Jonathan Chait, articulista da revista New York, publicou recentemente uma série de artigos atacando a nova geração de “marxistas” – sintetizados na figura da Jacobin – pela absolvição de “Lenin, Stalin e Mao” de seus crimes.
Para Chait, todos os socialistas são marxistas e todos os marxistas rezam pela mesma cartilha. Ele alega que “governos marxistas atropelam direitos individuais porque a teoria marxista não se preocupa com direitos individuais. O marxismo é uma teoria de justiça de classe”.
Chait diz que o ressurgimento contemporâneo pelo socialismo nega as benesses do liberalismo e defende restrições de falas em universidades, incluindo esforços para cancelar comícios de Trump.
O título do primeiro ataque de Chait, “Lembrete: o liberalismo está funcionando e o marxismo sempre fracassou”, reflete sua cegueira em relação aos 40 anos da crise do progressismo do New Deal e de sua substituição por um regime neoliberal de desregulamentações econômicas, privatizações, ataques aos direitos sindicais e cortes de impostos que redistribuem a riqueza na direção do topo da pirâmide.
Chat está preocupado que o aumento da atração dos jovens pelo socialismo e a campanha de Bernie Sanders possam empurrá-los por um caminho escorregadio rumo a um comunismo autoritário.
Mas, o interesse recente dos millennials pelo socialismo não é produto de visões ingênuas sobre as maravilhas dos planos quinquenais. Ao contrário, eles reconhecem que o “triunfo do capitalismo” lhes legou um mundo de trabalho ocasional, baixos salários, dívida estudantil pesadíssima e um futuro incerto.
Chait conjura imagens de jovens marxistas defendendo gulags. Na realidade, a maioria dos entusiastas de Sanders defende um retorno ao próprio liberalismo progressista do New Deal que Chait afirma defender. Eles não querem “coisas de graça”, querem um sistema de impostos progressivos que expandisse os bens públicos e que reduzisse a vulnerabilidade individual em relação ao mercado.
Esses ganhos “liberais” ocorrem apenas quando uma esquerda socialista forte obriga elites políticas moderadas a expandir os direitos sociais. Mas, em uma economia globalizada, isso só é possível se a esquerda reconstruir o poder da classe trabalhadora em relação ao capital numa escala internacional.
Alcançar isso demanda novas formas de organização e estratégia política. É por isso que jovens ativistas e intelectuais se sentem atraídos por ideias e veículos de comunicação socialistas.
Vamos ler Marx pela ótica marxista, não pela leitura enviesada de Chait
Mas e as acusações de Chait de que os marxistas seriam hostis às liberdades políticas e civis? Sem dúvida, as ideologias de Estado dos regimes marxista-leninistas dispensavam as liberdades civis como meros “direitos burgueses”. Contudo, os ativistas, socialistas democráticos e comunistas dissidentes seguiram defendendo esses direitos de forma inabalável, tanto como benéficos pelas suas próprias virtudes, quanto pela necessidade de organização política da classe trabalhadora.
Em A questão judaica, Marx sustentou que a ausência de democracia social e econômica torna os direitos civis e políticos menos valiosos e que os direitos civis sob o capitalismo frequentemente priorizam os direitos de propriedade acima dos direitos individuais. Na concepção de Marx, a “liberdade de expressão” é muito mais valiosa para as empresas donas da mídia de massas do que para os pobres. O valor da ideia de “uma pessoa, uma voz e um voto” acaba sendo erodido quando os recursos financeiros podem ser convertidos em poder político.
Mas Marx também avisou em O 18 de Brumário de Luis Bonaparte e em Guerra Civil na França que regimes autoritários que eliminam liberdades civis e políticas básicas eram uma ameaça à liberdade. Seu panfleto de 1875, Crítica ao Programa de Gotha, atacou a liderança de Ferdinand Lassalle no Partido Socialista Operário da Alemanha (o precursor do Partido Social Democrata) porque ele defendia o regime autoritário de Bismarck.
Lassalle apontava para os esquemas de seguridade social de Bismarck (incluindo o seguro nacional de saúde) que beneficiavam os trabalhadores. Marx sustentava que o movimento dos trabalhadores não deveria nunca abraçar um governo que retira seus direitos políticos de se organizar livremente.
O próprio Manifesto Comunista termina com um emblemático chamado aos trabalhadores para que derrubem os regimes aristocráticos e então vençam a “batalha pela democracia”, lutando pelo comunismo.
Cumprindo as promessas liberais
Os socialistas democráticos acreditam que a democracia capitalista é capitalista demais para ser totalmente democrática. Ao lutar pela extensão da democracia para a esfera econômica, os socialistas buscam ir além da democracia liberal ao mesmo tempo em que realizam os seus objetivos: o florescimento da individualidade humana e a capacidade de todos de ter uma voz equivalente das instituições do governo que afetam a vida cotidiana.
Esses objetivos só podem ser atingidos se a sociedade proporciona garantias institucionais aos direitos civis e políticos e aos bens necessários para o desenvolvimento do potencial humano (coisas como acesso à saúde, moradia, educação, cuidados na infância e na terceira idade).
Os socialistas estendem o conceito liberal de autodeterminação democrática por meio da luta pela extensão da democracia no ambiente de trabalho e para alcançar o controle social sobre aquilo que produzimos (e como produzimos) e sobre como alocamos o excedente criado.
Chait, que não parece ter lido muito Marx, para não falar do pensamento marxista do século XX, mistura tudo – da social democracia de esquerda ao anarco-comunismo libertário – com o estalinismo.
Marxistas-leninistas ortodoxos de fato se valeram da visão por vezes reducionista de Marx sobre política apenas como um conflito de classes para argumentar que, numa sociedade sem classes, a questão de como organizar a sociedade seria puramente administrativa e tecnocrática. Contudo, quase todos os socialistas hoje em dia acreditam que os conflitos políticos e sociais continuariam a existir sob o socialismo, só que em formas mais humanas do que sob o capitalismo.
O debate e a deliberação democrática, ao invés de um partido único e onisciente, deverão determinar como a sociedade organiza coisas como o cuidado, a moradia, a vida cultural e a mobilidade.
Tampouco Chait está ciente da longa tradição “socialista liberal” que remonta ao líder socialista francês Jean Jaurés, do período anterior à Primeira Guerra Mundial, e a Carlo Rosselli, o antifascista italiano autor de Socialismo Liberal. Ambos afirmam que apenas uma sociedade socialista democrática pode atingir os mais notáveis objetivos do liberalismo: a possibilidade de cada ser humano de desenvolver livremente suas capacidades.
Em um ensaio de 1977 na revista Dissent, “Socialism and Liberalism: Articles of Conciliation?” [“Socialismo e liberalismo: artigos conciliáveis?”, em tradução livre], Irving Howe argumentou que os liberais que compreendem que as corporações são instituições antidemocráticas e governadas hierarquicamente (ao invés de organizações criadas por uma série de “contratos livres”), com frequência abraçam o socialismo democrático.
Socialistas criticam a romântica concepção lockeana dominante de que cada um de nós possui nossa própria terra, ferramentas e trabalho e pode determinar seu próprio destino mediante o esforço individual. Eles apontam para o fato de que os valores liberais só podem ser alcançados se os direitos de propriedade corporativos forem extirpados do cânone liberal.
Ainda, feministas antirracistas e socialistas contemporâneas defenderiam que apenas uma sociedade com papéis de gênero democratizados e igualdade de fato perante a lei pode atingir os objetivos professos do liberalismo.
O marxismo leva inevitavelmente ao gulag?
Chait demonstra sua ignorância sobre o trabalho de Marx quando iguala sua visão de comunismo com o comunismo autoritário da antiga União Soviética e da China maoísta.
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx argumentou que o comunismo apenas seria possível após o desenvolvimento pleno do capitalismo. Ele previu que, se comunistas forçassem sociedades agrárias e feudais (como Rússia e China) a se industrializar, acabariam transformando o Estado no “capitalista universal” que exploraria a população como a “classe trabalhadora universal”.
O que Marx não podia antever era que acabaria sendo mais fácil derrubar oligarquias fundiárias (especialmente quando os oligarcas não eram capazes de proteger o campesinato da invasão estrangeira) do que transicionar de uma democracia capitalista ao socialismo (apesar de, por vezes, nas décadas de 1970 e 1980, tal mudança parecer possível no Chile, na França e na Suécia).
Chait não consegue reconhecer que nem a tradição marxista e nem a tradição capitalista desenvolveram um caminho pacífico e humano para o desenvolvimento econômico equitativo em sociedades pré-industriais. Os horrores da “acumulação primitiva” (escravidão, genocídio contra povos indígenas) no mundo capitalista não parecem incomodar Chait.
Capitalismo versus democracia
Chait também silencia a respeito do fracasso do liberalismo em alcançar seus objetivos de direitos iguais a todos. Ele não reconhece como o capitalismo, o racismo e o patriarcado impedem a valorização moral equitativa das pessoas, que é o fundamento moral do próprio liberalismo.
É por isso que os socialistas são ativos nas lutas para acabar com as restrições eleitorais, com a brutalidade policial, o encarceramento em massa e para defender e expandir os serviços reprodutivos.
Chait celebra as “reformas sociais igualitárias, aumento dos impostos sobre os mais ricos com diminuição para os mais pobres e a nova e significativa transferência de renda aos americanos pobres e da classe trabalhadora através de reformas no sistema de saúde e outras medidas” promovidas por Obama.
No entanto, essas medidas são de natureza tépida, quando comparadas com as reformas de bem estar social mais robustas (embora também falhas e causadoras de exclusão) promulgadas nas décadas de 1930 a 1960 nos EUA, quando uma esquerda e um movimento de trabalhadores mais poderosos introduziram um pouco mais de robustez no liberalismo progressista.
A direita é a principal ameaça à liberdade
Chait também culpa o marxismo (e os leitores da Jacobin!) pela suposta supressão da liberdade de expressão nos campus universitários, especialmente por conta da tática de boicotar comícios de Trump. Mas os socialistas têm posições diferentes a respeito de como regular a livre expressão nas universidades (ou mesmo sobre se isso seria desejável).
Chait não parece se preocupar muito com o fato de que muitos estudantes de grupos historicamente sub-representados não se sentirem reconhecidos como membros legítimos e plenos das comunidades de seus campus. Tampouco reconhece que abuso e violência sexuais continuam sendo grandes ameaças nas universidades.
Apenas os protestos estudantis de militantes foram capazes de transformar a composição do corpo estudantil e docente universitários na década de 1960 nos EUA. E os conservadores – e alguns liberais – criticaram esses protestos por serem “anti-liberais”.
Talvez Chait reconheça a necessidade de se opor a discursos que incitam pessoas a atos racistas ou homofóbicos. Porém, ele reserva sua ira não para os movimentos anti-liberais nativistas que apoiam políticos explicitamente racistas, anti-imigração e islamofóbicos, como Trump, mas para aqueles que protestam contra a política do ódio.
Muitas democracias liberais proíbem o discurso de ódio ou racista. Alguém pode se opor a essas proibições (como é o meu caso), mas quando o discurso vira ação repressiva (como a violência racista contra os outros), então a força deve ser repelida pela força. O fracasso do Estado alemão em cessar a violência fascista contra reuniões pacíficas de cidadãos democráticos durante a República de Weimar sem dúvida contribuiu para a ascensão do nazismo ao poder.
Espantalhos frequentemente substituem análises por fantasias. Aparentemente temos que afirmar o óbvio: ler Marx não leva inexoravelmente alguém a idolatrar Stalin. A maior parte dos socialistas está comprometida com um projeto político construído em torno da realização da promessa do liberalismo – liberdade, igualdade e solidariedade -, que é impedida pelo capitalismo. E é por isso que nos opomos ao liberalismo progressista do tipo defendido por Jonathan Chait.
Sobre os autores
é o vice-presidente nacional dos Socialistas Democráticos da América e professor de ciência política na Universidade Temple, na Filadélfia.