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(Reprodução El Destape)

A trilha sonora transfeminista que está agitando as ruas da América Latina

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Rapper argentina Sara Hebe chega ao Brasil essa semana. Suas músicas estão marcando toda uma geração de militantes antifascistas que lutam contra as opressões do capitalismo contemporâneo.

UMA ENTREVISTA DE

Jéssica Viana

Centenas de milhares de mulheres lotam as ruas da capital Argentina todos os anos em manifestações feministas, antifascistas, pela legalização do aborto, pela memória dos torturados e desaparecidos da ditadura, contra o feminicídio, contra a homofobia, a transfobia, contra a atual política econômica e a ascensão de ideologias neonazista. Em diversos países, nas avenidas fechadas da América Latina, ressoam, durante os protestos, palavras de ordem musicadas por mulheres e ritmadas a muitas mãos. Artistas como Sara Hebe, Krudas Cubensi, Ana Tijoux e Fémina, viram na última década suas músicas ativistas ganharem novas intérpretes e seu som feminista aquecer as ruas. Suas letras lambem as calçadas feito labaredas atiçadas e a cena musical urbana se modifica, no mesmo ritmo acelerado em que mudam também as cidades.

Aos mais atentos, nos toca perceber que assim como é possível organizar as emoções e as angústias humanas em torno de um beat, é necessário traçar a luta política a partir do movimento frenético dos corpos que experienciam as vicissitudes, as mazelas e as delícias de uma metrópole dos nossos dias. É imperativo compreender o que mobiliza estes corpos e neste quesito, a rapper argentina Sara Hebe tem muito a nos ensinar e inspirar. 

Suas canções, retumbantes nas efervescentes encruzilhadas de Buenos Aires, ultrapassaram os limites das casas de shows e das plataformas digitais, tomaram as ruas durante as mobilizações feministas da última década na Argentina, no Chile, na Colômbia e romperam fronteiras até mesmo entre os gêneros musicais, o que por vezes parece desagradar a indústria e colocar a artista em posição de representar com cada vez maior propriedade a luta por liberdade e justiça social na criação de algo novo.

Nascida em 1983, em Trelew, na Patagônia argentina, territorialidade também marcada em sua construção histórica pelos horrores da ditadura militar. Ao mudar-se para Buenos Aires, lá nos idos 2007, foi que iniciou oficialmente sua carreira musical entre o Rap, o Hip-hop e o Dance hall, emprestando a eles uma atitude punk e desbravando novas possibilidades estéticas para a música latina. Lançou seu primeiro álbum em 2009, La Hija del Loco, um tremendo sucesso, provando já a partir dali sua particular habilidade de traduzir a pungência da vida urbana na riqueza do encontro entre a consciência social e a expressão artística singular, independente, múltipla, contagiante e autêntica. Seja na batida do hardcore punk, do rock, do reggaeton, na cumbia antifascista, na música eletrônica, na levada do trap, do hip-hop, do funk ou na viagem estética pelo hyperpop, a expressão musical de Sara Hebe atravessa e movimenta muitos corpos, inclusive corpos políticos. Sua música traz a sensualidade e o frisson das ruas, é contemporânea e atemporal, arrojada e livre. Seu som convida o corpo à catarse ao mesmo tempo em que convida o ouvinte a questionar sua própria maneira de existir no mundo.

Almacén de datos; Puras Wachas; Jove; Histórika; Hulk; Movimiento Social el Deseo; Teta; FCK the PWR; Un cambio e La Bronca são só algumas das músicas que você precisa ouvir para entender a potência e a complexidade da poesia urbana de Sara Hebe.

Tendo 5 discos de sucesso, com músicas altamente políticas e vibrantes, sendo uma enorme referência na atual cena musical urbana latino-americana, aos 40 anos recém completados e em meio a mais uma turnê internacional, a artista vem ao Brasil pela primeira vez a convite do bar latino-americano Sol y Sombra, para uma apresentação icônica que vai acontecer no dia 19 de julho, no Bixiga, em São Paulo e concede esta entrevista especial à revista Jacobina e ao Brasil de Fato por ocasião e em virtude de sua presença tão aguardada no nosso pedaço de América Latina.

JV

No último dia 9 foi seu aniversário. Como você se sente nesse momento da sua vida? O que celebra do passado e que desejos tem para o futuro?

SH

Me sinto bem. Não tenho muitos problemas com a idade. Estou em um momento um pouco mais tranquilo, sustentando este trabalho que é manter uma banda. Celebro do passado tudo o que fui, tudo o que fiz e o que trabalhei, todos os cenários onde estive e meus desejos para o futuro são de mais amor e paz para todo mundo, mais razão para todo o mundo. Um milagre desejo… um milagre! Que mude os rumos de intenções muito malignas que vejo que estão aflorando em toda América Latina. Outro desejo é saúde, para todo o planeta, para todas as pessoas do planeta! Claro, sobretudo para minha família, minha mãe, minhas irmãs e sobrinhos, para os meus amigos, mas desejo saúde… amor e saúde mental para todo o planeta. 

“Creio que o que fez minha música irromper as ruas foi o fato de que havia uma combinação entre uma mensagem explícita e panfletária no princípio.”

JV

Você é parte e referência da luta transfeminista. Sempre fala de justiça social e de gênero, tanto nas tuas letras, quanto em outras plataformas pelas quais você se expressa. É curioso, e está genial, que a tua própria obra musical não imponha fronteira entre os gêneros. Qual é o preço e quais são as implicações de ser uma artista que se permite criar com esta (e por esta) liberdade? 

SH

Muito bem, eu gosto dessa pergunta sobre transfeminismo, e quando me perguntam eu sempre digo que me considero transfeminista porque pra mim foi uma grande inspiração, uma escola e um exemplo de luta o movimento das trabalhadoras sexuais, das travestis, dos coletivos LGBTQI+, dos homens trans, das mulheres trans.

Para mim, temos que falar e valorizar muito o transfeminismo, o trabalho e a luta de todas essas pessoas que são as mais vulneráveis nas ruas. O preço e as implicações disto? Não sei… talvez a indústria castigue um pouco, ou talvez te vire a cara. Talvez não sejam os circuitos comerciais que se abram para você quando se é tão explícita nestes temas. Mas não me importa. Isto é o que me comove e é sobre isto que falo. 

JV

Pela demanda de uma indústria musical, especialmente em sua era digital, muitos artistas se despolitizam, se plastificam, trabalham para os algoritmos… como você aponta em Almacén de Datos, em Hulk e outras músicas mais. Você costuma falar, e demonstrar que é possível “mudar a estética e manter a ética”. Qual é esta ética de que você fala? E o que você acredita que te mantém tão comprometida com as causas sociais e com a sua integridade artística?

SH

Sim, nestes temas falo um pouco de toda essa cena puramente estética. Falo basicamente de uma ética que significa sustentar acima da estética os valores, a sensibilidade, o registro do humano, de como ele está, de como está sendo a distribuição de dinheiro nas nossas pequenas empresas. Não sei se estou tão comprometida, mas estou muito comovida e entristecida pelo presente, pela atualidade. E com o que sim, me comprometo, é ir tocar, sempre que posso, em lugares onde isto faz falta.

Que não sejam somente os cenários das capitais, ou das cidades onde o público pode vir me ver. É claro, tento tocar o meu negócio que é o que sustenta a minha vida. Mas não sei se isto se aplicou ao que te dizia… Falo da ética dos valores, da ética dos direitos e falo da ética em si mesma. Do que é certo.

“Pego muitas coisas que escuto por aí e depois a música volta às ruas e pode ser trilha sonora de mobilizações.”

JV

Com as múltiplas linguagens musicais que você explora, você acredita que atinge públicos diferentes? Quem são as pessoas que assistem aos seus shows e que se identificam com a sua música?

SH

Sim, levo pessoas diferentes, é muito diverso o público. Mas sim, a maioria que assiste meus espetáculos é de mulheres, de maricas, de gente queer. Mas majoritariamente mulheres. Gente que me escuta desde pequena, porque sua mãe já me escutava. As mães vêm e as meninas, que já me escutavam aos 14 e agora já tem 24 anos às vezes vem também. E sim, creio que tem razão, são muitas as linguagens musicais que exploro e vou seguir explorando. 

JV

Sua música está feita para mover o corpo e suas letras, suas canções, são entoadas nas ruas para mobilizar lutas sociais, ou seja, para mobilizar um corpo político. Você costuma dizer que gosta de “escrever música e não panfleto”. Mas este é um fenômeno raro. O que você acredita que fez a sua música irromper as ruas de forma tão orgânica?

SH

Creio que o que fez minha música irromper as ruas foi o fato de que havia uma combinação entre uma mensagem explícita e panfletária no princípio. Quando escrevia era mais desse modo e logo tentei fazer poesia, que é uma poesia muito urbana, o que acredito que ressoa com muita gente. Então essa música vem das ruas, está escrita nas paredes. Pego muitas coisas que escuto por aí e depois a música volta às ruas e pode ser trilha sonora de mobilizações.

“Creio que uma maneira de ser antifascista é não se tornar polícia e tratar de fazer uma expansão do coração, da forma de criação, que seja cem por cento amorosa.”

Acredito que há uma ida e volta e que é isto o que acontece. Gosto da ideia da minha música mobilizar um corpo político, mas também é para fazer dançar qualquer corpo. Não quero fazer recortes. Quero fazer música para todo mundo. Fazer música só para uma questão específica ou para um único setor tornaria um pouco “fascista” o meu modo de fazer música e creio que uma maneira de ser antifascista é não se tornar polícia e tratar de fazer uma expansão do coração, da forma de criação, que seja cem por cento amorosa. Queria fazer música que chegasse a qualquer um e não me importa quem a dance. Mas sim, é para um corpo político e minha música sempre vai ter sua mensagem. Uma mensagem sensível e amorosa. Uma mensagem direta contra os abusos do poder.

JV

A situação política e econômica da Argentina foi de mal a pior. No Brasil, tampouco temos enfrentado ventos favoráveis nestes quesitos. A extrema direita vem se fortalecendo em todo o mundo. Qual você acredita ser o papel da música urbana em tempos tão obscuros?

SH

Veja, o papel da música creio que está muito cooptado pelas indústrias monstruosas e admiro muito os artistas da música urbana, mas não creio que seja uma obrigação, por parte dos artistas, de opinar ou dar sua palavra acerca do tema. Muita gente não tem uma opinião formada e não creio que isto seja algo ruim. Acho que existem muitos artistas muito jovens na música urbana. Me parece lindo quando dizem algo, quando podem se pronunciar a favor dos direitos humanos, das ações democráticas, da liberdade de expressão, é muito lindo. Mas não julgo os que não o fazem.

“Creio que seria importante que aqueles que tem suas vozes amplificadas, porque estão na indústria e no mainstream, se posicionassem e dissessem o que está acontecendo, porque vivemos em países onde uma enorme parte das pessoas passa fome e frio.”

Por outro lado, me encantaria que fossem mais responsáveis todos, que sentissem que as coisas estão bastante tristes, porque a mensagem do governo é delirante e me parece a mensagem de um extermínio, de uma homofobia, de uma xenofobia e de uma apatia com o humano que são aterrorizantes. Então sim, creio que seria importante que aqueles que tem suas vozes super amplificadas, porque estão na indústria e no mainstream, se posicionassem, que dissessem o que está acontecendo, porque vivemos em países onde uma enorme parte das pessoas passa fome e frio. Acho que há muitos artistas e muitas mulheres artistas que tem essa consciência e talvez não lhe seja fácil falar disto, mas espero que com o tempo possam se pronunciar.

JV

Se você tivesse que eleger apenas uma causa social, qual te pareceria mais Urgente Hoy’?

SH

Não poderia escolher uma única luta social. Há uma urgência de tudo porque o sistema é extremo, a produção é extrema e, portanto, a miséria é extrema. Há cada vez mais pobres. Cada vez mais crescem a Amazon, o Mercado Livre… não sei… creio que urgente hoje seria deixar de consumir, o que, por sua vez, percebo impossível, porque os monstros industriais seguem crescendo. Não sei. Defender a liberdade de expressão e de manifestação nas ruas que se veem tão avassaladas hoje em dia, sobretudo na Argentina. Me parece urgente acompanhar a luta de anos das avós e mães de maio, como for possível. Isto é o que me parece urgente.

JV

O que podemos esperar do show de 19 de julho em São Paulo?

SH

O que podem esperar do 19 de julho em que vamos estar no Sol Y Sombra é um show efusivo. Vou com todas as ganas porque para mim é uma honra ir ao Brasil. Adoro a sua cultura e adoro essa possibilidade que tenho com o pessoal do Sol Y Sombra que é sempre um amor comigo e que fez muito para que a minha música estivesse também tocando em São Paulo, em um lugar tão charmoso, em um ambiente que já imagino maravilhoso de imigrantes latino-americanos no Brasil. Vou com todas as ganas! Vou tocar músicas antigas, do início da minha carreira e alguns temas novos. Vamos dançar e explodir em uma noite brilhante!

Aqui tem uma playlist para que você se contagie pela poesia urbana politicamente engajada, que fala de amor e de luta, e para que conheça a potente face transfeminista da música latino-americana que emana das ruas. 

Fica também o convite para que você venha bailar este corpo latino e tomar uns tragos de felicidade e rebeldia ao som de Sara Hebe no Sol Y Sombra, onde o movimento revolucionário dos quadris é sempre garantido. O show é na próxima sexta-feira e nós te esperamos por lá.

Sobre os autores

é uma rapper argentina. O gênero dominante no trabalho dela é o rap, mas ela também tem músicas na fronteira do funk, punk rock, reggaeton e cumbia.

é escritora, editora, comunista e carioca.

Cierre

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Published in América do Sul, Cidades, Cultura, Entrevista and Música

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