Após a escrita desse artigo, a Suprema Corte da Venezuela terminou, em 22 de agosto, a auditoria em todo material impresso e virtual das eleições presidenciais de 28 de julho, e confirmou que o referido material corresponde ao resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Ou seja, não houve fraude. Seguem as investigações sobre os ataques hacker que interromperam a contagem dos votos na noite da apuração. O resultado final das eleições será publicado em diário oficial pelo CNE, a partir do qual se encerra a polêmica eleitoral no país.
Em nível internacional, no entanto, a questão tomará outro rumo. Como salientado no texto abaixo, o resultado continuará sendo desacreditado, não devido a atas ou boletins, mas porque não venceu a candidatura da direita e do grande capital. Cabe ao menos aos governos progressistas da América Latina não caírem na armadilha de questionar decisões da Suprema Corte de outro país, ou abrirão um enorme flanco para que a desestabilização com a qual a Venezuela foi atacada também se materialize em seus próprios processos eleitorais. Vale lembrar: as forças de esquerda desses países não possuem a mesma musculatura social do chavismo para resistir a um golpe de tamanha força.
No dia 28/07, Nicolás Maduro foi reeleito presidente da Venezuela com 51,1% dos votos. Em roteiro repetido, a oposição de extrema direita acusa fraude sem apresentar provas, sendo endossada pelos Estados Unidos e governos subservientes, como Javier Milei na Argentina. Mas, para além da repetida postura de mau perdedor, o que explica as sucessivas derrotas da oposição venezuelana?
Primeiro ponto: os aspectos internos da oposição que se dividem em dois agrupamentos. O primeiro, a direita tradicional organizada pela AD e o COPEI. Essas siglas são representantes da chamada “Quarta República”, a ordem liberal que existia antes da Revolução Bolivariana. São forças desacreditadas perante a população e sobrevivem elegendo alguns parlamentares e mantendo um ou outro governo estadual ou municipal. Uma espécie de “Centrão” local, porém com muito menos força do que seu equivalente brasileiro. Se tornou um ator ultrapassado e perdeu a interlocução preferencial com os Estados Unidos.
“Ao contrário do que é propagandeado sobre o país, a Revolução Bolivariana sempre estimulou as eleições e os referendos como forma de participação popular na tomada de decisões.”
O outro agrupamento de oposição é a extrema direita. Pela demonização costumaz da Venezuela na imprensa empresarial, pouca gente notou que antes de Trump, Bolsonaro ou Milei, foi a direita venezuelana a primeira a passar pelo processo de fascistização no continente. Mudando de líderes a todo momento (Henrique Caprilles, Leopoldo López, Juan Guaidó, Maria Corina Machado) e criando frágeis coligações que sobrevivem apenas por um ciclo eleitoral, brigam entre si pelos dólares de Washington no lucrativo negócio da “dissidência política”. Ao longo dos anos sempre optaram pela abstenção eleitoral e investiram no golpe de Estado: tentativas de fracionar as Forças Armadas, atos terroristas, magnicídio e até clamor de invasão do próprio país pelos EUA foram insistentemente realizados na última década. Sua defesa de “eleições democráticas” é pura cortina de fumaça e a maior parte da população do país assim a vê.
Segundo ponto: a cultura político-eleitoral cultivada pelo chavismo. Ao contrário do que é propagandeado sobre o país, a Revolução Bolivariana sempre estimulou as eleições e os referendos como forma de participação popular na tomada de decisões. Isso criou uma cultura política no povo venezuelano de que as coisas se resolvem pelo voto. As repetidas tentativas de golpe da extrema direita cansaram inclusive sua própria base social, que desistiu da insurreição ao perceber que o “golpe mortal contra o regime” era sempre anunciado, mas nunca concretizado. Em um país onde o voto não é obrigatório, o primeiro desafio é convencer sua base social de que a vitória eleitoral é possível, e isso, o fascismo venezuelano nunca conseguiu – na maioria das vezes sequer tentou, se posicionando pela abstenção. Mesmo com a perda parcial de apoio do chavismo devido à crise econômica imposta pelas sanções internacionais, isso não se traduziu em uma transferência de votos para a direita. A desilusão de parte do eleitorado o afastou da participação, mas não o tornou de oposição.
Terceiro e mais importante ponto: o chavismo não é um “governo progressista”. É uma Revolução Socialista em curso. Chávez e Maduro são expressões da classe trabalhadora venezuelana que subverteram a ordem liberal de dentro para fora e formularam uma das mais avançadas constituições do mundo, com inovações econômicas, políticas e ideológicas que rompem com a lógica capitalista.
“A demonização da Venezuela é uma necessidade das forças conservadoras porque recolocou o socialismo de volta no mapa-múndi no momento de maior retrocesso para os revolucionários na história.”
É isso que a direita mundial (e até mesmo alguns vacilantes setores de esquerda) não querem admitir. A demonização da Venezuela é uma necessidade das forças conservadoras porque recolocou o socialismo de volta no mapa-múndi no momento de maior retrocesso para os revolucionários na história. O chavismo organiza cada bairro, cada rua, repassando decisões antes concentradas no Estado para a auto-organização popular: empresas expropriadas e dirigidas de maneira mista pelo poder público e os próprios trabalhadores; investimentos do Estado que são decididos por assembleias de moradores, e não pelo vereador de ocasião; os meios de comunicação estatais e comunitários têm recursos para disputar hegemonia com os meios privados – abertamente de oposição. No momento do voto, essa base organizada e conscientizada é ativada e forma uma força eleitoral invicta nos últimos 25 anos (7 eleições presidenciais vencidas), dando uma margem segura para o chavismo.
Esse sim, é o problema real das eleições venezuelanas: o resultado. Não pode ser admitido pela ordem capitalista internacional que uma força antissistema vença. Não importa quantas “atas descentralizadas” ou observadores internacionais existam, os resultados nunca serão admitidos enquanto o chavismo vencer. É uma manifestação político-eleitoral da luta de classes de ressonância mundial, especialmente no contexto latino-americano e caribenho. A vitória de Maduro sacramenta a continuidade da nova institucionalidade criada pela Revolução e o protagonismo de sua base popular em um momento em que as dificuldades econômicas impostas pelo bloqueio começam a ser superadas.
Contra as sanções internacionais, as tentativas de golpe e invasões, atos terroristas, pressão estadunidense, contra Trump, Milei, contra a reinsurgência fascista no mundo, venceu a esquerda revolucionária e o povo venezuelano. Uma vitória que todos os setores populares e progressistas devem defender e que demonstra que a melhor forma de enfrentar o fascismo é não fugir do combate.
Sobre os autores
é Professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Programa de Extensão Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (PROPED-UERJ) e Secretário-executivo da Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da UNESCO (REGGEN-UNESCO).