A pandemia COVID-19 remodelou grande parte da vida moderna – mas talvez nenhum setor econômico tenha sofrido tanto impacto quanto o transporte.
O volume do tráfego de automóveis despencou com a pandemia, com acidentes de trânsito diminuindo e pessoas ao redor do mundo fotografando um céu excepcionalmente claro. A Amtrak também viu queda no volume de passageiros em mais de 90%, e o número de usuários nas companhias aéreas dos EUA caiu mais de 96%, no comparativo ano a ano, em meados de abril. E, embora alguns do setor esperem que as pessoas embarquem rapidamente nos aviões até o final do ano e que a indústria do turismo global volte ao “normal”, os dados que temos sugerem que isso é muito improvável.
Naturalmente, as pessoas estão começando a se perguntar como será um sistema de transporte pós-pandemia, e isso se desdobra em dois níveis: o que acontecerá nas cidades e como as pessoas se locomoverão entre elas. O debate sobre se o automóvel retornará ao seu trono ou será finalmente destituído pelas bicicletas e o trânsito está em andamento, mas neste artigo, irei abordar a última questão: com as viagens aéreas efetivamente interrompidas, para onde vamos a partir daqui?
É essencial que a Esquerda aproveite esta oportunidade para pressionar por um sistema de transporte intermunicipal que se centre em soluções coletivas, sustentabilidade ambiental e equidade. Isso significa desafiar o domínio dos automóveis e das companhias aéreas e garantir que o governo desempenhe um papel eficaz no planejamento de uma rede que atenda a esses objetivos.
As companhias aéreas não retornarão ao “normal”
As pessoas já detestam voar. Entre ter que chegar a um aeroporto localizado na periferia da cidade; ter que estar lá muito antes do seu voo para garantir que você tenha tempo suficiente para o teatro da segurança pós-11 de setembro para ter que se enfiar em um tubo de metal com pouco espaço pessoal por várias horas, essa afirmação não deveria ser nenhuma surpresa. Mas geralmente há poucas alternativas e, em um mundo pós-pandêmico, isso vai ficar ainda pior.
As companhias aéreas dos Estados Unidos já estão lutando contra os planos de distanciamento social em aeroportos e aviões, incluindo a exigência de manter os assentos do meio vazios, mas relatórios sugerem que haverá testes de temperatura e requisitos para uso de máscaras. Os passageiros podem precisar portar um comprovante de que não têm Covid-19 e, se quiserem usar o banheiro durante o voo, devem levantar a mão e aguardar a permissão do comissário. As configurações dos assentos podem até ser alteradas para colocar placas de acrílico entre as poltronas e reverter o assento do meio.
Christopher Schaberg, autor de The End of Airports (O Fim dos Aeroportos, em tradução livre), sugeriu que, na pior das hipóteses, as cabines de primeira classe poderiam permitir o distanciamento social adequado, enquanto os passageiros da classe econômica ficariam amontoados na parte de trás, cruzando os dedos para não serem infectados. É claro que isso não pode ser permitido, e o governo deve intervir para garantir que seja esse o caso.
A pandemia vai alterar fundamentalmente o modelo de negócios das viagens aéreas. Com volumes menores de passageiros, as companhias aéreas não serão capazes de gerar a receita adequada se os voos retornarem aos níveis pré-pandêmicos sem passageiros para preenchê-los. Nos Estados Unidos, as companhias aéreas conversaram com o Departamento de Transporte sobre a consolidação de rotas para permitir que várias companhias vendessem passagens para um mesmo voo, mas precisamos lembrar que o governo costumava desempenhar um papel muito maior na regulamentação das viagens aéreas.
Antes de 1978, funcionários do governo definiam os preços das passagens aéreas nos Estados Unidos, exigindo que elas cobrissem o custo real de funcionamento das companhias aéreas. Isso significava que os preços eram mais altos do que são hoje, quando ajustados pela inflação, porém garantiu voos diretos para aeroportos regionais menores. Após a desregulamentação, houve uma consolidação significativa no setor, e as novas gigantes da área se concentraram em voar a partir de um hub central, ao invés de conectar cidades menores. As companhias aéreas também puderam deter o poder de definir seus próprios preços, mas os preços mais baixos das passagens tornaram muito mais difícil cobrir o custo do voo. Em muitos casos, especialmente em companhias aéreas de baixo custo, isso significa que as vendas de passagens não cobrem mais o custo real de funcionamento da companhia aérea, obrigando-os a espremer mais passageiros nas cabines e a adotar um modelo de preços “à la carte” cobrando taxas cada vez maiores para compensar a diferença.
Em um mundo pós-pandêmico, o governo deve ter um papel mais ativo no planejamento e regulamentação do sistema de transporte, mas não pode simplesmente tentar aumentar as viagens aéreas a níveis pré-pandêmicos. O foco deve ser invertido, com as opções de trens e ônibus intermunicipais expandidos enquanto núcleo do sistema, e as viagens aéreas preenchendo as lacunas onde essas opções não podem fornecer serviço adequado.
Trens são o futuro
Com poucas pessoas se locomovendo da maneira como costumavam fazer, agora enfrentamos uma rara oportunidade de escolher como queremos planejar esta volta, e com a economia enfrentando uma depressão pior do que na década de 1930, as medidas de estímulos econômicos tomadas para trazer as pessoas de volta ao mercado de trabalho irão determinar como será nossa vida pelas próximas décadas.
Quando se trata de transporte, o foco deve ser o ferroviário. Por décadas, o transporte ferroviário foi amplamente ignorado em favor de novas estradas e rodovias, com carros ou aviões fazendo viagens de longa distância. Isso não pode continuar.
Ao invés disso, precisamos de um grande investimento em ferrovias. Um dos aspectos marcantes de um plano de recuperação pós-pandemia deve ser uma rede ferroviária de alta velocidade nacional, tornando, ao mesmo tempo, mais fácil e mais atraente para as pessoas viajar de trem no lugar de outras alternativas. O trem de alta velocidade já é competitivo em um número crescente de rotas por todo o mundo, e os temores potenciais sobre as infecções e a fadiga com o incômodo das viagens aéreas podem torná-lo ainda mais atraente para mais passageiros. A Califórnia já iniciou sua própria linha férrea de alta velocidade e, apesar de enfrentar alguns problemas com a falta de financiamento confiável e o excesso de confiança nos consultores, ela criou mais de quatro mil empregos na região do Vale Central.
Mas o foco não pode ser simplesmente a ferrovia sem uma abordagem abrangente e sistêmica. A Air France está cortando 40 por cento dos voos domésticos e não vai operar em nenhuma rota onde a viagem de trem dure menos de duas horas e meia por causa das condições de resgate estabelecidas pelo governo francês. Seria muito mais eficiente tornar as companhias aéreas de propriedade pública como a Itália fez com a Alitalia e planejá-las como parte de um sistema de transporte maior, reduzindo o serviço à medida que conexões ferroviárias melhores e mais frequentes são concluídas.
Trens e aviões por si só também não atenderão com eficácia às necessidades de transporte de todos. Haverá áreas do país onde fornecer o serviço ferroviário simplesmente não será eficaz. Para preencher essas lacunas e garantir que as pessoas ainda tenham opções de transporte intermunicipal de qualidade que se conectem ao sistema maior, um serviço público de ônibus deve ser estabelecido com a contribuição da comunidade sobre horários e destinos para atender às suas necessidades.
A melhor maneira de garantir que todo o sistema sirva ao bem público, ao invés de fins lucrativos ou considerações eleitorais dos políticos, é torná-lo público, com contribuições democráticas da população. Assumir o controle de nosso sistema de transporte pode ser o primeiro passo para um repensar mais amplo de como estruturamos a economia.
Planejamento para uma melhor mobilidade
Todos merecem o direito à mobilidade, e o acesso a ela não deve ser mediado com base na capacidade de pagamento de cada indivíduo. Durante todo o século passado, deu-se maior ênfase ao transporte individualizado em vez de formas coletivas de mobilidade. Bilionários como Elon Musk, ele próprio um vendedor de carros, estão tentando manter um foco individual, mas está claro que isso falhou.
Para abordar verdadeiramente as preocupações ambientais e de equidade no transporte, precisamos mudar a ênfase dos carros e aviões e priorizar o investimento em serviços ferroviários e de ônibus. Para alcançarmos estas metas será necessário que esses sistemas sejam liberados do mercado, trazendo o controle às mãos do público.
Podemos construir um sistema de transporte melhor, mas isso exige ter clareza sobre o que realmente importa. E quando se trata de conectar as pessoas com suas famílias e amigos, com entretenimento e atividades comunitárias, e com trabalho e outras oportunidades, fica claro que obter lucro deve ser nossa última prioridade.
Sobre os autores
é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won't Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).