Resenha de Revisiting Marx’s Critique of Liberalism, de Igor Shoikhedbrod (Palgrave Macmillan, 2020).
Quando eu era um estudante de graduação me especializando em direitos humanos (não pergunte há quanto tempo), nos diziam duas coisas sobre Karl Marx: que ele não era um fã do capitalismo e que era um crítico dos direitos liberais.
A partir de seu ensaio “Sobre a questão judaica”, Marx foi levado a expor as contradições e hipocrisias fundamentais do discurso dos direitos, revelando a falta de sentido das liberdades liberais em um mundo de vastas desigualdades de propriedade e poder. Parafraseando Anatole France, direitos de propriedade liberais significavam que mendigos e CEOs tinham a mesma permissão para comprar mansões.
Na sociedade comunista que viria, continuava esse relato de Marx, o Estado e, portanto, a própria ideia de “direitos”, iria definhar. Os recursos seriam distribuídos com base no princípio “de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com suas necessidades”, e os humanos seriam finalmente capazes de desenvolver todos os lados de sua natureza: o desenvolvimento livre de cada um seria engendrado pelo desenvolvimento livre de todos. Isso seria a liberdade real e substantiva, em vez da liberdade puramente formal do liberalismo.
Em seu novo livro Revisiting Marx’s Critique of Liberalism: Rethinking Justice, Legality and Rights, o filósofo político Igor Shoikhedbrod se propõe a desafiar essa leitura convencional. De acordo com Shoikhedbrod, a crítica radical do marxismo ao liberalismo é precisamente radical no sentido da palavra em latim radix: ela surge de um conjunto de convicções compartilhadas que Marx pensa que o liberalismo é incapaz de realizar.
Marx sobre o liberalismo
O projeto de Shoikhedbrod é “reconstruir” alguns textos de Marx – uma tarefa necessária, porque, embora o famoso pensador tenha escrito muito sobre liberalismo e Direito, muito pouco foi sistematizado. Sua obra mais famosa, O Capital, embora seja muito abrangente, ela explora essencialmente como funciona o capitalismo – e incorporou muito pouco sobre a análise do Estado liberal. Portanto, os intérpretes de Marx tiveram que construir uma visão coerente a partir de outros escritos.
Esta é uma tarefa intelectual desafiadora, até porque qualquer reconstrução sempre corre o risco de ser menos fiel ao projeto original. Mas talvez o foco deva ser menos focado a fidelidade e mais focado em alcançar o “objetivo” que uma teoria estabelece para si mesma.
No caso de Shoikhedbrod, sua releitura de Marx pretende cumprir duas tarefas: primeiro, mostrar que Marx acreditava que o liberalismo e os direitos liberais foram uma conquista histórica impressionante; e em segundo lugar, argumentar que superar os limites do liberalismo em uma sociedade sem classes não significaria necessariamente o fim da legalidade e de alguma concepção transliberal de direitos. Como disse Shoikhedbrod:
Essa abordagem também pode lançar luz sobre um enigma que deixou perplexos os principais comentaristas, que têm dificuldade em entender por que Marx elogiava o valor emancipatório de certos direitos liberais enquanto concluía que nenhum desses direitos se eleva acima do atomismo e do egoísmo da sociedade burguesa. Além de oferecer uma reconstrução das visões de Marx sobre os direitos, este livro avança um argumento normativo para a legalidade comunista que está enraizado no compromisso de Marx com o desenvolvimento livre dos indivíduos… Uma sociedade comunista sem classes ainda precisaria de um sistema de justiça legal que mediasse entre os projetos diversos e potencialmente conflitantes perseguidos por indivíduos socializados.
Ambas as posições tendem a ser controversas; a primeira, uma vez que muitos dos críticos marxistas mais resolutos do liberalismo serão alérgicos a qualquer alegação de que ele disse coisas boas sobre essa odiada doutrina; e a segunda, porque muito do apelo da teorização de Marx sobre o comunismo vem da esperança de que um dia a lei e os direitos – e, portanto, a coerção legal – desaparecerão completamente.
Um grande crédito de Shoikhedbrod é que ele consegue ser altamente convincente em ambos os casos, escrevendo um livro eminentemente legível que nos dá uma melhor compreensão da relação entre o marxismo e o liberalismo.
O primeiro capítulo do livro de Shoikhedbrod é o mais importante. Ao longo de quase cem páginas, ele costura as obras fragmentadas de Marx sobre os direitos liberais e a lei, reunindo-as em um todo coerente. A imagem que emerge é consideravelmente mais diversificada do que o inventário descrito acima.
Na leitura de Shoikhedbrod, Marx é muito mais um crítico dialético do liberalismo do que um opositor direto. Ele admira as liberdades proporcionadas pela lei liberal – particularmente a liberdade de imprensa – anunciando-as como um enorme ganho sobre as restrições da aristocracia feudal. No início de sua carreira, Marx até justapõe o potencial libertador da lei liberal “racional” aos preconceitos da “tradição”.
No entanto, à medida que seu pensamento se desenvolveu, Marx tornou-se cético em relação aos apelos trans-históricos a valores como a liberdade, alegando que o liberalismo não refletia sobre suas próprias raízes na mudança das relações econômicas. Isso cegou os liberais quanto ao modo como as liberdades garantidas pela lei liberal ainda eram restringidas pela desigualdade e exploração do capitalismo. Marx acreditava que isso seria superado na futura sociedade comunista, mas notoriamente nunca forneceu muitos detalhes sobre como isso seria alcançado.
Direitos e leis no Estado socialista
Essa lacuna é o ímpeto para a inovação teórica primária de Shoikhedbrod: desenvolver uma abordagem comunista da legalidade e dos direitos inspirada na obra de Marx. Este é um negócio complicado, já que, como Shoikhedbrod reconhece, o principal apelo do comunismo é supostamente a promessa de que o Estado e a lei desaparecerão. Também parece ir contra os pressentimentos dialéticos e históricos do marxismo: quando alguém começa a fazer afirmações puramente normativas em nome de Marx, isso não o reduz apenas a outro socialista utópico?
Shoikhedbrod contorna esse problema apontando que a ideia de que a lei e o Estado simplesmente desaparecerão se deve mais a pensadores como o teórico soviético Evgeny Pashukanis do que a Marx, que acreditava que a lei seria eventualmente substituída pela “regulamentação técnica”.
Shoikhedbrod contesta essa interpretação do marxismo, insistindo que há pouca razão para assumir que Marx acreditava que todas as formas de lei e direitos desapareceriam sob o comunismo.
Embora Marx presuma que o desenvolvimento das forças produtivas sob o comunismo gerará níveis de abundância material suficientes para atender à diversidade das necessidades humanas, enquanto diminui o tempo de trabalho necessário, em nenhum momento ele sugere que os julgamentos técnicos irão substituir as considerações éticas e jurídicas… Um modo de produção capta a forma concreta como os seres humanos se expressam no mundo a partir do que produz e da maneira como produz em um determinado momento.
Shoikhedbrod entende isso como uma licença para esboçar uma teoria de como os direitos e a lei seriam em uma sociedade comunista. Ele argumenta que muitos dos direitos liberais convencionais seriam mantidos, mas em uma forma totalmente alterada. Em particular, eles não definiriam mais as relações entre “indivíduos atomísticos, mas entre indivíduos explicitamente sociais”.
Os direitos especificamente capitalistas que permitem a exploração e a dominação de classe iriam realmente definhar, e o “Estado externo” que se impõe aos cidadãos daria lugar a uma política democrática onde os indivíduos teriam a liberdade social de estabelecer cooperativamente leis para si mesmos no interesse comum. Como Marx afirmou certa vez: “a democracia é o enigma resolvido de todas as constituições”.
Shoikhedbrod não explica toda sua visão inspirada em Marx; suspeito que ele esboçará uma “teoria materialista do direito” completa em um trabalho futuro. Mas o argumento geral apresentado por Shoikhedbrod neste livro é poderoso, particularmente sua insistência de que nada poderia estar mais longe do espírito histórico do marxismo do que esperar que um Estado pós-capitalista rejeitasse todas as características de sua época histórica original.
Liberalismo e Socialismo
Shoikhedbrod produziu um excelente livro que merece um grande público. Ele rebate muitos estereótipos inúteis sobre a abordagem de Marx sobre a lei e os direitos, e antecipa uma teoria materialista completa do direito que, sem dúvida, será é acontecimento.
Minha única crítica substantiva é que, para uma leitura “hegeliana” de Marx, há muito pouco sobre a filosofia da história que sustenta sua obra (algo que Shoikhedbrod parece reconhecer no último capítulo). Isso é lamentável, porque a qualidade teleológica da teoria da história escrita por Marx é uma grande parte tanto de seu poder quanto de sua fraqueza.
Reduzido à crítica normativa, o marxismo se torna um espelho poderoso para as limitações da lei e dos direitos liberais, mas simplesmente uma voz moral e filosófica entre muitas. O mesmo acontece com uma potencial teoria materialista do direito. Shoikhedbrod obviamente não quer isso, mas não está claro como evitar o dilema sem uma defesa sustentada da abordagem de Marx da história que reconhece as críticas e as supera.
Ainda assim, isso não deve prejudicar a realização significativa que é Revisiting Marx’s Critique of Liberalism. Rebatendo a leitura usual de Marx como um mero oponente do liberalismo, Shoikhedbrod mostra que Marx celebrou as realizações do liberalismo enquanto criticava severamente sua apologética do capitalismo.
Em nosso próprio esforço por uma sociedade mais justa, podemos reconhecer as semelhanças entre liberalismo e socialismo no nível das idéias – sem permitir que os direitos de propriedade privada sabotem nosso projeto democrático.
Sobre os autores
é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson".