Trecho do livro A estrutura do poder do trânsito (2020), escrito pelo coletivo Planka.nu e traduzido pelos militantes do Tarifa Zero BH.
Em uma cena do filme Aquarius, de 2016, os jovens sobrinhos da protagonista, Clara, estão revendo fotos da família da década de 1970. Em várias delas, se surpreendem com a maneira como o carro tinha protagonismo – aparecia sempre no centro das fotos, com a família e os amigos posando ao redor. Comentam: “Que onda é essa do povo tirar sempre foto com o carro?”, ao que lhes respondem: “O carro perdeu o encanto. Agora é só um carro. Antes as pessoas posavam como se o carro fosse um ente da família, isso eu acho que agora não acontece mais”.
Mesmo que curta e prosaica, a cena do filme dirigido por Kleber Mendonça Filho – que retrata as contradições de uma família de classe média alta em Recife – é capaz de apresentar muito mais sobre o papel do carro na estrutura de poder do trânsito da sociedade brasileira do que se poderia pensar inicialmente. É comum ouvirmos o lugar-comum de que o Brasil sempre foi o “país do futuro”. Aqui, a modernidade é reiterada pelas elites como a tábua de salvação para o desenvolvimento da sociedade. E, principalmente no século XX, nenhum objeto traduziu mais essa ideia do que o automóvel. Ou melhor, a busca pelo automóvel.
A modernização urbana incompleta
A jornada das elites brasileiras pelo carro traz conceitos centrais para a compreensão da nossa sociedade. Um deles é o da modernização conservadora e incompleta, pois se apoia na necessária exclusão da maior parte da população. Outro é a construção de modos de sociabilidade segregados, bem explicitados pelo individualismo do carro. A expressão espacial dessa lógica pode ser observada em cidades com bairros nobres com alta qualidade de vida e periferias adensadas sem infraestrutura urbana. O sustentáculo desse processo são as grandes obras de infraestrutura viária e o controle dos deslocamentos da população pobre por meio de um transporte público caro e precário.
A história das cidades brasileiras no século XX reflete o poder concreto que a busca pelo paradigma da automobilidade teve em mudar nossas vidas e produzir os espaços urbanos. Na década de 1910, a cidade de São Paulo – até então a segunda mais populosa do Brasil – era a morada de 450 mil habitantes e certamente menos de 2 mil automóveis, um item ainda vinculado às elites. Naquela época, a cidade era mais adensada, a divisão de funções não era tão delimitada e o sistema de bondes cumpria o papel de principal meio de transporte e criação de sociabilidade. Era a primeira vez que diferentes classes sociais podiam conviver livremente nas ruas. A potência do encontro trazia possibilidades e explicitava as contradições de um povo recém-saído do regime escravocrata.
O bonde criava uma cidade e uma sociedade urbana mais ampla, mas sua própria lógica – um sistema sob trilhos, de lenta expansão – gerava um limite objetivo para o crescimento do tecido urbano, fazendo com que os centros das cidades se adensassem. Assim, bairros proletários surgiam ao lado de bairros de elite, acompanhados ainda do aparecimento de soluções de moradias mais precárias, como cortiços e favelas.
Não por acaso, o Rio de Janeiro do século XIX, a primeira cidade a ter um sistema de transporte coletivo consolidado no Brasil, presenciou uma das primeiras revoltas totalmente urbanas do país, que se deu em torno do reajuste de tarifa de seu sistema de bondes, em 1880. Não por acaso também, a tarifa do bonde das principais cidades brasileiras permaneceu praticamente congelada por décadas – o primeiro aumento da passagem em Belo Horizonte foi em 1928, 26 anos depois da inauguração do serviço; em São Paulo, o bonde permaneceu com o mesmo preço entre 1909 e 1947.
Um transporte público acessível, ainda que precário, em cidades nas quais o carro era a mais absoluta exceção, fez com que as elites se incomodassem. Em São Paulo, na década de 1930, é notória a substituição do plano de expansão dos bondes pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia, por meio do qual a cidade foi rasgada por grandes avenidas radiais. A criação desse mundo de asfalto não trouxe benefícios para a maior parte da população, que demandava mais linhas de bonde.
Junto com o Plano de Avenidas veio a expansão do transporte motorizado e da ocupação dos arredores não urbanizados, para além da cidade constituída, formando periferias distantes, com grandes espaços vazios entre elas e o centro. Essa lógica de ampliação da metrópole era a fórmula perfeita para o avanço da especulação imobiliária. Para os ricos, esse processo era a expulsão dos pobres do seu espaço de convívio e a adoção do carro como o ápice da modernidade. Para a parcela mais pobre significou morar em lugares cada vez mais distantes, enfrentar longas jornadas de ônibus e acessar a cidade apenas com a finalidade do trabalho.
Busão e carro no segregacionismo de classe
O sistema de ônibus brasileiro surgiu submetido à lógica da automobilidade. Os mecanismos de exclusão se manifestavam nos motivos e lugares cujo acesso era permitido: o trabalho como a única razão legítima para se usar o ônibus, o centro da cidade e as fábricas como os locais plausíveis de serem alcançados. Tudo mediado pelos crescentes preços da tarifa. E, para aqueles com carro, o livre acesso.
Porém, assim como na maior parte dos sonhos da modernização conservadora brasileira, a mobilidade urbana baseada no carro só funciona enquanto a desigualdade permanecer. Enquanto o carro era um sonho distante para a grande maioria dos brasileiros, a automobilidade era uma realidade aprazível para a minoria. A reiteração dos padrões de segregação se fez constante no desenvolvimento brasileiro, com todos os governantes buscando a promessa e o símbolo do carro como a reafirmação do seu estilo arrojado. Talvez o maior exemplo desse tipo de político tenha sido o presidente Juscelino Kubitschek.
Quando prefeito de Belo Horizonte, entre 1940 e 1945, ele abriu avenidas que levavam a elite a locais de lazer distantes do centro, como o complexo arquitetônico da Pampulha. Quando governador de Minas Gerais (1951-1955) e depois presidente da República (1956-1961), Juscelino se baseou no binômio “Energia e Transportes” para trazer o desenvolvimento econômico. O símbolo maior do modernismo racional e excludente se materializou em Brasília: a cidade, com o plano urbanístico no formato de um avião, feita para o carro, com eixos monumentais e sem calçadas, com aglomerações de concreto no lugar das reuniões populares.
Vários presidentes buscaram reproduzir a imagem de Juscelino, cada vez mais implicados na lógica corrosiva da modernidade conservadora. A ditadura militar não mediu esforços para trazer mais montadoras para o Brasil através de endividamentos e concessões. Fernando Collor apresentou como uma de suas promessas de campanha a isenção de impostos sobre importação de carros, para acabar com as “carroças brasileiras”. Itamar Franco inaugurou a última linha de montagem do Fusca. Lula propôs como principal medida para combater a crise econômica de 2008 a isenção de impostos na cadeia produtiva automobilística. Eleito presidente, Bolsonaro faz campanha pelo fim de radares, multas e flexibilização do Código de Trânsito Brasileiro. Nos sessenta anos desde o governo JK, o carro cresceu como grande sonho dos brasileiros, e se tornou muito mais presente no cotidiano das famílias, o que não significa que as cidades se tornaram mais acessíveis. Pelo contrário. O chamado “carro popular” e as motos passaram a ocupar mais garagens nos centros urbanos e periferias, mas a segregação socioespacial segue acirrada.
Tomemos Belo Horizonte como exemplo: em 1945, havia 1 automóvel para cada 100 habitantes da cidade. A grande maioria dos deslocamentos se dava a pé ou por transporte público. Em 1981, quase quarenta anos depois e mesmo após as maiores taxas de urbanização e crescimento econômico da história, o número era ainda modesto para os padrões internacionais: 20 automóveis para cada 100 habitantes. O verdadeiro crescimento ocorreu de lá para cá. Hoje, em 2020, Belo Horizonte tem 82 automóveis para cada 100 habitantes, o maior número entre as capitais brasileiras. O Brasil tem a terceira maior frota de automóveis em números absolutos do mundo, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.
Longe de trazer alguma solução, o entendimento de progresso a partir da figura do carro só agrava outros problemas. O transporte público está em crise sistêmica e as pessoas não conseguem se deslocar, principalmente quando esse deslocamento não tem como motivo o trabalho. As periferias, que já eram dispersas, se fragmentaram ainda mais, criando metrópoles de moradias pulverizadas e trajetos cada vez mais longos para acesso às oportunidades. São os moradores dessas periferias que enfrentam todas as manhãs, dentro dos ônibus, enxames de carros e motos e grotescos engarrafamentos. Os acidentes se multiplicaram e já são a segunda maior causa de mortes e mutilações entre jovens no país. A situação é ruim, inclusive para quem tem carro: em vez do sonho de vias livres e vento na cara, os motoristas encontram ruas cada vez mais engarrafadas e, a cada dia, demoram mais para chegar aos seus destinos. É a automobilidade em pleno funcionamento.
Em meio a tudo isso, os principais atingido são os mais vulneráveis socialmente: a população periférica, negra, mulheres e pessoas de meia-idade são impedidas de acessar a cidade que surgiu como fruto de seu trabalho cotidiano. Enquanto as ruas, os parques e as praças ficam vazios, a circulação em massa das carapaças de aço foi normalizada, deixando mais distantes as possibilidades de viver o diverso e o inesperado que o vento forte da América do Sul nos traz.
Cidades para quem?
O papel da automobilidade na formação das metrópoles brasileiras evidencia, também, que a locomoção das pessoas está longe de depender somente de escolhas individuais ou de decisões técnicas. A automobilidade se nutre do imaginário de autonomia individual vinda do automóvel. Nele, cada pessoa pode buscar sua própria liberdade ao garantir recursos para a compra do tão sonhado carro – ou moto –, saindo enfim do sistema de transporte público. Mas essa solução é parte do problema, uma vez que, quanto mais pessoas fizerem esse movimento, mais as cidades irão reproduzir a lógica da automobilidade. Mesmo alternativas que buscam um deslocamento mais calmo e ecologicamente consciente ou que evitam pagar a tarifa do transporte público também se mostram insuficientes quando partem da lógica individual.
Olhar para o problema da automobilidade do ponto de vista da estrutura de poder do trânsito mostra que as soluções devem rechaçar a própria lógica liberal, tanto no que diz respeito à produção capitalista das cidades quanto à sua reprodução em nossos modos de vida. Não é possível atacar um aspecto sem atacar o outro. Afinal, “ninguém ganha, a não ser que todo mundo ganhe”.
O argumento de que a mobilidade só pode ser pensada a partir de critérios técnicos é comumente usado pelo poder público para fazer com que os espaços de debate e participação popular não sejam levados em conta. Assim, os planos de expansão rodoviaristas, que, em geral, são tidos como necessários de antemão, ficam sob responsabilidade de alguns técnicos e de grandes empreiteiros, que precisam manter a cidade sempre em obras. Laudos, simulações e estudos são contratados e elaborados para embasar a lógica já conhecida. Alargam-se vias, removem-se casas e adota-se a “mais nova tecnologia” para dar maior “eficiência” para o transporte ou torná-lo mais “limpo”. Com isso, o giro do capital se realiza constantemente sobre as cidades. A face política formal dessa relação entre Estado e capital também se beneficia, ao garantir a eleição de vereadores, prefeitos e presidentes, mobilizando o imaginário da modernização e da liberdade advindas do carro.
Um dos exemplos mais recentes de como essa lógica se repete há anos no nosso país é a série de intervenções feitas nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. Para modernizar o país e mostrar ao mundo o progresso brasileiro, as tradições locais podiam ser apagadas, como foi o caso da expulsão de ambulantes e vendedores de feijão tropeiro no entorno do estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, ou das baianas do acarajé e outros vendedores ambulantes na orla de Salvador.
Também era fundamental esconder as comunidades pobres, como as mais de 20 mil famílias removidas só no Rio de Janeiro para a realização do megaevento. Com a perda de suas casas e as baixas indenizações, a tendência é que as pessoas passem a morar em locais mais distantes do centro da cidade. Mas o que parecia ser mesmo necessário era que o Brasil mostrasse sua beleza e fingisse que suas contradições não existiam.
As obras relacionadas à mobilidade urbana eram centrais para que as cidades brasileiras pudessem receber um evento desse porte, que chamava a atenção mundial. As cidades-sede passaram por obras de infraestrutura urbana que significaram um grande investimento do orçamento público em medidas rodoviaristas para atender às exigências do megaevento – o chamado “padrão FIFA”. Tais investimentos, na maioria das vezes, não respondiam às demandas sociais que estavam retidas.
Em Belo Horizonte, a necessidade histórica de expansão do metrô para bairros periféricos, como na região do Barreiro, foi substituída por um investimento em BRT que levasse até o estádio de futebol. Alguém até poderia argumentar que o BRT era, ao menos, um investimento em transporte público. Mas a estrutura de poder do trânsito seguiu intocada: para que se pudessem reservar faixas exclusivas para os ônibus, foi necessário ampliar a avenida Antônio Carlos e remover famílias de suas casas, garantindo a manutenção das faixas dos carros.
Não por acaso, é nesse cenário de explicitação de contradições entre as prioridades políticas que eclodiram as manifestações de junho de 2013. O estopim foi o aumento de vinte centavos na tarifa de ônibus na cidade de São Paulo. Até hoje, essas manifestações geram disputas de interpretações, uma vez que elas foram intensas, disruptivas e múltiplas de sentidos. O preço da tarifa colocou a lógica opressora do transporte público como parte central dos embates, sendo que mais de cem cidades do país viram os preços das tarifas serem reduzidos como resultado imediato dos protestos.
Vez ou outra, manifestações de grandes dimensões irrompem ao redor do mundo para fazer frente ao sistema desigual promovido pela automobilidade. A onda de manifestações que ocorreu no Chile em 2019 é o exemplo mais recente de como a disputa em torno do preço da tarifa do transporte público carrega consigo críticas profundas à política e às formas de sociabilidade geradas pela automobilidade. Ao se tornar tema de atuação de movimentos sociais mundo afora, como o Planka.nu, o Movimento Passe Livre e o Tarifa Zero BH, a disputa sobre o sistema de transporte público e a cobrança da tarifa tem o papel de retirar o debate da mobilidade do espaço isolado da técnica e colocá-lo no espaço da política – que é onde ele de fato reside. O que está posto é qual sociedade podemos e queremos construir coletivamente.
Na maior parte das cidades brasileiras, o sistema de transporte público é financiado exclusivamente por quem anda nele. Cada passageira ou passageiro, na hora de usar o ônibus ou metrô, financia seu funcionamento. Que por sua vez é baseado em concessões questionáveis a empresas e consórcios privados, que ganham em cima de um serviço público que deve se manter precário para que garanta a maior margem de lucro. Na lógica da modernização conservadora, quem anda e paga pelo transporte público é aquela mesma população pobre, periférica, negra e feminina – que não foi inserida nos planos de crescimento das elites ou que não alcançou um patamar de inclusão pelo consumo com a compra de um carro popular.
Vale ressaltar: a exclusão faz parte do sistema, é a regra fundamental para que ele funcione, e não sua exceção. O transporte público nos moldes atuais só é lucrativo se funcionar lotado, devendo cumprir um quadro de horários baseado na rotina do trabalho. Afinal, a esses corpos violentados cotidianamente pelo transporte só é permitido acessar a cidade para fins de produção.
Desnaturalizar a mobilidade como um espaço da técnica é, também, desnaturalizar a mobilidade como espaço de reprodução da segregação socioespacial. Compreender quem paga a tarifa de ônibus é colocar no centro do debate a lógica excludente de nossas cidades. Não se trata apenas de compreender custos e formas de remuneração por um serviço essencial, mas, também, de entender a quem o direito de acesso à cidade é garantido por meio do automóvel e de caríssimos investimentos públicos em infraestrutura – e a quem esse direito é negado.
Existe ônibus grátis
Uma das formas de garantir que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades de se movimentar pela cidade é abolir as tarifas do transporte público, ou seja, adotar a tarifa zero. Apesar de a proposta ainda deixar algumas pessoas em choque, ela não tem nada de novo. A França foi o primeiro país a adotar o modelo, no início dos anos 1970, nas cidades de Colomiers e Compiègne, que seguem com o sistema de gratuidade nas linhas de ônibus.
O triunfo da proposta fez com que diversas cidades passassem a adotar a gratuidade. A ideia se expandiu pelos países da Europa e logo chegou a locais mais distantes, como Austrália, Estados Unidos, Canadá e, mais recentemente, o próprio Brasil. Em 2020, são mais de 150 cidades em todo o mundo, segundo a plataforma colaborativa Free Public Transport.
O senso comum se restringe a pensar que a tarifa zero é impossível, já que os custos de operação de um sistema de ônibus são altos. Mas poucos pensam no retorno que a proposta possibilita. O transporte gratuito movimenta a economia, pois mais pessoas circulam pela cidade e consomem, direcionando os gastos que antes eram destinados ao transporte para a satisfação de outras necessidades, como alimentação, cultura e lazer. Isso sem contar a possibilidade de acessar uma série de locais aos quais todas e todos temos direito, como escolas, postos de saúde, parques e praças. A evasão escolar por causa da dificuldade de acesso das crianças e adolescentes é uma realidade em muitas cidades brasileiras.
Ao instituir a tarifa zero em uma cidade, o governo estimula as pessoas a andarem de ônibus em vez de usarem seus carros e motos, reduzindo o número de acidentes de trânsito e, consequentemente, os custos com saúde pública. Segundo um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2015, o custo gerado pelos acidentes de trânsito no Brasil era em torno de 40 bilhões de reais por ano. Com menos carros nas ruas também teríamos uma enorme redução da emissão de gás carbônico, diminuindo ainda mais os gastos com saúde, uma vez que a poluição do ar aumentou o número de doenças respiratórias em 14% nos últimos dez anos, segundo dados do Ministério da Saúde.
“Mas não existe almoço grátis”, é o que geralmente ouvimos daqueles que repetem a famosa frase do pai do neoliberalismo, Milton Friedman. Pois bem, a proposta de tarifa zero não pressupõe o não pagamento do transporte, mas que o pagamento não seja feito pelo usuário no momento em que ele entra no ônibus. Isso já acontece com diversos serviços, como a coleta de lixo. As pessoas não ficam na porta de suas casas todos os dias esperando os garis para poder pagar pelo recolhimento dos seus resíduos. Todas e todos já pagamos por esse serviço anteriormente por meio de uma taxa. O mesmo ocorre com as escolas. Um modelo de educação pública que obrigasse cada aluno a chegar na porta do colégio com algumas moedas para não ser mandado de volta para casa parece, no mínimo, estranho. Pois é isso que acontece com o transporte.
A proposta de gratuidade pressupõe a criação de um fundo para o qual será encaminhado o dinheiro recolhido. Esse dinheiro pode vir de diversos lugares: do aumento do imposto sobre carros de luxo, do imposto sobre aviões e helicópteros particulares, da taxação de aplicativos de transporte individual, da cobrança pelo uso do espaço público (como o pedágio urbano, ou pelo metro quadrado ocupado das vias), do recolhimento de um determinado valor do estacionamento rotativo, da contribuição sobre o uso de combustíveis fósseis, de repasses diretos da União e do Estado, da reorganização dos gastos municipais, entre outros. As possibilidades são muitas. Embutida nessa reformulação da lógica de financiamento está a garantia de um direito fundamental de acesso e a inversão dos subsídios que hoje são dados aos carros, desde os baixos impostos sobre combustíveis às garantias de garagens e estacionamentos. Para reverter a automobilidade e passarmos à acessibilidade, é preciso atacar sua lógica de reprodução econômica.
Além disso, é necessário garantir que o planejamento e o cotidiano do transporte coletivo sirvam aos interesses da população. Um transporte gratuito só poderá realmente prover acessibilidade se tiver boa regularidade e levar as pessoas aos lugares que lhes interessam. Sendo assim, a gestão de suas características – desde a forma como é financiado até o modo como é operado diariamente – deve se dar de maneira coletiva, democrática. Não é a velha fórmula de “participação popular” na qual só se assente com o que é apresentado pelo poder público. Pelo contrário, é possibilitar que o dia a dia do transporte seja fruto da deliberação de seus usuários. Para desmontar a lógica de alienação da automobilidade e dar a oportunidade de que a cidade e seus acessos sejam reinventados por todas e todos.
A primeira tentativa da tarifa zero no Brasil
A primeira tentativa de adoção de um sistema de transporte que fosse tarifa zero no Brasil aconteceu em São Paulo, durante a prefeitura de Luiza Erundina, então no Partido dos Trabalhadores, no início da década de 1990. A proposta foi colocada em cena por seu secretário de Transportes, Lucio Gregori. Diante de um contexto hiperinflacionário, com reajustes de tarifas constantes e uma crescente dificuldade de se controlar a oferta privada de transporte público, ele propôs a gratuidade como uma proposta radical de controle público sobre a oferta e a qualidade do sistema. Além da gratuidade, era a prefeitura que passaria a contratar a oferta de transporte, especificando a quantidade de viagens que queria dos empresários e retirando deles o incentivo a lotar os ônibus.
O projeto de lei previa que a gratuidade do transporte seria alcançada a partir de um rearranjo dos impostos municipais, sobretudo do IPTU, que seriam destinados para um Fundo de Transportes. A proposta apontava, ainda, a melhoria do serviço, com aumento de 4.700 ônibus na frota e diminuição da lotação. Infelizmente, a gratuidade não chegou nem a ser colocada em pauta na Câmara dos Vereadores. Contudo, a “municipalização”, isto é, a contratação pública da oferta de ônibus, foi aprovada e impediu um colapso ainda maior do sistema nos anos que se seguiram.
A proposta revolucionária de Lucio Gregori iria ficar em segundo plano no debate dos movimentos sociais de transporte por mais de uma década. A ideia de gratuidade universal do transporte foi retomada como horizonte apenas em 2005, quando vários movimentos denominados Passe Livre surgiram em diversas cidades brasileiras. Essa virada propositiva é fundamental: antes, movimentos estudantis lutavam exclusivamente por gratuidade no transporte de alunos; movimentos de desempregados lutavam pela gratuidade do deslocamento para as pessoas desse contingente; movimentos de pessoas com deficiência pelo direito ao transporte gratuito para os seus integrantes, e assim por diante. Em uma cidade como Belo Horizonte, chegam a treze as categorias de gratuidade no transporte público, enquanto a tarifa geral é uma das mais caras do país. Romper com a lógica segmentada, de nichos políticos, e avançar pela gratuidade universal é radicalizar a ideia de direito de acesso e de retomada da cidade. A proposta de tarifa zero, pautada por movimentos populares, deu força e fôlego para que ela avançasse por uma cidade em que é cada vez mais difícil de respirar.
Atualmente, diversas cidades brasileiras contam com sistema de transporte gratuito. A maior delas é Maricá, no Rio de Janeiro, com 100 mil habitantes e tarifa zero desde dezembro de 2015. Lá, o sistema gratuito ainda não contempla toda a cidade e algumas linhas são geridas por uma empresa privada. O governo municipal segue estudando formas de aumentar a arrecadação e ampliar o serviço. Já vimos que as decisões sobre mobilidade não estão no espaço isolado da técnica, mas sim integradas com a política. E é preciso coragem – e não dinheiro – para colocar projetos como esse nas ruas.
Belo Horizonte teve essa coragem em 1995, quando a prefeitura implantou o Passe-Passeio e ofereceu transporte gratuito durante alguns feriados. Naquele ano, o transporte municipal operou com superávit e, como a gestão financeira do sistema era de responsabilidade do município, foi possível dar um retorno para a população, que já pagava uma das passagens mais baratas do país. O então presidente da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte, João Luiz da Silva Dias, construiu a proposta do Passe-Passeio. A ação teve uma adesão surpreendente, mas logo foi derrubada pelas empresas de ônibus, que entraram na justiça para impedir a sua continuidade.
Hoje, em 2020, no ano da pandemia de Covid-19, desconstruir a automobilidade e fazer com que o transporte público assuma protagonismo em uma nova estrutura de poder do trânsito é cada vez mais urgente. Não apenas uma política de gratuidade do transporte, mas uma política de priorização das pessoas, de sua interação com a cidade, de sua possibilidade de criar o novo, o inesperado, sociabilidades libertadoras que não reproduzam as opressões e hierarquias que nos trouxeram até aqui.
Lucio Gregori disse que “política significa construir possibilidades, e não gerir impossibilidades”. A tarifa zero não é uma utopia. A tarifa zero é uma dessas possibilidades de transformação que, com mobilização social, dedicação e planejamento, podem ser alcançadas. E ela pode estar mais perto do que pensamos.