A presidência de Donald Trump foi abreviada para apenas um mandato. Os próximos meses serão destinados à definição do trumpismo e à interpretação da rejeição estadunidense a ele.
Diversas teorias serão publicadas, mas pode-se antecipar que a vitória de Joe Biden sugere a recuperação do centrismo político, o qual tem sido desafiado por forasteiros políticos de todos os tipos durante a última década. A janela para alternativas experimentais à política consagrada pelo establishment — representada, para muitos moderados, tanto por Trump como por Bernie Sanders, independentemente das políticas diametralmente opostas de direita e esquerda — será declarada ultrapassada.
A simplicidade dessa explicação é atraente, e especialmente sedutora para os interessados na restauração da confiança popular na elite política existente, mas ela não reflete com precisão a natureza da política. Biden, como representante do establishment, contra Trump, como o penetra, é um retrocesso em relação às últimas eleições, quando Trump era um magnata do setor imobiliário e estrela de reality show sem experiência política, e não o presidente em exercício durante uma série de crises intermináveis.
Esta eleição foi diferente. Foi sobretudo um referendo sobre em qual ameaça o povo estadunidense prefere que seus líderes se concentrem: no coronavírus e sua catástrofe econômica, ou numa série de bichos-papões de esquerda. Em outras palavras, foi mais uma disputa entre atrações principais e espetáculos secundários do que entre políticos de dentro e fora do sistema. A campanha politicamente vazia de Biden certamente não fez jus às atrações principais, mas quando os eleitores estadunidenses o escolheram, por apenas uma fração dos votos, escolheram um líder que pelo menos pareceu se preocupar com fim da pandemia em vez de, digamos, na suposta ameaça que os antifas representam.
A realidade nos EUA é extremamente sombria, então a principal estratégia de campanha de Trump foi tentar desviar dela. Em especial, ele procurou agitar sua base frente a ameaças fabricadas, alegando que as cidades administradas por democratas estavam cheias de anarquistas e saqueadores; a cultura de cancelamento praticado por “pessoas más”; e a imaginária fraude eleitoral generalizada, tudo isso enquanto enaltecia elementos marginais de sua coalizão como os Proud Boys, QAnon e o movimento milicianos de direita. A estratégia de Biden, por outro lado, foi a de manter a calma, tornar as coisas simples e vagas e absorver passivamente o apoio de qualquer pessoa que estivesse mais preocupada com a pandemia do coronavírus e a recessão econômica do que o melodrama da guerra cultural de Trump.
Em muitas questões, do clima à saúde, as promessas ambiciosas de Biden em relação à crise e à recuperação econômica não foram muito específicas e, por sua vez, as promessas específicas feitas por ele também não foram muito ambiciosas. Mas Biden pelo menos reconheceu a gravidade da situação estadunidense, na qual 230.000 pessoas morreram, 12 milhões perderam o seguro de saúde patronal, oito milhões foram empurrados para a pobreza e assim por diante. Esse reconhecimento parece ter sido suficiente para distingui-lo de Trump, o qual rotineiramente desvaloriza tanto a saúde pública quanto as dimensões econômicas da atual catástrofe.
O aparente descaso de Trump pela gravidade da pandemia afastou muitas pessoas, incluindo elementos de sua própria base. Veja o exemplo dos idosos do Arizona, um grupo demográfico crucial nesta corrida. Em 2016, Trump conquistou eleitores do Arizona com mais de 65 anos por 13%, um nível que ele não chegou perto de alcançar desta vez.
Por que a reversão? Um perfil de eleitores no condado de Maricopa, que vivia em uma comunidade de aposentados fora de Phoenix, era caracterizado pela defesa constante de Trump. Eles se preocupavam com os protestos distantes do movimento Black Lives Matter e com a necessidade de restaurar a “lei e a ordem”, apesar de sua cidade ter entrado na lista das quinze mais seguras dos EUA. Outro perfil de idosos do Arizona incluía um homem que votou no Partido Republicano a vida toda, mas que estava mudando para Biden porque Trump “não aceita a responsabilidade” pela pandemia do coronavírus e “não fala sobre a vulnerabilidade das pessoas em nossa idade, 65 e mais velhos, embora ele faça parte desse grupo.”
Todas as evidências apontam que aqueles que abandonaram Trump estavam preocupados com coisas que os ameaçavam concretamente, enquanto os resistentes no apoio a Trump estavam preocupados com a imagem fantasmagórica do apocalipse retratada pelo presidente em sua campanha. Em outras palavras, aqueles que insistiram em Trump estavam teimosamente apegados a uma fantasia, enquanto aqueles que o abandonaram foram atraídos pela realidade.
Há uma lição importante aqui, e não é a de que o caminho para a vitória eleitoral passa pelo centrismo. A lição é que, quando o bicho pega, as pessoas se preocupam mais com suas condições materiais do que com o conflito cultural contra oponentes imaginários.
Os estadunidenses são cada vez mais reféns de extensos enredos partidários, convolutos e em constante mudança — tanto conservadores quanto progressistas — que colonizam suas mentes e alimentam um intenso tribalismo político que desabilita todos os outros modos de raciocínio. Trump acreditava que esse tipo de política com bomba de fumaça cultural seria sempre mais forte do que a vontade de, por exemplo, não morrer de um vírus mortal ou declarar falência após meses de desemprego sem qualquer assistência. Sim, a margem foi apertada, e claramente muitas pessoas ainda caíram na conversa de Trump, mas, no final, a estratégia de Trump estava errado.
A crise aumentou a atenção das pessoas para a incerteza sobre seu próprio bem-estar. Biden fez o mínimo necessário para tirar proveito disso. Ele previsivelmente se recusou, por exemplo, a incluir uma ampla expansão do seguro de saúde pública em sua campanha, mesmo durante uma crise de saúde pública e quando uma super maioria da nação a apoia. Mas não seria correto sugerir que os democratas não demonizaram histericamente seus oponentes; como sempre, havia paranoia e “vilanização” para todos os lados. Mas o que importou, no fim das contas, foi o fato de a pandemia ter sido a preocupação de Biden. Os eleitores associaram ele, e não Trump, à atenção à crise atual.
Isso deve encorajar, de alguma forma, a desmoralizada esquerda estadunidense. Afinal, o nosso programa consiste em garantir bons cuidados de saúde, habitação, educação, infraestrutura e emprego para todos. Embora não tivéssemos um candidato na disputa desta semana, devemos interpretar o resultado como um pequeno contrabando da afirmação da premissa básica que orienta nossa abordagem política: que, embora as pessoas comuns tenham todos os tipos de ideias perversas e atitudes reacionárias, recorrer diretamente a necessidades de uma vida decente têm o poder, ocasionalmente, de afastar as ilusões.
Ora, imagine só os tipos de margens que teríamos se o oponente de Trump tivesse feito sua campanha em uma plataforma realmente ambiciosa e que conectasse a política diretamente às condições materiais das pessoas! Independentemente do que mais tal campanha pudesse lograr, ela ajudaria a tirar milhões de pessoas da névoa da hipnose política lastreada na pós-verdade. Para a esquerda, esse é o primeiro passo para a vitória.
Sobre os autores
faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.