Bill Gates pode salvar o mundo do capitalismo? Em seu novo livro, Como evitar um desastre climático (Companhia das Letras), ele apresenta seu plano para zerar as emissões de gases do efeito estufa. Muito alarde foi feito em torno do lançamento, e o rosto de Gates estampou diversas capas de revista na semana passada. Entretanto, o tal “plano” é tristemente familiar.
Gates e muitos economistas argumentam que as alterações climáticas são um exemplo de falha de mercado. Ou seja, os mercados teriam falhado em “precificar” as emissões de carbono, o que significaria que as produzíamos em excesso. Bastaria que os governos cobrassem um preço mais “adequado” às emissões para que essa falha fosse corrigida e o planeta salvo.
Os desafios, então, resumiram-se à implementação. Se as atividades poluentes fossem mais fortemente tributadas para internalizar as externalidades negativas que provocam, quem arcaria com o ônus do pagamento desses impostos? Os responsáveis pela extração e queima de combustíveis ou os consumidores finais desses bens? E se tivermos que subsidiar energia renovável ou investir em pesquisa e desenvolvimento, quem pagará a conta?
O plano de Gates está sendo enaltecido e considerado progressista porque dá mais enfoque ao investimento estatal, a fim de reduzir o que ele chama de “ágio ecológico” (o custo adicional de usar uma alternativa ecológica), do que em impostos que cairiam sobre os consumidores. Um aumento no investimento público em infraestrutura ecológica e inovação geraria empregos, reduzindo a desigualdade, ao passo que restringiria as emissões de carbono.
Essa caracterização, porém, diz mais sobre nosso entendimento do termo “progressista” do que sobre o plano de Gates. Na política econômica, a divisão esquerda-direita foi reduzida a uma questão de gastos estatais. Os que estão à esquerda (incluindo, pelo jeito, o próprio Gates) argumentam que o capitalismo pode ser consertado com um Estado maior. Já os que estão à direita argumentam que a intervenção estatal é, por si só, o problema.
O erro fundamental dos dois lados é a suposição que o Estado é uma entidade independente e totalmente separada do mercado. Nessa visão, os Estados seriam o campo da atividade política; os mercados, o da atividade econômica. O Estado pode intervir no mercado, mas estaria “politizando” um domínio regido pela lógica pura e natural da livre concorrência. Os que estão à esquerda veem isso com bons olhos; afinal, precisamos impor algum controle político sobre o caos do mercado se quisermos promover a justiça social. Os que estão à direita discordam, pois acreditam que tentar controlar a economia por meio da política só criaria efeitos indesejáveis; Estados que tentam consertar falhas de mercado acabam criando um problema muito mais grave: a “falha de governo”.
Quando o assunto é o colapso climático, o debate é estruturado em torno da importância relativa do mercado em relação à falha do governo. Mas os termos de troca estão todos errados. “Estado” e “mercado” não são terrenos separados e regidos por lógicas diferentes; pelo contrário, são altamente interligados. O Estado constrói e atua no mercado, ora por meio da lei, definindo as regras do jogo, ora usando sua força econômica para moldar a produção, alocação e distribuição de recursos.
E o exercício do poder estatal não é neutro, sendo ele próprio influenciado pelo que acontece no mercado. O mesmo ocorre nas instituições, onde a luta pelo domínio entre diferentes grupos é influenciada pelo equilíbrio mais amplo do poder de classe na sociedade.
A incapacidade de compreender esta questão é precisamente o motivo pelo qual a maior parte dos esforços passados para “salvar o mundo” das alterações climáticas foi abortada. Os acordos de comércio de emissões, como o promulgado pela União Europeia, envolvem tentativas de enfrentar as falhas de mercado por meio da construção de novos tipos de mercados auto-reguláveis. Mas, como qualquer mercado, também são moldados pelo poder dos atores econômicos que os constroem e que atuam dentro deles.
Os Estados e as instituições internacionais, também influenciados por poderosos interesses corporativos, construíram mercados de carbono que, em vez de criar incentivos certos para as empresas mudarem de comportamento, criaram oportunidades de lucro de interesse privado. O mesmo pode ser dito sobre iniciativas de “investimento responsável” como a estrutura ESG [criada para avaliar o impacto da sustentabilidade e das práticas éticas de uma empresa], que canalizou capital para instituições financeiras que emprestam dinheiro para grandes empresas de combustíveis fósseis.
Nossa dependência das grandes empresas e dos Estados capitalistas para resolver a crise climática lembra a fábula do escorpião e do sapo. Nessa fábula, um escorpião pega carona nas costas de um sapo para atravessar um rio, mas pica o sapo no meio do caminho, fazendo que ambos se afoguem. O sapo pergunta ao escorpião por que fez algo tão obviamente autodestrutivo, ao que ele responde: “Não pude evitar. É minha natureza”.
A destruição da natureza é da natureza do capitalismo, cuja lógica central é a acumulação infinita. Mesmo que a resolução do colapso climático vá ao encontro dos interesses da classe capitalista, qualquer intervenção grande o suficiente para resolver o problema (excluindo “soluções” que permitem que metade do planeta seja submerso pela subida do nível do mar ou desertificado pelo aumento de temperatura) atrapalharia demais a acumulação para ser considerada.
O Estado capitalista deveria resolver esse desafio encorajando — ou forçando — as empresas a fazerem coisas difíceis no curto prazo, mas que promoveriam seus interesses no longo prazo. Contudo, o Estado também é estruturalmente limitado pela natureza do sistema capitalista; os governos contam com a acumulação de capital para manter tanto a sua legitimidade entre a população quanto seus valiosos vínculos com os interesses privados.
Encontrar uma saída dessa sinuca de bico requer uma construção de poder por fora dessas instituições, para que se possa moldar o que acontece dentro delas. O único contrapeso real ao poder dos donos do capital é o poder dos trabalhadores organizados; e o único contrapeso real ao poder do Estado capitalista é o poder organizado da maioria.
Não podemos contar com Bill Gates para resolver a crise climática, tampouco podemos contar com Joe Biden. A maioria das pessoas no mundo — as que serão mais prejudicadas pelo colapso climático — precisa se mobilizar para exigir uma forma diferente de organização social; uma organização baseada no suprimento das necessidades de muitos, e não da ganância de poucos.
Sobre os autores
escreve na Tribune Magazin e é apresentadora do podcast semanal A World to Win.
[…] Grace Blakeley. Bill Gates não pode salvar o mundo https://jacobin.com.br/2021/02/bill-gates-nao-pode-salvar-o-mundo/ […]
[…] Mais de uma década após os primeiros sinais da crise financeira, os ideólogos capitalistas andam ansiosos por alguma boa publicidade. As promessas outrora atraentes de meritocracia e mobilidade social soam cada vez mais vazias. Eles se angustiam em busca de uma narrativa de legitimação fácil de encaixar em uma apresentação de PowerPoint – algo difícil de se inventar contra um pano de fundo de crescente desigualdade, evasão fiscal generalizada e presságios preocupantes sobre o verdadeiro estado da economia global pós-crise econômica [0] caso os gestores dos bancos centrais decidam retirar seu suporte excessivamente estendido. Quais desenvolvimentos do mundo real poderiam sustentar tal narrativa? Que tema poderia tornar a ideia do capitalismo mais moralmente aceitável para o lote mais recente de graduados da Ivy League [0a], que podem correr o risco de se sentirem atraídos por noções como o ecossocialismo? Apesar da crescente “reação à tecnologia” contra as FAANGs (Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Google), os pensadores capitalistas ainda olham para o Vale do Silício e para sua cultura com um cintilar de esperança. Apesar de todos os seus problemas, o Vale do Silício continua sendo um poderoso laboratório para novas – e talvez melhores – soluções de mercado. Nenhum outro setor ocupa um papel tão proeminente no horizonte do imaginário capitalista ocidental nem oferece um campo tão promissor para mitologias de regeneração. […]