A última vez que enfrentamos uma crise econômica quase tão grave quanto a que estamos prestes a encontrar foi em 2008, quando o sistema bancário global começou a colapsar por causa seus próprios excessos.
Quando governo dos EUA decidiu permitir que o Lehman Brothers falisse os mercados financeiros foram empurrados em queda livre, e os líderes mundiais perceberam que era hora de agir. Inicialmente, eles forneceram trilhões de dólares em liquidez a curto prazo (empréstimos a curto prazo) aos maiores bancos do mundo, mas logo perceberam que os bancos não estavam sem liquidez (sem dinheiro), mas insolventes (completamente incapazes de pagar suas dívidas). Nesse ponto, eles colocaram seu peso atrás dos sistemas financeiros com resgates e viram os Estados se tornarem acionistas significativos nas maiores instituições financeiras do mundo.
Nos anos que se seguiram, muitos países adotaram medidas de estímulo fiscal destinadas a limitar o impacto da crise financeira na economia real. Inicialmente, os Estados Unidos e o Reino Unido implementaram grandes programas de estímulo para absorver a perda de empregos e impedir o tipo de espiral descendente de demanda que nos causou a Grande Depressão em 1929 com políticas keyneisianas. Mas foi a China que salvou a economia global de outra depressão, com um pacote de estímulos no valor de quase 20% do PIB em seu pico. Um enorme investimento estatal protegeu a economia chinesa e as economias de seus principais parceiros comerciais.
Logo, porém, governos do mundo todo estavam mudando de posição. Na Europa, a crise da dívida soberana, que foi uma resposta tardia ao colapso financeiro de 2008 entre países cuja política monetária era restrita pela adesão ao euro, atingiu o PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha). A Troika – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional – impôs duras medidas de austeridade a países como a Grécia em troca de resgates. O Reino Unido seguiu o exemplo e impôs um programa de austeridade profundo, apesar de não haver absolutamente nenhum sinal de crise da dívida soberana para o governo britânico.
Por que essa reviravolta repentina? Desde o início, a direita e a esquerda estavam envolvidas em uma luta pela interpretação de 2008. Muitos da esquerda acreditavam que a crise financeira justificaria suas advertências sobre a insustentabilidade inerente ao capitalismo financeiro. A direita, inicialmente intimidada pela natureza da crise financeira global, rapidamente apresentou outra versão da história, dizendo que o que causou a crise de 2008 não foi a crise do sistema financeiro internacional, mas o excesso de gastos de governos desonestos em serviços públicos.
No Reino Unido, acostumada ao senso comum thatcherita de que um governo só pode gastar o quanto ganha em impostos, a narrativa de austeridade venceu com os conservadores nas eleições de 2010. Desde então, 120.000 pessoas morreram como resultado direto ou indireto das políticas de austeridade implementadas por esse governo. A economia estagnou por quase uma década, com salários e produtividade. Como resultado, a austeridade fracassou em seus próprios objetivos – a dívida nacional se tornou maior como porcentagem do PIB do que em 2010.
Após a crise financeira, os conservadores espalharam uma narrativa deliberadamente falsa, a fim de lucrar eleitoralmente com uma das piores crises que aconteceram na economia global. O Partido Trabalhista não era muito melhor – prometendo uma vida de austeridade e controles sobre a migração em resposta ao sucesso da mensagem conservadora. A narrativa hegemônica à crise havia sido estabelecida.
À medida que a crise do coronavírus se desenrola, a direita está no poder e eles estão exigindo que jornalistas, cidadãos e até funcionários da saúde fiquem alinhados com a narrativa do governo. Questionar a política do governo – seja em política monetária, auxílio para doença ou pagamento de assistência social – está “politizando” uma crise de saúde pública.
A idéia de que a crise do coronavírus pode ser “politizada” é dizer que não é um acontecimento inerentemente político. Obviamente, o surto do vírus foi um evento natural – e a julgar pelas pesquisas da Fundação Gates, até mesmo previsível -. Mas seu impacto econômico e, em particular, a distribuição dos prejuízos e custos, não poderia ser mais político. Se quisermos evitar outra lição sobre o capitalismo de desastre da direita, precisamos entender o provável impacto que essa crise terá em nossa economia e nos preparar adequadamente.
O pânico com o coronavírus já começou a impactar os mercados financeiros: o S&P, o Dow Jones, o FTSE, Bovespa e muitos outros índices sofreram quedas maiores do que as ocorridas em 2008. Os preços das ações em queda refletem a percepção dos investidores de que, com os trabalhadores forçada a ficar em casa, as fronteiras fechadas e o consumo e o investimento em colapso, a economia global está entrando em profunda recessão. Após uma década de aumento do endividamento corporativo, a grande preocupação é que a queda da renda das empresas cause uma cascata de falências corporativas que poderiam ameaçar algumas das principais instituições financeiras.
Até agora, parece uma recessão genérica. Mas existem grandes diferenças entre a crise que estamos enfrentando e a que se seguiu à crise financeira de 2008. Depois de 2008, muitas pessoas perderam suas casas e seus empregos. O sofrimento foi enorme e não se limitou aos menos favorecidos da sociedade. Mas com a recessão do coronavírus, os riscos econômicos são muito mais individualizados e muito mais graves, especialmente para o Reino Unido.
Muitas pessoas – especialmente as das capitais onde o vírus é mais grave – não poderão pagar o aluguel ou as contas com seus salários e auxílios doenças.
Além disso, o número crescente de pessoas sem emprego estável enfrenta uma perda dramática de trabalho, pois, as empresas param de negociar, as pessoas param de consumir e os espaços públicos são fechados lentamente. Mesmo que não sejam forçados a se auto-isolar, aqueles que não tem uma renda estável – todas as categorias acima, além de freelancers, pequenos empresários e aqueles pagos em comissão – enfrentam uma perda imediata e duradoura de renda.
Após uma década de austeridade, as economias das famílias estão perigosamente baixas. O ano de 2017 foi o primeiro desde 1987 em que as famílias gastaram mais do que ganharam, cobrindo a diferença assumindo novas dívidas e retirando suas economias. Existem mais de 8 milhões de famílias no Reino Unido que já enfrentam algum tipo de dívida problemática. Na periferia do capitalismo a situação é mais dramática. No Brasil, por exemplo, já são 63 milhões.
Com altos aluguéis, altos custos de transporte e salários estagnados, as pessoas já estava enfrentando uma crise de custo de vida antes do ataque do coronavírus. Como as famílias devem lidar com uma perda adicional de salários, enquanto os bancos continuarão a exigir o pagamento das dívidas, os proprietários a exigir aluguel e as empresas de serviços públicos a cobrar contas?
Os bancos centrais também estão mais restritos do que no início de 2008. A política monetária já está extremamente frouxa – as taxas de juros foram reduzidas para o nível mais baixo possível sem entrar no perigoso território de taxas de juros negativas. A flexibilização poderia continuar, mas há evidências de que, mesmo antes da crise, mais criação de dinheiro estava mostrando retornos decrescentes. Nos EUA, o Federal Reserve já ofereceu US$ 1,5 trilhão em empréstimos de curto prazo para o setor financeiro, e mesmo isso não impediu o pânico do mercado.
Cada um desses problemas é político. Cada uma dessas questões – de baixos salários, altas dívidas e ausência de poder de fogo monetário – resulta das ações de governos anteriores, e elas só podem ser tratadas por esse governo. Um estímulo fiscal generalizado, combinado com uma flexibilização quantitativa adicional, não será suficiente.
O governo precisa introduzir apoio direcionado às famílias que enfrentam uma perda de renda como resultado da crise do coronavírus. A alternativa é observar como as pessoas ignoram os conselhos do governo para se auto-isolarem, espalham o vírus ainda mais. Outras serão forçadas a sair de suas casas ou decretaram falência dentro de alguns meses. Não é por acaso que aqueles que se vitimizam e negam se uma questão “política” não estão enfrentando a crise como realmente deveria.
Sobre os autores
escreve na Tribune Magazin e é apresentadora do podcast semanal A World to Win.