, são hoje considerados falhas de eficácia. Disto deduzem-se os transtornos de uma psicopatologia estética baseada na oposição normal/patológico, ordem/desordem, equilíbrio/desequilíbrio e etc. Há um juízo de valor impiedoso que sustenta a oferta de mecanismos e meios para lidar esses problemas, como os dopings afetivos dos modernos medicamentos, psiquiátricos, aplicativos de performance, coachs, auto-ajuda e religiões de culto à prosperidade.
Imperativo narcísico
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ara Lipovetsky, é um imperativo narcísico que sucede o imperativo categórico, na forma de uma incessante glorificação da cultura higiênica e desportiva, estética e dietética. Manter-se em forma, lutar contra as rugas, zelar por uma alimentação saudável, bronzear-se, manter-se na linha, descansar, a felicidade individualista é inseparável de um extraordinário forcing no esforço de dinamização, de conservação, de gestão optimizada de si mesmo. A cultura da otimização de si funciona sob o empuxo ao dar-se a ver. A cultura do capitalismo de vigilância é comandada por um onivoyer que engendra um gozo do espetáculo proclamado por uma ordem de desempenho físico, moral, financeiro e estético a partir da lógica perversa da obediência da lei pela lei.
Portanto, a sociedade do espetáculo não é somente uma profusão de imagens no dar-se a ver da colmeia conectada, ela é a cosmovisão que tomou forma a partir dos avanços da ciência. Algo cuja sintaxe já era discutida desde a década de 1970. É nesse sentido que em Radiofonia, Lacan já alertava que “a ciência é uma ideologia da supressão do sujeito”. Portanto, ao nos referirmos ao proletário, localizamos, nesta ideologia, que não há lugar para o sujeito, a não ser na oscilação entre a vacuidade e a efemeridade de uma existência.
O espetáculo é, então, o resultado do projeto de um modo de produção aonde o público e o privado se imiscuem de maneira que a pregnância da imagem vira o ponto de sustentação existencial da pessoa, confirmada e reafirmada pelo gozo cifrado e condicionado por algoritmos. É por isso que as imagens nos invadem como imperativos de ideais, como modelos identificatórios fabricados e ofertados pela saturação onipresente das ofertas. O apelo à identificação recorre diretamente ao dimorfismo psicológico inerente a formação do eu e à aparência do corpo cuja presença, desempenho e medida estão sempre sob a sombra de um desencaixe inerente a formação subjetiva mitigada pelo contorno do eu.
Dessa forma, o sujeito vira, ao mesmo tempo, ator e plateia do seu próprio espetáculo, extraindo um mais-gozar de si mesmo como proletário. Se, para Sartre, em O Ser e o Nada, a vergonha opera uma nadificação do sujeito, para Lacan há uma perda da vergonha, logo, a nadificação se dá sem cerimônias. Mas Lacan radicaliza essa ideia, na medida que se volta para o elemento non-sense radical e estruturante do que ele chama de hiância pré-ontológica, o significante unário. Afinal, todos têm uma ontologia, mas o modo a partir do qual ela se produz, é singular. Isto implica entender o olhar a partir de um ponto de vista estruturado de uma lógica de gozo na dialética do desejo, como objeto a, como algo que nos colocar diante do desejo e da castração.
É nesse sentido Miller recorre a figura do homem sem qualidades, para propor um paradigma desse sujeito suprimido e proletário. Trata-se de um humano quantitativo, mensurável, que se torna unidade contável por ser tradução efetiva do domínio contemporâneo do significante que, por si, não significa nada e depende de um outro significante para assumir alguma valência. É por isso que a condição ontológica, no capitalismo de vigilância é tão sensível, pois, esse outro significante que dá valência ontológica é administrado, controlado, oferecido e saturado de acordo com os algoritmos das Big datas, transformando o humano ao dar-lhe um estatuto de quantidade. Logo, o humano se equipara a um ativo financeiro em cima do qual se pode gerar especulação, pois ele se torna patrão de si, produzindo dados, ao mesmo passo em que é guiado pela administração da vida na colmeia do capitalismo de vigilância. O humano contável ou o humano quantitativo, esvaziado de qualidade, é o da ideologia de supressão do sujeito, pois seu horizonte singular é engolido por uma existência contabilizável.
A vergonha, por apontar para uma vida marcada pelo sintoma, mesmo quando o sujeito vive uma vida de um “homem geral”, quantificado, sem qualidades, constantemente avaliado e transformado em valor-de-uso, pode ser considerada um afeto radical que reposiciona o sujeito a partir do que Lacan apontou como o “buraco onde jorra o significante-mestre”, no final do seu seminário sobre o Avesso da psicanálise. É um afeto que retorna como diferença radical, de instabilidade narcísica, que faz contraponto à ideologia de supressão do sujeito, que busca o humano sem sintomas à maneira do autômato, reduzido a um objeto a do mercado. Na condição de autômato, o sujeito assim se reconhece. Como consequência, temos uma espécie de paradoxo identificatório. O que causa vergonha para este sujeito não é seu caráter sem qualidades, substituível e quantificado de mercadoria. A vergonha jaz na condição de não o ser assim, ou seja, de não ser substituível. A vergonha de não proletário produtor de dados, pois é isso que delimita seu lugar, posição e função na colmeia administrada.
Sobre os autores
Sérgio Prudente
é psicanalista, pós-doutorado em psicologia clínica pela USP. Professor adjunto de psicologia da UFRN. Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.