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Augusto de Campos, retrato de José Pelegrini - acervo pessoal

Ouver Ouviver Augusto

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Nos últimos 70 anos, Augusto de Campos nos presenteou produções que revolucionaram – mais de uma vez – a poíesis em língua portuguesa. Hoje, o poeta completa 90 anos. Considerando isso, convidamos seu editor, Vanderley Mendonça, para escrever sobre a vida deste que é, sem dúvidas, a expressão máxima do concretismo brasileiro.

A poesia de Augusto de Campos não é apenas para ser lida. Afinal, a lida deste poeta para a construção de uma linguagem nova ultrapassou as fronteiras da língua. Augusto criou uma sintaxe nova sublinhando os aspectos visuais e sonoros da palavra. Seus poemas são para se ler, ver, ouvir. Ouver. Ouviver. É preciso experimentar o poema, sentir os sentidos que dele se pode extrair. Certa vez, o escritor argentino Julio Cortázar, numa carta de agradecimento a Augusto, logo depois de ter recebido um exemplar do livro Colidouescapo, escreveu: “este libro se lee o se vive?”. Os livros de Augusto de Campos têm um caráter iniciador e transformador e são de fundamental importância para as artes gráficas no século XX. 

Boa parte da sua obra, particularmente os livros Colidouescapo (1971), Poemóbiles (1974), Reduchamp (1976) e Expoemas (1985) foram adquiridos por museus e galerias para serem expostos e podem ser vistos (ou vividos), por exemplo, no Metropolitan Museum ou no Guggenheim, em Nova York; na Galeria Maddox, em Londres, entre outros pelo mundo. Nos últimos anos, inúmeras exposições e homenagens no Brasil (SESC-SP) e no exterior, como nas cidades de Buenos Aires, Bruxelas, Zurique, Budapeste e Paris, entre outras, mostraram que Augusto de Campos é o poeta da contemporaneidade. Sua obra mantém-se atual porque a matéria-prima de sua criação é a Forma –que para ele é também criação. Muito mais que língua é linguagem (linguaviagem). Forma e conteúdo são indissociáveis.

No decorrer dos últimos 70 anos, o poeta sempre experimentou, desde seu primeiro livro, O Rei Menos o Reino (1949), que já no título anunciava o que seria Concreto dali adiante, até os poemas mais atuais publicados no Instagram. O livro de estreia já continham uma música que não era mais a melodia, mas timbres e dissonâncias, associados a cortes e a um novo léxico, trazido de sua afinidade com a vanguarda cubo-futurista de Vladimir Maiakovski e o desmoronamento que as obras de Stéphane Mallarmé, James Joyce e Guillaume Apollinaire anunciaram ao mundo já na primeira década do século XX. Obras que só se tornaram legíveis em língua portuguesa graças ao esforço de Augusto de Campos e seu irmão Haroldo, junto com Décio Pignatari, que trouxeram para o leitor brasileiro a tradução-arte da poesia, não apenas das línguas mais difundidas (inglês, francês e espanhol), mas transcriaram obras do latim clássico, do provençal, do grego antigo, alemão, catalão, hebraico e outras. Augusto de Campos, um dos mais radicais poetas da contemporaneidade, nunca abandonou a tradição, ao contrário, se alimenta dela como tradutor. Se o poeta-inventor nos tornou capazes de OUVER um verso, o tradutor-inventor nos ensinou a OUVIVER um poema. 

Eis a forma da experiência poética que Augusto de Campos nos convida a vivenciar em suas traduções. Um jogo de criação, análogo ao futebol-arte, que dribla não apenas a semântica das línguas e as palavras em estado de dicionário, mas traduz também linguagem, redesenha formas e injeta o signo novo na corrente sanguínea da língua portuguesa, o novo novo, como o poeta grafou no seu livro Balanço da bossa e outras bossas (2005). Augusto de Campos, figura rara da “Welt Literatur”, traduz o intraduzível. Para ele, a poesia é isso, afinal, uma ponte entre aquilo que não se sabe se existe e quem encontra o que não existe.

Poucas vezes na história da poesia poetas mantiveram, durante toda a sua vida, coerência entre ato e palavra. No século XX, Augusto de Campos é um desses. Seu domínio da arte e tecnologia gráficas é elemento predominante na composição de seus poemas. Sem percepção disso, aliás, creio ser difícil um leitor “vivenciar” um poema dele por completo. Das composições em Letraset, nos anos 50, às atuais incursões nas mídias sociais , passando por móbiles que compõem livros-objeto, ou mesmo holografia, seu domínio sobre a língua, a versificação e tecnologia é impressionante. Talvez no século XX nenhum poeta tenha chegado tão longe. Eu diria que Augusto de Campos é o único poeta concreto, ou do que se chama Concretismo.

Sua atualidade é tão impressionante que a dupla de DJs e produtores italianos Italoboyz compôs uma versão musical para o poema CIDADE/CITY/CITÉ,de 1963, apresentando em 2008 num festival de música eletrônica que reuniu milhares de jovens numa trance que lembrou o Woodstock. A composição, “Portucais”, tem como fundo a performance de Augusto de Campos em três línguas, registrada pelo poeta francês Marc Dachy em Paris, 1985. Este mesmo poema também já foi exposto em vários formatos – como luminosos – em muitas cidades. Atualmente, está na fachada da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

Um de seus poemas mais recentes, “Os contemporâneos não sabem ler”, é um aviso ao estado de pequenez que muitos poetas, jovens e velhos, se encontram e ao abandono da arte do verso. Eu digo arte do verso porque é raro encontrar quem ainda hoje se importe com isso. Muitos escrevem, muitos fazem piadas e as chamam poesia, muitos contam histórias, mas poucos fazem versos. Alguns até defendem que nem seja necessário trabalhar o verso, estudar, conhecer ritmo, metro, criar imagens e palavras que já não nasçam mortas, descarregadas de “sentido”. A TÉCNICA É O TESTE DA POESIA QUE PRESTE, disse ele uma vez. O resto é discurso. E por discurso, os poetas se apequenaram. Se entocaram ou se desmoralizaram. 

Augusto sempre afirmou a grandeza de Maiakovski e como é difícil fazer um poema político e ser coerente com ele. Assim como o grande poeta da Revolução, sua poesia vai muito além do discurso político, inventa novas formas de versificação, de composição tipográfica ou agregam elementos novos no poema (cartaz, som, movimento: veja-se os Popcretos, dos anos 50 ou os mais recentes no Instagram, como Lula Livre). Se na tradição amorosa a composição de um poema contém a complexidade da construção do verso (melopeia, fanopeia e logopeia, apontadas por Pound como ferramentas do grande poeta), na tradição política a invenção estética separa o poeta da mesmice dos discursos.

A obra de Augusto de Campos foi e continua sendo traduzida em muitos países, em várias línguas. As mais recentes antologias (todas bilíngues) de sua poesia são: Linguaviaje (em espanhol, publicada na Argentina, no Chile e na Espanha), Poétemoins (na França) e HANGSZÓKÉPVERSEK (em húngaro, publicada na Hungria), POESIE (em alemão, publicada no Brasil e na Suíça). Em todas elas o poeta colaborou ativamente ajudando nas versões de seus poemas e mesmo recompondo ele mesmo alguns.

Augusto trilha as sendas da invenção como leitor, tradutor e poeta. É coerente com o seu projeto poético, ao contrário de muitos poetas que envelheceram reacionários, como Ferreira Gullar. O poeta transita entre duas tradições: o amor (os trovadores, Dante, Donne, Joyce) e a política (neste caso, eu preferiria dizer, a liberdade, a atitude humanista e progressista que a arte e a poesia podem nos alertar — afinal o que é a liberdade para quem é livre? — e a expressão máxima dessa segunda linha da tradição é Maiakovski). Um poeta como ele jamais faria parte de uma Academia Brasileira de Letras, ou de qualquer academia. É o mais crítico e refinado teórico da poesia sem ser acadêmico. 

Augusto de Campos abraçou a causa em defesa de Dilma Rousseff durante o período que antecedeu ao Golpe jurídico-parlamentar de 2016 que levou ao impedimento da primeira mulher presidente do Brasil, assim como também defendeu firmemente a grande farsa que foi a condenação de Lula. Usou suas redes sociais para alertar sobre o que hoje já se comprovou ser o maior imbróglio jurídico da atualidade. Sua retidão intelectual é tão nítida e transparente quanto a concretude de sua poética que se impõe sobre a natureza retrógrada da poesia que se alimenta de alegorias fáceis e da política bananeira que saqueia o Brasil desde os século XVI, como já alertava Gregório de Matos. 

Chamado de recluso por quem não o conhece, o poeta recusa-se, por exemplo, a colaborar com a imprensa que ajudou a empurrar o país a este poço de ineficiência, crise de identidade e atraso que o Golpe de 2016 causou. Não dá entrevistas a esses jornais e TVs (e aos seus jornalistas), os mesmos que agora, em profundo estado de mea culpa, veem seus direitos se restringirem na onda neoconservadora que assola o mundo e avança com seus tons fascistas, auxiliado por hordas neopentecostais que somam maioria simples no Congresso. Mas algo de bom e necessário aconteceu: a polarização. Agora, a cortina de fumaça se dissipou. O inimigo está à frente, ao lado, atrás. Agora é possível saber com quem caminhar. E o caminho, já dizia um poeta, se faz caminhando. A Luta não será apenas com palavras.

Sobre os autores

é editor do Selo Demônio Negro, poeta e tradutor.

Cierre

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Published in América do Sul, Arte, Cultura, literatura, Livros and Perfil

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