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População faz manifestação em frente ao julgamento da Corte Suprema em que permitiu a Alvaro Uribe / Foto de Izquiedaweb.

O fim do uribismo e a narco-burguesia colombiana

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A extrema direita que retornou ao poder em 2018 tentou reprimir o processo de liberação deflagrado pelo acordo de paz, mas se deparou com uma sociedade desperta e pronta a resistir como nunca - e a consolidação política do ex-guerrilheiro, Gustavo Petro, que se torna cada dia mais popular.

“O senador Gustavo Petro deve explicar se recebeu dinheiro de Miguel Rodríguez Orejuela. Um amigo próximo de Miguel afirmou que deram um milhão de dólares ao senhor Petro”, acusava o político direitista Álvaro Uribe Vélez semanas atrás, no Senado. Acrescentou ainda que o suposto pagamento teria sido feito pelo chefe do cartel de Cali ao dirigente da Colômbia Humana, “utilizando o canal venezuelano”.

Poucas vezes o ex-presidente que renunciou sua cadeira no Senado após ter sua prisão decretada pela Suprema Corte foi visto emitindo ataques de tamanha pompa em público. Durante uma década, a figura de Uribe permaneceu impávida, protegida pela graça que o consenso popular e as maiorias políticas lhe concederam. Eleito presidente pela primeira vez em 2002, Uribe tornou-se o líder político de maior projeção nacional, ganhando instantaneamente simpatias suficientes para consolidar a sua imagem como “o melhor presidente da história da Colômbia”.

Claro, não houve um único encontro regional no qual o patriarca da direita colombiana permaneceu impassível. Uribe buscava recompor sua estatura, diminuída ante o encontro com outros chefes de Estado, ao fazer de cada reunião latino-americana uma briga de galos. “Águia não caça pernilongo”, costumava dizer Hugo Chávez sobre a direita.

“Ei, Álvaro, você está associando Rodríguez Orejuela a Chávez, dizendo que eu recebi um milhão de dólares daquele homem por meio de uma transação dos chavistas venezuelanos?” – o assombro de Gustavo Petro com o ataque proferido, em plena transmissão oficial do Congresso, não poderia ser diferente. O chefe do cartel de Cali foi preso em 1995, enquanto Chávez chegou à presidência em 1998. “Você está desesperado? O que está acontecendo?”, perguntava, desconcertado, o senador progressista ao ex-presidente. Sim, Uribe está desesperado e não falta motivos para estar.

Pouco mais de um ano foi o suficiente para o atual governo, sucessor do uribismo eleito em 2018, ver seu prestígio despencar. Os recentes escândalos envolvendo Iván Duque e a sua vice-presidente Marta Lucia Ramírez por compra de votos e vínculos com o crime organizado se somam à avalanche de denúncias contra o líder do Partido Centro Democrático por seus vínculos com o narcotráfico e o paramilitarismo. As denúncias contra o ex-presidente e seu círculo mais íntimo vêm se aglutinando em uma tormenta criminosa indiscutível. 

Finalmente, no dia 4 de agosto de 2020, foi ordenada formalmente a prisão preventiva de Álvaro Uribe Vélez pelo Supremo Tribunal de Justiça, medida aplicada de forma inédita a um ex-presidente da República, hoje investigado por crimes de corrupção ativa e fraude processual – motivo pelo qual ele acaba de renunciar ao cargo de senador, tudo para evitar ser julgado pela Suprema Corte enquanto espera em prisão domiciliar. Além dos imbróglios processuais, a popularidade política de Uribe também foi por água abaixo; passou de uma favorabilidade de mais de 60% em 2005 para uma desaprovação de 62% em 2020.

Num contexto de efervescência social, depois de ter vivido o ciclo de protestos mais importante desde a vendetta popular de 1948, desencadeada pelo assassinato do líder popular Jorge Eliecer Gaitán, Uribe dá o recado: sob o nome de “fase pré-chavista”, denuncia um ardil da oposição que consiste em deslegitimar as instituições para tomar o poder e transformar a Colômbia em uma Venezuela. 

A cortina de fumaça retórica do uribismo, contudo, aponta a existência de um incêndio em algum lugar. Ouçamos os nossos inimigos e exploremos o que esse suposto momento pré-chavista revela realmente sobre a política colombiana, enquanto manifestações tomam o país, agravados por casos de violência policial que despertam a indignação, denotando, a um só tempo o esgarçamento das instituições locais e a pouca disposição popular a se conformar com os abusos estatais e um autoritarismo histórico.

Entre a oligarquia e a narco-burguesia

As estruturas de poder na Colômbia têm mantido, historicamente, um arranjo profundamente hermético e hierárquico. As elites latifundiárias e industriais moldaram as dinâmicas produtivas, enquanto opulentos liberais e conservadores organizaram a disputa político-institucional. 

O predomínio das oligarquias tradicionais remonta à época colonial. A década de 1940 viu o clamor popular por participação política e inclusão econômica se espalhar, profusamente palpável no grito de Gaitán: “Povo, pela derrota da oligarquia, à carga!” Com a repressão brutal, o movimento gaitanista foi derrotado, dando lugar a um regime de poder acordado a portas fechadas pelas classes dominantes, conhecido como Frente Nacional (1958-1974). Neste período, as preponderantes elites latifundiárias sobrepuseram-se às elites industriais, desencadeando um processo de desapropriação e acumulação de terras por meios legais, consumado no Pacto de Chicoral (1972).

Entre a expropriação e o empobrecimento rural, a vida no interior tornou-se inclemente, propiciando uma migração maciça de trabalhadores rurais para os cinturões urbanos. Abraçados à sua própria sorte, os camponeses, determinados em conservar as suas terras, encontraram no cultivo da folha de coca um precário meio de subsistência e nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) uma representação de suas reivindicações. Durante a década de 1980, as guerrilhas engrossaram as suas fileiras e capilaridade, assumindo, desta maneira, um papel importante em um crescente e lucrativo mercado ilícito.

No entanto, os maiores beneficiários desse redesenho demográfico e produtivo foram os perpetradores da expropriação: latifundiários, fazendeiros e narcotraficantes multiplicaram as suas fortunas e ampliaram seu domínio territorial, constituindo assim uma nova burguesia regional.

Para tomar tudo dos humildes camponeses, expandir seu domínio e defender as fortunas já acumuladas, as emergentes elites narco-capitalistas financiaram e treinaram esquadrões da morte. Assim, a Colômbia atingiu a maior concentração de terras rurais da América Latina, consolidando-se como o país com o maior número de desplazados do planeta – isto é, deslocados, pessoas expulsas de seus lares e regiões.

Como muitas outras, a família, Uribe Sierra cresceu entre terras, narcotraficantes e mercenários. Embora a figura de Álvaro Uribe Vélez ascenda no seio da burguesia narco-latifundiária, não podemos deixar de observar que o uribismo se transformou em um fenômeno profundamente enraizado nas camadas populares.

Depois da Frente Nacional, os partidos Liberal e Conservador pederam capilaridade. Desde o início, era claro que ambas as elites representavam o mesmo projeto político, tendo uma única diferença de que liberais iam à igreja às cinco e conservadores iam à igreja às oito –  nas palavras de García Márquez. O pêndulo eleitoral, muito além de tintas vermelhas ou azuis, oscilou entre a paz e a guerra. Da mesma forma, as densas periferias urbanas, superpovoadas por migrações rurais, formaram massas desprovidas de representação política.

Enquanto o discurso das FARC se tornou anódino nas amplas camadas urbanas, a guerrilha M-19 ganhou projeção. Instituído em 1970, o M-19 cativou rapidamente a opinião pública. “¿Falta de energía… Inactividad?”, “¿Parásitos… gusanos? Espere”, “Ya llega el M-19”. Sugestivas campanhas publicitárias desencadearam fantásticas operações militares. Paralelamente, a centro-esquerda formou um novo espectro político em oposição à crescente incorporação da narco-burguesia aos partidos tradicionais, organizada em torno do Novo Liberalismo de Luis Carlos Galán. Com o oxigênio gerado nas negociações de paz de 1985 entre o governo de Belisario Betancur e as FARC, surgiu a União Patriótica: um partido político que buscaria, unindo a esquerda desarmada e os movimentos sociais, assaltar o céu pela via eleitoral.

A fúria do poder não se fez esperar. Mais de quatro mil membros da União Patriótica foram assassinados, entre eles vereadores, deputados e candidatos presidenciais. Destino semelhante teve Galán, baleado momentos antes de realizar um discurso em praça pública, no meio da campanha presidencial. E o M-19, aplacado pela guerra suja desencadeada por militares e milícias, acabou desacreditado pelas fake news oficiais, que procuravam e ainda procuram vincular a tomada do Palácio da Justiça com Pablo Escobar.

A partir da desmobilização do M-19, em 1991, nasce uma constituinte bem mais receptiva à participação popular do que a sua antecessora de 1886. A nova Constituição serviu também como alavanca neoliberal para a abertura dos mercados como política de Estado, intimamente alinhada ao recém-promulgado Consenso de Washington (1989).

O calor da violência desencadeada pelas classes dominantes vai forjando entre as suas brasas uma nova estrutura de poder: oligarquias tradicionais e narco-burguesias regionais emergentes articulam uma força propulsora de fortes elementos statuquistas, por sua vez ferrenhos defensores de uma agenda neoliberal.

No entanto, os afetos populares permaneciam ausentes nessa nova articulação. Fruto do descrédito em que se manteve o bipartidarismo, o pacto entre atores tradicionais e regionais, embora possuísse complexos e ferozes aparelhos repressivos, não contava ainda com condições de conduzir um processo nacional-popular e formar, assim, um novo bloco histórico.

Em meio ao fugaz crescimento do paramilitarismo e ao endosso oficial de Washington ao domínio das elites por meio do Plano Colômbia, o retumbante fracasso das negociações do Caguán entre o governo Andrés Pastrana e as FARC cimentou, no início dos anos 2000, um amplo discurso popular anti-FARC.

A pista estava pavimentada. Em coral foi votada por liberais e conservadores a candidatura de Uribe em 2002. Pela primeira vez, um indivíduo não pertencente às elites tradicionais atinge a condição de presidente; nenhum candidato presidencial havia sido eleito no primeiro turno desde a Constituição de 1991.

A reação das elites

A chegada de Uribe ao Executivo dissolve instantaneamente as distinções partidárias, dando início ao pacto formal entre as elites tradicionais e a burguesia regional. De fala afiada e discurso aprazível, o recém-eleito presidente se conecta com os crescentes sentimentos populares anti-insurgentes, garantindo o apoio das classes média e baixa ao conduzir, pessoalmente, conselhos comunitários. Assim, Uribe se torna uma aposta certeira e com ele se estabelece uma nova estrutura de poder.

Como a versão local da guerra preventiva, a então ministra da Defesa e agora vice-presidente, Marta Lucia Ramírez, expõe a Política de Segurança Democrática (PSD) em 2003, tornando o extermínio de camponeses uma política de Estado.

No final do segundo mandato, e sem possibilidade de nova reeleição, Uribe nomeia seu mais recente ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, como seu sucessor. Sobrinho-neto do ex-presidente Eduardo Santos e descendente direto da heroína pró-independência María Antonia Santos Plata, Juan Manuel vem de uma das mais tradicionais e influentes linhas genealógicas da oligarquia colombiana.

É justamente com Santos como ministro que a PSD desafia suas próprias margens: massacres, desaparecimentos, torturas, até o ataque inadvertido a territórios supranacionais, como o bombardeio de Angostura, em 2008, levando a América Latina à beira de uma verdadeira guerra regional. Juan Manuel emprestou o seu nome à maior investida paraestatal.

Esse compromisso concedeu ao então ministro a confiança absoluta do pater famíliar nacional, ciente de que, com as credenciais do sobrenome Santos, o uribismo garantiria o apoio das elites por, pelo menos, mais quatro anos. 

Contudo, uma fração das oligarquias tradicionais não se sentia mais confortável dividindo a mesa com ordinários fazendeiros caipiras. E quem melhor do que um Santos para restaurar o bom nome das famílias de bem? Ao chegar à presidência, Juan Manuel queimou os mesmos navios que o conduziram à Casa de Nariño, rompendo definitivamente seus laços com o uribismo.

Alfonso Cano, comandante das FARC, convidou, o presidente Santos para estabelecer uma mesa de diálogo entre o governo nacional e as FARC. Devido à sua longa trajetória no poder, o recém-eleito presidente tinha plena consciência de que a guerrilha só poderia ser derrotada politicamente. E sem as FARC, o que seria do uribismo?

Santos, durante seus mandatos (2010-2018), obedeceu a duas diretrizes centrais: a aceleração do neoliberalismo e a consumação dos acordos de paz. O novo governo lubrificou as locomotivas da mega-mineração, concedeu licitações a gigantes transnacionais indiscriminadamente e encerrou seu segundo mandato com o título do presidente que assinou o maior número de acordos de livre comércio na história da Colômbia. Da mesma forma, o fim do conflito armado não só avisava o enfraquecimento do pacto uribista, mas também prometia o controle de territórios com abundantes recursos, resguardados pelas dinâmicas do conflito armado. Não era uma simples agenda de governo que estava sendo traçada, mas o projeto para formar uma nova organização de poder.

No fim, o santo fracassa em operar milagres. Sem atingir maiorias e com grande desaprovação – particularmente depois de ter medido suas forças com o uribismo no plebiscito de 2016 –,  o Santismo não chega nunca a se conformar.

Uribismo na UTI, petrismo na sala de parto

Se, por um lado, o governo Santos desenvolveu uma agenda econômica profundamente regressiva, o processo de paz habilitou uma inadvertida pluralidade política por outro.

As negociações de paz desarmaram o sistema de princípios que sustentava a hegemonia uribista, abrindo espaço para a politização de outros espaços discursivos: a greve agrária, os protestos de entregadores da rappi, a paralisação da educação pública – depois de Santos, uma cidadania ignorada começava a agitar as ruas.

Uribe tentou compensar o erro que cometeu ao escolher Santos com a escolha, desta, vez, do desconhecido Ivan Duque: desprovido de capital político próprio e de rosto bonachão, Duque tinha cara de bom moço e, é claro, para representar as elites firmes em seu pacto com a narco-burguesia regional, Marta Lucía Ramírez complementou a chapa presidencial. 

Embora o uribismo tenha conseguido mobilizar a paranóia nacional colombiana, que temia a era pós-FARC como uma Colômbia, digamos, “Venezuelana” e tenha eleito Duque, não houve quem descontruisse seu esquema de poder. O escândalo da compra de votos conhecido como “Ñeñepolítica”, somado aos vínculos revelados da vice-presidente Ramírez com o narcotráfico, fizeram disparar a rejeição do atual governo.

Quase ao mesmo tempo, as demandas populares por representação política – já expressas marginalmente durante as negociações de paz –  irrompem com força vulcânica de Punta Gallinas a Ipiales. O que Uribe hoje, desesperado e preso (hoje em prisão domiciliar), chama de momento pré-chavista, nada mais é do que – nos termos de Ernesto Laclau – um momento pré-populista. A crise de representação marca a abertura de um ciclo político em busca da articulação de um novo senso comum.

No subsolo de todo esse processo, uma inédita articulação política foi se formando. Ex-membro do M-19 e ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro foi permeando camadas populares deslocadas durante a hegemonia uribista que Santos não soube incorporar.

Durante seu mandato como prefeito, Petro manteve um objetivo central: devolver a soberania popular aos cidadãos bogotanos, desprivatizando e avançando no financiamento estatal de serviços essenciais, o que custou ao então prefeito uma inimizade aguada com as elites e máfias urbanas. Por sua vez, os antagonismos formados cimentaram as bases sociais de apoio ao ex-militante do M-19, articulando formalmente o petrismo como uma força de massas.

Na corrida presidencial de 2018, o petrismo mediu suas forças eleitorais; não se via uma campanha de praças lotadas desde o assassinato de Galán. Um candidato de esquerda nunca tinha chegado ao segundo turno sem ser assassinado e a dimensão da compra de votos em favor do candidato uribista é, ainda, desconhecida. A derrota deixou um sabor triunfante: o petrismo demonstrou nas eleições presidenciais sua vocação de vitória, projetada para 2022.

Eleitoralmente falando, mais do que as elites tradicionais, é o Partido Verde o freio do petrismo. Assim como o New Labour de Tony Blair foi a configuração de uma esquerda neoliberal funcional à hegemonia thatcherista – apresentada como centro radical –, os Verdes constituem a terceira via funcional para o poder das classes dominantes na disputa por liderança nacional. Embora não representem uma alternativa aos antagonismos historicamente formados, os Verdes têm capacidade de disputar demandas insatisfeitas e flutuantes. São os antagonismos discursivos na busca de articular os sub-representados o que caracteriza este novo ciclo, de longa duração, na política colombiana.

Ao uribismo só resta acusar Petro de criminoso; enquanto os Verdes o chamam de populista. “Agora eu entendo esse desespero. É que essa a questão de Marta Lucía Ramírez, de suas associações com a máfia, das coisas que vão aparecendo, tem que levar você a sujar todo mundo, como se todos fôssemos como você”, respondia Petro às imaginativas acusações de Uribe no Congresso. “Me chame pelo que sou, um revolucionário, e pobre, porque minha casa foi embargada e as multas do governo não me deixam respirar”, conclui. Em uma coisa os Verdes não estão errados: o petrismo carrega como bandeira política a soberania popular.

Sobre os autores

é professor de filosofia e teoria política na Fundação Getúlio Vargas. Ele também é membro pesquisador da rede DeSiRe (Democracia, Significação e Representação) e do Centre of Ideology and Discourse Analysis (cIDA) da Escola de Essex.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, EDIÇÃO, Eleições and Política

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