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Um participante do Burning Man, de Las Vegas, exibe um sorriso sarcástico usando uma fantasia de Elvis Presley em 6 de setembro de 1998, no Deserto de Black Rock, Nevada. (Mike Nelson / AFP via Getty Images)

A gentrificação do Burning Man era inevitável

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Tradução
Priscila Marques

O Burning Man queria escapar dos males do capitalismo. Mas acabou recriando-os.

O Burning Man pode parecer o “escape” definitivo da realidade capitalista: um encontro anual no Deserto de Black Rock, em Nevada, repleto de pirotecnia, nudez, entorpecentes, robôs e veículos bizarros. A cidade temporária que os participantes criam a cada agosto, chamada Black Rock City, não tem patrocínios corporativos nem anúncios — nem mesmo há troca de dinheiro.

Você pode pensar que passar uma semana e meia acampando no deserto soa como o ápice de “viver na dureza”. No entanto, o Burning Man está se tornando cada vez mais um domínio dos ricos. O festival evoluiu ao longo de trinta e cinco anos, de um evento pequeno formado por hippies, andarilhos e artistas, para um acontecimento imperdível da elite global, comparável a Art Basel, Cannes, Coachella e o Met Gala. Entre os titãs da indústria, os barões da tecnologia são particularmente apaixonados pelo festival — tanto que os cofundadores do Google usaram o Burning Man para avaliar potenciais CEOs, e Jeff Bezos, Elon Musk e Mark Zuckerberg estão entre seus fãs. À medida que os preços de participação aumentam a demografia muda, os participantes com menos recursos têm sido cada vez mais excluídos.

O fato de o Burning Man se tornar uma fuga para os membros do “um por cento” nem sempre foi assim. Nos primeiros episódios, o Burning Man era uma experiência verdadeiramente alternativa, um santuário para desajustados e libertinos. Frequentadores de longa data com quem conversei ao longo dos anos o descrevem de forma elogiosa, como algo mais “real” do que o mundo real (ou o “mundo padrão”, como dizem os Burners). Muitos veem ser Burner como uma parte crucial de sua identidade.

Sinto grande empatia por aqueles que encontram identidade e significado na vida na “playa”. Independentemente da posição social, a maioria de nós pode se identificar com os sentimentos profundos de alienação provocados pela vida sob o capitalismo contemporâneo, onde a maioria de nossas interações sociais diárias é mediada pela troca de dinheiro, nosso trabalho é explorado, e a excentricidade é socialmente inaceitável. O Burning Man é um escape da natureza transacional de nossas vidas sociais no capitalismo.

Dentro do templo no Burning Man 2021 (Wikimedia Commons).

Esses sentimentos utópicos, entretanto, não são o que a maioria de nós pensa ao lembrar do Burning Man. Pelo menos, não mais. Em algum momento das últimas duas décadas, a reputação do Burning Man passou de excêntrica a comum. Hoje, quando pensamos no Burning Man, é mais provável que nos venham à mente os engenheiros de software e CEOs que gentrificam o evento.

A cobertura anual da imprensa, que acompanha o início do festival no final de agosto, agora se inclina a destacar a riqueza insana e o excesso que os rodeiam. O Burning Man se tornou um lugar para onde as start-ups enviam seus funcionários de graça, onde uma empresa de jatos particulares vende voos de ida e volta por $55.000, e onde “acampamentos turnkey” permitem que os super-ricos paguem cinco ou seis dígitos para que um exército de “sherpas” faça todo o trabalho e prepare o acampamento antes de sua chegada. A organização sem fins lucrativos que gerencia o Burning Man tentou desencorajar os acampamentos turnkey, com sucesso limitado. Agora, 59% dos participantes do Burning Man ganham mais de seis dígitos, como reportou o San Francisco Chronicle no ano passado.

Histórias sobre o tipo de luxos que os ricos levam ao Burning Man têm causado desagrado em muitos observadores, alguns dos quais expressaram publicamente o schadenfreude (que significa na tradução do alemão um sentimento de satisfação pela desgraça alheia) em 2023, quando o Burning Man foi interrompido por uma tempestade que tornou as condições extremamente difíceis, atolando carros na lama e prendendo milhares de pessoas. De fato, quem não riria de um grupo de capitalistas encharcados tendo que racionar comida e usar um balde como banheiro por alguns dias?

Esta é uma mudança drástica em relação aos primeiros anos do Burning Man. O evento deveria ser algo que desafiaria o mundo e nos despertaria para a superficialidade da vida sob o capitalismo de consumo. Os Burners deveriam sair da “playa” transformados, mais generosos e altruístas. No entanto, isso não aconteceu. CEOs participaram, mas não voltaram distribuindo sua riqueza ou defendendo sua redistribuição. Grover Norquist e outros conservadores se tornaram fãs sinceros do evento. E, à medida que os anos passaram e o estereótipo do Burner foi se inclinando mais para o “brogrammer” do que para o alternativo, a ideia de que o festival tinha algum potencial radical foi desaparecendo da consciência pública.

“A natureza laissez-faire do Burning Man o tornou suscetível a ser manipulado pelas pessoas com mais recursos.”

Como um festival para hippies excêntricos e entusiastas de carros de arte libertários se transformou em um marco da cena global de festas, no domínio dos altos executivos do Vale do Silício, amado pela direita libertária?

A verdade é que a natureza laissez-faire do Burning Man o deixou suscetível a ser manipulado pelas pessoas com mais recursos. Considerando que os supostos princípios “radicais” subjacentes ao festival nunca foram particularmente claros ou realmente radicais, sua transformação em um parque de diversões para os ricos era quase inevitável.

O arco da gentrificação

As histórias dos primeiros dias do Burning Man parecem ingênuas, considerando sua enormidade atual. Na década de 1980, um grupo de amigos, incluindo Larry Harvey e Jerry James, que organizavam festas na Baker Beach, em São Francisco, celebravam com a queima de um boneco de madeira. A partir de 1990, o boneco inflamável ficou tão grande que os oficiais do parque se opuseram, o grupo transferiu o evento mítico para o Deserto de Black Rock, em Nevada, obtendo permissões do Bureau de Gestão de Terras. Aquele deserto plano e hostil era perfeito para seu experimento de “autoexpressão radical”, como eles chamavam. O evento (os Burners odeiam quando você chama-o de “festival”) rapidamente desenvolveu sua própria cultura, costumes e princípios. Entre os princípios subjacentes estão a suposta prática de “inclusão radical”, “desmercantilização” e “autoexpressão radical”.

O festival cresceu rapidamente. Em 1990, no primeiro ano em que ocorreu no Deserto de Black Rock, 350 pessoas participaram. Em 1995, esse número já havia aumentado para quatro mil, e nos anos 2010, ele passou a receber regularmente mais de setenta mil pessoas. Durante um pouco mais de uma semana, Black Rock City é mais populosa do que Hoboken, em Nova Jersey.

Mas a evolução e o crescimento do Burning Man seguiu um arco de gentrificação que qualquer pessoa que vive em um bairro poderia ter previsto.

A palavra “gentrificação” talvez não seja totalmente adequada, pois o Burning Man não é um bairro permanente da mesma forma que, por exemplo, Greenwich Village, em Manhattan. No entanto, a mudança demográfica e social que ocorreu no Village é estranhamente semelhante ao que aconteceu no Burning Man.

A cronologia da gentrificação segue aproximadamente este padrão: em grandes cidades, bairros com aluguéis baixos, oferta de moradia e acesso ao transporte começam a atrair artistas. Essas pessoas de fora convivem com os residentes da classe trabalhadora local, mas seu status social os torna inquilinos mais desejáveis para os proprietários. Em seguida, especuladores veem essa presença como motivação para aumentar os aluguéis, alegando que há mais “cultura” para consumir, o que inicia um ciclo de desenvolvimento e exclusão.

Com o tempo, o “charme” do bairro, criado pela presença inicial dos artistas, eleva os valores das propriedades e desloca os antigos moradores. Eventualmente, o local se torna um bairro completamente gentrificado, com poucos ou nenhum trabalhador remanescente. Os símbolos da cultura artística e da classe trabalhadora podem permanecer, mas as pessoas que trouxeram essa cultura desaparecem. Esse é o destino de lugares como Williamsburg, no Brooklyn, o Haight, em São Francisco, Echo Park, em Los Angeles, e muitos outros bairros.

“A evolução e o crescimento do Burning Man seguiram um arco de gentrificação que qualquer pessoa que vive em um bairro desejado ter previsto.”

Notavelmente, a gentrificação não seria um processo inevitável, como os proprietários que a promovem gostariam que você pensasse: regulamentações sobre quem pode possuir moradia, controle de aluguel, habitação social e cidades com controles democráticos fortes sobre o desenvolvimento, podem prevenir o deslocamento de pessoas da classe trabalhadora. Mas, nos Estados Unidos, onde a maioria das leis das cidades são elaboradas para favorecer desenvolvedores e proprietários, a gentrificação frequentemente parece incontrolável.

Como a Black Rock City não possui regulamentações civis reais — não é uma “cidade de verdade” com uma carta ou um conselho municipal eleito ou proposições para votar — a gentrificação foi sem freio. O prestígio cultural do Burning Man atraiu participantes mais abastados, que desgastaram o ethos do evento. Os preços dos ingressos aumentaram exponencialmente — de $35 em 1995 para entre $575 e $1.400 em 2024. Existem ingressos de “baixa renda”, embora seja necessário se inscrever para obtê-los. A renda média dos participantes aumentou de forma constante.

Enquanto isso, a estratificação da riqueza tornou-se cada vez mais visível, materializada na diferença entre como os ricos vivenciam o Burning Man e como você ou eu o vivenciamos. Na última vez que fui — com um ingresso de “bolsa de estudos” para o qual tive que me inscrever, em um programa que não existe mais — passamos seis horas em um engarrafamento sob um calor escaldante esperando para entrar. Em termos de alimentação, meus amigos e eu nos sustentamos principalmente de mix de frutas secas, cerveja quente e feijão enlatado. Acampamos do lado de fora, o que significava que, no deserto exposto, nossa barraca estava fria no momento em que o sol se punha e se tornava uma estufa assim que a alvorada chegava. As paredes de lona não ofereciam barreira contra o som da música house e techno, que pulsava 24 horas por dia, provenientes de casas noturnas improvisadas e dos sistemas de som de carros mutantes.

Um carro de arte no Burning Man 2013 (Wikimedia Commons).

Enquanto isso, os ricos estavam chegando ao Burning Man na pista de pouso temporária, contornando o engarrafamento. Eles não precisavam montar barracas, nem iriam — um exército de trabalhadores estava à disposição para construir suas luxuosas acomodações. E quanto ao controle climático? Os ricos trazem geradores, ar-condicionados, colchões de verdade em tendas instagramáveis dignas até com lustres. E nada de comida enlatada — chefs particulares, caminhões de comida e até lagostas estão mais à altura deles.

Isso também reflete a experiência do mundo real de viver em uma cidade que está se gentrificando rapidamente, como São Francisco ou Nova York: a proximidade chocante entre as classes baixa e alta, muitas vezes a poucos metros uma da outra, arranha-céus ao lado de cooperativas, ao lado de cortiços, ao lado de acampamentos de sem-teto.

Sem qualquer forma de os participantes atuarem democraticamente na vida cívica, Black Rock City está longe de ser uma democracia. Sendo administrada por uma organização sem fins lucrativos, as prerrogativas do Burning Man são dirigidas por seu conselho — que, como a maioria dos conselheiros de organizações sem fins lucrativos, é composto principalmente por empresários, incluindo Kimbal Musk, irmão de Elon Musk. Da mesma forma, a disposição física da temporária Black Rock City é ditada por aqueles com recursos, que podem arcar com os custos de trazer mais coisas e pagar trabalhadores para construir para eles. Não há igualdade ou democracia na forma como a cidade se manifesta e por parte de quem desfruta da “playa”.

Trazendo o capitalismo — e todos os seus males — para a festa

Embora o Burning Man funcione como uma economia alternativa, uma vez que você entra, isso não significa que a estratificação e a exploração ficam para trás. Há muito trabalho acontecendo no Burning Man, tanto para os participantes ricos que pagam trabalhadores para tornar seus acampamentos incríveis, quanto para a própria organização. Se você olhar os anúncios de emprego no norte da Califórnia e em Nevada agora, encontrará muitos anúncios para cozinheiros e construtores para acampamentos particulares. E os trabalhadores que atuam para o próprio Burning Man, tanto pagos como voluntários, frequentemente enfrentam condições precárias — e, em alguns casos, são notificados acidentes de trabalho.

Em 2014, Kelli Hoversten estava trabalhando como voluntária na “playa”, parte de um grupo de “rangers” que ajudam a mediar problemas e a fornecer assistência quando necessário. Enquanto trabalhava perto da efígie central, lasers apontados por participantes desconhecidos a deixaram cega de ambos os olhos. Embora tenha recebido atendimento médico imediato, o dano foi irreparável. Ela agora é legalmente cega.

Após seu acidente, Hoversten enfrentou desafios significativos para garantir a compensação trabalhista adequada. Ela afirma que a empresa disse incorretamente para ela registrar o pedido em seu estado natal, Missouri, em vez de Nevada, e ela perdeu o prazo de noventa dias para reivindicações em Nevada. Depois de uma longa luta, ela recebeu compensação trabalhista através do estado de Nevada. No entanto, a própria organização do Burning Man nunca lhe ofereceu nada em forma de restituição real. Eles uma vez lhe ofereceram um modesto acordo de $10.000 — por uma vida de cegueira — apenas se ela também concordasse em assinar um acordo de confidencialidade. Hoversten recusou.

“Eles não se importam”, disse Hoversten em uma entrevista. “Minha liberdade se foi.”

Desde o acidente, Hoversten afirmou que foi prometido a ela várias vezes por fundadores e membros da equipe que haveria algum tipo de acordo por parte do Burning Man. Isso nunca se concretizou. “Eles mentiram para mim”, disse ela prontamente.

A ironia, ela observa, é que a organização é extremamente rica. “Eles compraram metade de Gerlach, Nevada, desde então”, disse Hoversten. “Mas não há dinheiro para me ajudar a manter a fazenda da minha família. E [a CEO] Marian [Goodell] ganha um quarto de milhão de dólares por ano”, acrescentou.

As declarações do IRS mostram que a compensação de Goodell em 2022 foi ainda maior do que um quarto de milhão — $346.747. Os documentos também afirmam que o Burning Man Project possui $22,7 milhões em ativos líquidos.

Hoversten disse que desistiu do sonho de manter a fazenda dos pais, pois não pode mais trabalhar. Macabramente, o Burning Man ofereceu à Hoversten um par de ingressos gratuitos todos os anos e reembolsa alguns custos de viagem, embora ela diga que em alguns anos eles se esqueçam de enviá-los.

“Não há igualdade ou democracia na forma como a cidade se manifesta e por parte de quem desfruta da ‘playa’.”

Os funcionários pagos que trabalham para a organização sem fins lucrativos e que estão envolvidos no trabalho físico de instalação da infraestrutura básica, há anos relatam maus-tratos, condições brutais e demissões injustas de pessoas que se envolveram em organizações trabalhistas. E os trabalhadores manuais que constroem a infraestrutura básica que torna a festa possível, alegam que a organização mãe do Burning Man não paga benefícios, nem oferece assistência médica além de um médico no local — e se certifica de que seus contratos durem apenas seis meses ou menos para evitar ter que pagar benefícios de desemprego. Destaco que a equipe do Burning Man não respondeu aos meus pedidos feitos de resposta.

Ricardo Romero trabalhou manualmente para o Burning Man por nove anos, de 2008 a 2017, ajudando com a infraestrutura para o evento. Romero me contou que viu vários trabalhadores serem demitidos por reclamarem de maus-tratos ou por se levantarem ao ver colegas sendo explorados. Depois que ele começou a organizar os trabalhadores para formar um sindicato, foi solicitado que não retornasse para a temporada de 2018.

Romero acredita que foi demitido por causa da organização trabalhista, embora a empresa negue. Romero também apresentou uma reclamação ao Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB) e, no final, venceu: o NLRB concordou que ele foi retaliado e recebeu um acordo.

Uma placa indica o caminho para o Burning Man em 2008 (Wikimedia Commons).

Mas a estatística mais chocante em relação às condições de trabalho é o número de trabalhadores que morreram, seja por suicídio ou por causas associadas ao desespero. Sete dos colegas de trabalho de Romero morreram por suicídio entre 2009 e 2015 — uma taxa per capita surpreendentemente alta, considerando que o número de trabalhadores e voluntários era de apenas mil, como Romero e seus colegas observaram em uma carta aberta enviada à administração.

Dadas essas condições de trabalho, o Burning Man parece não ser tão diferente do “mundo padrão” que supostamente critica: uma organização sem fins lucrativos que sobrevive da generosidade dos ricos, atende aos seus caprichos e espelha sua propensão para o mau-trato e a exploração dos trabalhadores.

Um mundo sem regras

Durante meu tempo no Burning Man, vi algumas artes fantásticas. Robôs de aço do tamanho de carros, cujos motoristas me deixaram sentar na cabine, como se eu fosse um copiloto de MechWarrior em um planeta alienígena. Uma cúpula geodésica cercada por espectadores escaladores assistindo a lutas de gladiadores no centro, uma referência ao Thunderdome de Mad Max. Um bar que estava a três metros do chão, acessível apenas por meio de pernas-de-pau.

Foi revigorante ver adultos brincando, compartilhando esses tipos de experiências raras e alegres. No entanto, essas experiências não eram revolucionárias. As alegações frequentemente feitas pelos Burners — de que o Burning Man é um modelo para uma sociedade pós-capitalista e igualitária, que de alguma forma transformaria normies em radicais — estão claramente equivocadas. É uma festa de arte divertida e um ambiente ideal para usar drogas. Mas o evento é distorcido pela riqueza e por quem pode pagar para proporcionar um bom tempo na “playa”. Sua natureza anárquica o torna uma boa ilustração das limitações do libertarianismo.

Os mais fundamentalistas entre os laissez-faire aspiram a um mundo sem bem-estar social, sem governo algum para construir estradas ou fornecer serviços sociais. Isso é o que o Deserto de Black Rock representa durante dez meses do ano: uma lousa em branco. Depois que trabalhadores como Ricardo erguem a infraestrutura básica, os participantes trazem tudo — as estruturas, arte, veículos, comida, abrigos e experiências são disponibilizadas pelos participantes que dirigem, voam ou (ocasionalmente) andam de bicicleta.

Para um libertário, isso visaria uma ideia de igualdade: uma paisagem com quase nenhuma regra, construída por indivíduos unicamente através de suas próprias mãos, em um mundo onde todo trabalho é valorizado igualmente. Parece utópico, certo?

Mas na prática, não funciona dessa forma, porque nem todos têm os mesmos meios. Bilionários e milionários chegam e distorcem o festival com seu poder — eles não precisam nunca sujar as mãos, pois podem comprar o trabalho dos outros. E nunca estão satisfeitos com a experiência “normal”. Eles são ricos, e ser rico significa que as pessoas servem a você, e que você possui um grau de liberdade de movimento que os outros não têm. E como o Deserto de Black Rock é intencionalmente um lugar sem regras, há pouco que alguém pode fazer para impedi-los de reconfigurá-lo.

Sem os efeitos distorcivos da riqueza, o Burning Man poderia parecer diferente. Não seria perfeito ou igualitário, mas provavelmente seria mais próximo do tipo de festa que os Burners de longa data imaginavam.

Tempestade de poeira atinge o Burning Man em 2009 (Wikimedia Commons).

Eu conheci uma vez o falecido cofundador do Burning Man, Larry Harvey, e perguntei a ele sobre essa contradição. Isso foi em 2016, na Suíça, onde um grupo de estudantes de negócios me levou a St. Gallen para conhecer Harvey. Eles haviam lido meu artigo de 2015 na Jacobin sobre o Burning Man e queriam conversar.

Sentado na loggia da Universidade de St. Gallen, em um círculo de acadêmicos e estudantes, Harvey se lamentou sobre os males do consumismo e dos celulares, implicando que o Burning Man era uma espécie de antídoto para nosso mundo socialmente estagnado. Perguntei a ele se não achava irônico que a elite do Vale do Silício — o tipo de pessoas que ganha a vida nos distraindo com celulares, incentivando o consumo — amasse tanto o Burning Man.

Harvey contou uma história sobre ter jantado com o cofundador do Google, Sergey Brin, e sua esposa. Ele parecia radiante ao relembrar o momento no final do jantar em que Brin doou algumas bicicletas para o Burning Man.

“Eu estava olhando para [Brin] e sua esposa, e ele estava olhando para mim e minha esposa, e havia tanto amor ali, e eu pensei em como o ambiente estava cheio de tanto amor”, disse Harvey, em um tom de felicidade.

Tenho certeza de que a experiência foi significativa para Harvey. Mas sua justificativa soava vazia e muito estranha. As pessoas que doam coisas são legais e amorosas, portanto, estão bem. Ele estava muito longe de responder à minha pergunta, muito menos de realmente considerar suas implicações.

Tenho certeza de que alguns bilionários são agradáveis para se estar junto, mas isso não significa que não estejam destruindo o planeta. E eu sei que o Burning Man é uma ótima festa, mas isso não significa que trata bem seus trabalhadores.

Isso não quer dizer que não seja ainda uma viagem e (para alguns) um bom momento — até mesmo uma experiência profunda e reveladora. Algo assim, é quase certo que não poderia ser criado hoje, sem que as corporações se apossassem de seu DNA. Todos os festivais comparáveis, de Coachella a Bumbershoot, são espetáculos de publicidade e patrocínios corporativos, espaços altamente vigiados e regulamentados, administrados por CEOs de entretenimento cínicos e gananciosos.

Uma festa de arte pirotécnica no deserto sem anúncios de refrigerantes, sem dinheiro, sem filas para pegar uma pulseira para comprar uma cerveja de $14? Há algo ali, mesmo que seja apenas uma distração bem-vinda da vida cotidiana monótona. Com certeza seria muito mais divertido em um mundo sem exploração, sem bilionários.

Sobre os autores

é um escritor freelance e estudante de pós-graduação da Bay Area.

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Published in América do Norte, Análise, Arte, Cultura and Gente rica

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