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Ilustração de Johnny Brito

Todo Poderoso (demais)

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Silas Malafaia, pioneiro no televangelismo e um dos pastores mais rico do Brasil, encontrou no casamento entre moralismo religioso, autoritarismo e liberalismo econômico a agenda política ideal para o neopentecostalismo de sua igreja.

O texto a seguir foi publicado na 2ª edição impressa da Jacobin Brasil. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


O pastor Silas Malafaia tem mil razões pelas quais brasileiros evangélicos não deveriam votar em candidatos de esquerda. Em um vídeo no YouTube de setembro de 2016, ele exige enfaticamente que crentes votem contra Glauber Braga, na época candidato a prefeito de Nova Friburgo (RJ). Com nítido desgosto, Malafaia inicia o vídeo alertando que Glauber Braga é do PSOL: “Pense no que é de mais radical contra o pensamento cristão,” esbraveja. “Essa gente apoia aborto, casamento gay, liberação de droga e ideologia de gênero.” Esta última, para ele, é “uma das coisas mais nojentas”, pois supostamente “erotiza crianças em escola” e ignora o imperativo legal de que segundo o Artigo 229 da Constituição federal, como lembra o pastor, a “educação moral” é responsabilidade dos pais.

O vídeo segue com Malafaia denunciando o fato de Braga ter apoiado o governo Dilma Rousseff que, em suas palavras, quebrou economicamente o país. Encerrando seu discurso de modo animado e igualmente raivoso, o pastor diz: “Você que é cristão não se deixe enganar – ele lutou durante quatro anos contra os nossos princípios e agora quer nosso voto. Diga não a Glauber Braga!”. Braga perdeu para Renato Brava do PP por 5 mil votos.

Malafaia gravou diversos vídeos contra alguns candidatos específicos nas eleições daquele ano, todos com basicamente o mesmo argumento de que partidos progressistas ameaçam os valores morais e econômicos dos eleitores evangélicos. Segundo a lógica de Malafaia, uma agenda reacionária de costumes só faria sentido se caminhasse junto com o liberalismo econômico e vice-versa.

O pastor presume um conservadorismo natural por parte de seus seguidores, hipótese que não é desmentida pela história recente. Em 2018, por exemplo, Jair Bolsonaro obteve 11 milhões de votos a mais do que Fernando Haddad entre o eleitorado evangélico de diversas denominações, enquanto que o candidato do PT venceu entre adeptos de religiões afro-brasileiras, sem religião, ateus e agnósticos. Em pesquisa divulgada pelo Datafolha dias antes do segundo turno, 59% dos evangélicos declararam votar em Bolsonaro e 26% em Haddad. Entre os católicos, que ainda constituem o maior grupo religioso do Brasil, os dois praticamente empataram. A vitória do Bolsonaro, portanto, contou com uma considerável preferência evangélica.

O fato do candidato do PT ter obtido um apoio tão inexpressivo entre os evangélicos pode não ser uma surpresa dada a conjuntura atual, mas não foi sempre assim. Na véspera do segundo turno em 2006, pesquisas mostraram Lula com 59% das intenções de voto entre os evangélicos contra 41% para Geraldo Alckmin. Quatro anos mais tarde, o PT seguiu com vantagem mesmo que com um resultado mais apertado, 51% do voto evangélico para Dilma e 49% para Serra. A primeira derrota do PT entre os evangélicos se deu nas eleições de 2014, com Aécio Neves conseguindo 53% das intenções de voto contra 47% para Dilma.

Esse declínio deixa claro que o resultado de Haddad não foi uma anomalia, e sim a conclusão previsível de uma derrocada em câmera lenta. Por isso, talvez a pergunta mais latente para a esquerda brasileira é se os evangélicos estão ou não permanentemente fora de seu alcance. Se depender de Silas Malafaia, um dos líderes religiosos mais influentes e habilidosos do Brasil, a resposta categórica será sim. Mas esse resultado ainda não está dado. A esquerda precisa encontrar meios de escalar os muros que hoje separam a maioria dos evangélicos das pautas progressistas que no passado sensibilizaram religiosos para questões sociais urgentes, como o alto custo de vida da classe trabalhadora e a necessidade da reforma agrária. É preciso compreender Malafaia, seu discurso e seu apelo, para superá-lo e, quem sabe, derrotá-lo.

Línguas de fogo

O neopentencostalismo é talvez, dentre várias, a denominação evangélica mais proeminente no Brasil, e é abraçada por líderes como Malafaia em seu ministério Vitória em Cristo, ligado à Assembleia Mundial de Deus e Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus. O pentecostalismo geralmente se refere a um tipo de praxe espiritual cristão que prioriza uma relação direta com o Espírito Santo em conflito real contra o demônio. O neopentecostalismo abarca o movimento carismático de líderes como Malafaia e outros. Pentecostais fazem particular uso do Evangelho de Lucas e do livro de Atos como guias para a experiência pentecostal.

Em uma das passagens mais fundamentais para o pentecostalismo, Atos 2:4, os seguidores de Jesus reunidos em Jerusalém descreveram o seguinte evento: “de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”. Essa e outras passagens, como Atos 10:10, dão aos pentecostais o apoio teológico para aderir à doutrina da evidência inicial de que o batismo no Espírito é demonstrado ao falar em línguas.

Como explicou Daniela Pinheiro em um perfil de Malafaia na revista Piauí, pentecostais também acreditam “em dons espirituais extraordinários, como a cura de enfermidades, o exorcismo, a liberação de profecias”. Enquanto o pentecostalismo sempre pregou uma relação íntima do indivíduo com o evangelho, nem sempre colocou muita fé nos meios de comunicação para facilitar essa conexão. Nisso, os neopentecostais inovaram.

Quando o pentecostalismo chegou ao Brasil no início do século XX, segundo Jonas Christmann, seus adeptos já pregavam “o tradicionalismo nos costumes e a rigidez moral”. De início evitavam a política e a mídia como formas de ampliar seu número de seguidores por considerar tais atividades “mundanas ou diabólicas”. Essa atitude mudou gradativamente ao longo dos anos. Um exemplo disso é a Assembleia de Deus, maior e mais antiga denominação pentecostal do Brasil, que se empenhou em eleger lideranças de suas fileiras para a Assembleia Constituinte em 1986. Jonas Christmann Koren, que pesquisou amplamente a trajetória de Malafaia, destaca que “o uso das mídias de massa pelos pentecostais também passou a ser mais aceito, chegando a serem amplamente utilizadas, principalmente pelas chamadas neopentecostais”, entre as quais o pastor se destaca.

Silas Lima Malafaia nasceu no Rio de Janeiro no dia 20 de janeiro de 1958, formou-se em teologia pelo Instituto Bíblico Pentecostal e em psicologia pela Universidade Gama Filho. Seu pai era militar e também pastor, sua mãe, uma professora. É até hoje casado com Elizete Malafaia, relação que começou ainda na adolescência, e com quem tem um filho e duas filhas. Foi no início da década de 1980 que Malafaia começou a apresentar um dos programas evangélicos pioneiros da TV brasileira, hoje chamado Vitória em Cristo. Em sua biografia oficial, Malafaia conta que “para manter o programa de TV e conseguir apoiar projetos sociais, Deus [lhe] deu a estratégia de fundar a Associação Vitória em Cristo (Avec), que, atualmente, atende mais de 3 mil pessoas diariamente por meio de projetos espalhados pelo Brasil e na África”.

O trabalho que sustenta os vários projetos da Avec é inteiramente voluntário, de acordo com Malafaia. De fato, o grande dom de Malafaia é, com suas pregações, alcançar os fiéis onde estes estiverem por meio de livros, CDs e DVDs. Em 1999, ele fundou a editora Central Gospel, hoje a segunda maior editora evangélica do país. Não por acaso sua autobiografia termina com a seguinte citação: “Meu sonho: investir em pessoas!”.

Mas Malafaia também gosta que as pessoas invistam nele. A sede da Associação Vitória em Cristo ocupa uma área de 40 mil metros quadrados no bairro de Jacarepaguá na Zona Oeste do Rio. Na descrição de Pinheiro para a revista Piauí: “A construção moderna e envidraçada contrasta com os arredores de comércio pobre e terrenos baldios abandonados. A entidade cristã  – considerada sem fins lucrativos, o que a exime do pagamento de impostos – financia as ações do ministério religioso de Malafaia”. Além disso, através de inúmeros projetos, congressos, e encontros, a Avec atinge mais de 100 mil pessoas em praças públicas pelo Brasil, de acordo com Pinheiro.

Em 2013, a Avec faturou 45 milhões de reais, a maior parte em ofertas e doações de fiéis. De posse desses recursos, Malafaia se tornou pessoalmente rico e hoje viaja o Brasil e o mundo em um jato Gulfstream III comprado por 4 milhões de dólares nos Estados Unidos. Mesmo assim o pastor rejeita veementemente a ideia de que religião seja apenas uma fonte lucrativa de renda para ele e seus pares. Em reportagem da Forbes de 2013, Malafaia foi classificado como o terceiro pastor mais rico do Brasil, com uma fortuna de 150 milhões de dólares. Enfuriado e ameaçando processar a revista, disse que a notícia era: “uma sacanagem para dizer que pastor apanhou dinheiro dos otários. Que pastor é milionário porque tem um bando de babaca de quem ele toma dinheiro. Mas eu não vou tolerar isso”.

Malafaia rejeita a pecha de lucrador mas não tem problema com o lucro em si. Está amparado pela Teologia da Prosperidade, segundo a qual as bênçãos financeiras alcançadas e o bem-estar físico são sempre fruto da vontade de Deus para com o indivíduo. Ao fiel cabe apenas ter fé, discurso positivo e doar às causas religiosas. O pastor já chamou de “idiota” qualquer um que seja contra essa leitura da Bíblia.

Malafaia é um líder destacado mas não imune a críticas de outros fiéis. Quando acusado de vender bênçãos, respondeu: “Quem pensa assim é um estúpido! Acha que eu sou criança para vender bênçãos, rapaz! O que eu faço, e é bíblico, é liberar uma palavra profética”. Mas como bem apontado por outro desafeto do pastor, os expoentes de Teologia da Prosperidade não encorajam seus fiéis a darem dinheiro para obras de caridade alheias ou para ONGs laicas – ou seja, “a ‘bênção’ só é válida se eu semear no campo deles”.

A Teologia da Prosperidade tem um significado político mais amplo do que apenas enriquecer de forma extraordinária seus pastores mais famosos. De acordo com o sociólogo Gedeon Freire de Aguiar, a Teologia da Prosperidade só faz sentido dentro de um contexto neoliberal: “Teologia da Prosperidade e neoliberalismo são, como diz o provérbio popular, a casa e o botão. São irmãos siameses. Um não existiria sem o outro […]”. Para ele, não existiam condições econômicas e sociais propícias para a Teologia da Prosperidade surgir no Brasil nos anos 1970, assim como teria sido impossível o neoliberalismo ter despontado na década de 1920. Não é difícil identificar as condições que permitiram a ascensão da Teologia da Prosperidade e a agenda conservadora que ela faz parte quando olhamos a desestruturação do Estado, o crescente individualismo e consumismo apresentados pela história brasileira recente.

Malafaia não têm olhos apenas para suas igrejas, como afirmou o colunista Bernardo Mello Franco, o pastor “fez fama no púlpito, mas adora um palanque”. Em fevereiro de 2020, Malafaia sentou para conversar com Bolsonaro e essa foi talvez a entrevista mais amena pela qual o presidente já foi submetido. Sorrindo, Malafaia teceu elogios ao presidente por não negociar com os partidos para compor uma base no Congresso. Segundo ele, esses acordos teriam sido “uma das fontes de corrupção no país”. Destilando seu veneno, argumentou em favor da agenda econômica do governo, perguntando ao presidente: “O que que adianta dar tanto privilégio para o trabalhador e não ter emprego?”. Bolsonaro, que busca continuidade para a agenda de reformas antitrabalhistas iniciadas com vigor no governo de Michel Temer, respondeu que “é melhor menos direito e emprego do que mais direito e desemprego. Essa é a questão do Brasil”. A conversa entre os dois é um símbolo trágico da política que prevaleceu nas urnas em 2018: o casamento do moralismo religioso com o autoritarismo político consagrado no altar do liberalismo econômico. 

Aqui, acolá

Para entender a força política dos evangélicos brasileiros, é preciso olhar para os Estados Unidos, onde esse segmento religioso tem tido papel de destaque há décadas. O republicano Ronald Reagan foi o primeiro político moderno da direita estadunidense a mobilizar de forma estratégica o voto evangélico. Desde então, evangélicos formam uma parte central da base política conservadora sem a qual o partido de Reagan não ganha eleições.

Em seu livro recém-lançado, The Power Worshippers: Inside the Dangerous Rise of Religious Nationalism, a jornalista que cobre a direita evangélica nos Estados Unidos, Katherine Stewart, examina as estratégias e as principais personalidades do movimento que transformou a religião em uma ferramenta de dominação. Stewart observa que “as pessoas frequentam a igreja por uma série de razões pessoais honrosas, incluindo amor a Deus e às Escrituras, solidariedade étnica e familiar, apreciação da comunidade e desejo de marcar as passagens mais significativas da vida. Muitos também parecem estar buscando segurança em um mundo incerto. Em um cenário de crescente desigualdade econômica, desindustrialização, rápidas mudanças tecnológicas e instabilidade climática, as pessoas em todos os pontos do espectro econômico sentem que o mundo entrou em um estado de desordem. A religião oferece consolo, identidade e a sensação de que a posição de alguém no mundo é segura”.

Tudo isso se aplica também ao caso brasileiro, em que violência, reformas antipopulares e desemprego dificultam o surgimento de redes solidárias laicas. “No entanto”, de acordo com Stewart, “muitas vezes o preço da certeza nas congregações conservadoras estadunidenses é a rendição da vontade política de alguém. Os fiéis absorvem a mensagem de que o mundo está dividido entre os puros e os impuros, insiders e outsiders. Eles têm a certeza de que, se estiverem em conformidade, estarão dentro.” As implicações políticas são claras: “Para fazer parte dessas reuniões de fiéis, votar e se organizar pela agenda nacional da direita é um pré-requisito, bem como uma necessidade espiritual. Como afirmou Stephen Strang, CEO da publicação pentecostal Charisma, ‘Trump não pode vencer sem a nossa ajuda. Cada um de nós deve fazer a nossa parte. Deus exige isso.’” Do mesmo modo, pastores pentecostais brasileiros traçam uma linha direta entre a eleição de candidatos de extrema direita e a vontade de Deus.

Jogo do poder

Para Stewart, existe uma muralha no meio-campo do jogo de poder político. “Por um lado, você pode contatar eleitores para dizer o que eles precisam ouvir a fim de que eles votem a seu favor. Por outro lado, você pode entrar e se reunir com os poderosos que de fato mandam. Nos últimos anos, o movimento nacionalista cristão teve um sucesso extraordinário em jogar o jogo por dentro.”

No Brasil também isso pode ser visto, Malafaia em especial tem se mostrado adepto a navegar as mudanças políticas no país ao longo dos últimos trinta anos. Admitiu ter votado duas vezes em Lula, inclusive em 1989 quando, como coloca, apresentado pela jornalista Anna Virginia Balloussier, “destoou dos colegas que viam em [Lula] um belzebu comunista e o apoiou”.

No período Lula, o pastor se vangloriava de ter tido acesso aos corredores do poder de Brasília. Mas em 2010, segundo relato do jornalista Simon Romero, Malafaia começou a dar sinais de distanciamento do PT, quando em conversa breve com a então candidata e ex-guerrilheira Dilma Rousseff afirmou que não tinha nada de pessoal contra ela: “Eu acho que você é uma mulher inteligente e qualificada. Mas como posso votar em você se passei quatro anos brigando com o grupo do seu partido apoiando um projeto de lei para beneficiar os gays?” E assim o apoio político do pastor se deslocava do petismo, que vivia a iminência de seu declínio, para uma direita cada vez mais reacionária.

No início de fevereiro de 2015, Malafaia comemorou chamando de “uma vitória espetacular” a eleição do evangélico Eduardo Cunha para a presidência da Câmara. Em um tweet da época, afirmou que tal vitória humilhava o PT: “Vão ter que nos aturar”. Seis meses depois, após Cunha ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por corrupção e lavagem de dinheiro, o pastor negou ter estendido seu apoio a ele. Eventualmente, Malafaia se aproximou de Bolsonaro, a quem permanece colado até hoje. Mesmo diante da Covid-19, Malafaia tem seguido o exemplo do presidente, minimizando o potencial devastador da pandemia global. Ainda não se sabe se a erosão gradual do projeto lulista foi a causa ou a consequência de mudanças internas no mundo evangélico. Mas não resta dúvida de que Malafaia entende bem como aproveitar as oportunidades políticas que se apresentam.

O próprio Lula, para tentar recuperar a parcela de apoio popular perdido, tem estudado as pregações televisivas de pastores evangélicos, modalidade que Malafaia ajudou a introduzir no Brasil. Durante sua prisão de 580 dias em Curitiba, Lula, que tinha na TV uma de suas poucas distrações disse à Balloussier que utilizou os programas de padres e pastores como um aprendizado. Chegou a brincar que queria “entrar nessa” e que já estava inclusive com “jeitão de ser pastor”.

A seu modo, ele tenta apaziguar os ânimos que afastaram o PT do eleitorado evangélico que vê em Malafaia um grande líder. Seu partido corre nessa direção mas, de acordo com a reportagem de Balloussier, “há dentro do PT quem diga que o esforço para dialogar com evangélicos, por ora, é mais espuma do que sustância. Também reconhecem, nos bastidores, que pastores alinhados são de menor porte, têm influência limitada”. Ou seja, não há ainda no Brasil nenhum pastor da estatura de Malafaia ou Edir Macedo disposto a pedir voto para os partidos progressistas.

O trabalho de base contra os todo-poderosos da direita conservadora, no entanto, sempre foi terreno da esquerda. Daniel Elias, líder de uma pequena Assembleia de Deus em Duque de Caxias (RJ), se encarregou de fazer esse projeto, ainda segundo Balloussier. Seu trabalho consiste em “armar esses crentes com argumentos” para não aceitarem a ladainha do pastor que diz que “cristão genuíno não vota em esquerda”. Daniel ressalta a importância desse debate ser feito “de evangélico pra evangélico”, pois “o camarada não considera muito a palavra de fora. Quem falou que Bolsonaro é enviado de Deus foram os pastores. Quem rebatia isso não era de dentro”. Ele nos dá exemplos práticos de como comprar essa briga. Se o evangélico for contra o casamento homoafetivo, diga “simples, então você não casa”.

Segundo Daniel, essa lógica é a mesma aplicada, por exemplo, no consumo de bebidas alcoólicas por evangélicos, a maioria não bebe cerveja, mas também não faz lobby para proibir o álcool. Mas há ainda quem enxergue certas doses de preconceito por parte da esquerda, como explica Nilza Valéria Zacarias, coordenadora da progressista Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito: “É muito comum pensarem que essa escolha de fé é de quem não tem alternativa, que a miséria empurra a pessoa pra esse lugar. Coloca o outro sempre no lugar suspeito, de quem não tem autonomia”. Ela também destaca os deslizes na guerra de narrativas. Quando Lula clama para si um “jeitão de pastor”, a fala “ecoa bem pra quem já tá no mesmo campo”. “Mas o antipetismo faz com que essa frase soe desrespeitosa para outros tantos.”

Jonas Christmann Koren sustenta que Malafaia “propõe a seu público um engajamento político em questões específicas, apresentadas pelo pastor como sendo fundamentais aos ‘valores cristãos’, geralmente ligando questões morais e sexuais.” Entre esses assuntos, estão aqueles mencionados no vídeo do YouTube atacando o então candidato a prefeito de Nova Friburgo, Glauber Braga – “aborto, casamento gay, liberação de droga e ideologia de gênero”.

Pautas como essas, escreve Koren, estão no contexto do que Antonio Gramsci chamou de “pequena política”, sendo essas “questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”. Tais disputas se diferem da chamada “grande política”, envolvendo de “questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais”. Para Gramsci, a “grande política” também envolve “reduzir tudo à pequena política”. Conforme escreveu Carlos Nelson Coutinho, sobre o que ele denominou de “hegemonia da pequena política”, é precisamente “através da exclusão da grande política que se apresenta a hegemonia na época do neoliberalismo”.

A despeito de seus feitos marcantes na redução da pobreza, os limites do lulismo enquanto projeto político também se enquadram na rubrica da pequena política. Talvez não seja impossível um líder popular que levanta bandeiras progressistas como Lula ganhar de novo uma parcela expressiva do voto evangélico. O próprio Lula, mesmo que pontualmente, já mostrou que tal apoio pode ser conquistado. Porém, para aqueles que estiverem mais preocupados em travar lutas na arena da grande política, será difícil alcançar esses eleitores. Entre outras coisas, o muro Malafaia nos separa deles.

Sobre os autores

é professor de história na Hampden-Sydney College em Virginia. Está escrevendo um livro sobre os sentidos políticos do nacionalismo no Brasil no século XX.

Cierre

Arquivado como

Published in América do Sul, EDIÇÃO, Eleições, Linha de frente, Política and Revista2

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