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John Locke, pintado por Herman Verelst. Foto: Wikimedia Commons

É melhor deixar John Locke na lata de lixo da História

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Tradução
Everton Lourenço

Alguns pesquisadores e autores estão tentando reabilitar John Locke mas não deveriam fazer isso - ele era um apologista da escravidão, e não um campeão da liberdade.

A descoberta, em meados do século XX, de que John Locke havia investido no comércio de escravos pela empresa Royal African Company à primeira vista parecia uma embaraçosa hipocrisia pessoal de uma figura considerada por muito tempo como o principal teórico do liberalismo, especialmente aquele liberalismo defendido pelo Fundadores dos EUA. Porém, quanto mais completa é a imagem histórica que temos de Locke, pior ele parece.

Em uma série de artigos na Jacobin, já resumi as evidências para defender que, longe de ser um filósofo político inglês para quem os EUA apenas forneciam alguns exemplos teóricos convenientes, Locke estava profundamente envolvido em assuntos americanos. E enquanto no contexto britânico Locke se apresentava como um defensor da liberdade contra a (metafórica) “escravidão” envolvida na submissão à monarquia absolutista dos Stuart, nos Estados Unidos ele era um consistente teórico da escravidão e da expropriação.

Além de seu papel como um investidor no comércio de escravos, Locke foi um dos autores da Constituição das Carolinas, um documento que consagrava tanto a escravidão para negros quanto a servidão hereditária para “servos” brancos. De maneira fundamental, a teoria da propriedade de Locke como sendo baseada na “mistura do trabalho com a terra” se assentava sobre a expropriação dos nativos americanos e na premissa da existência de uma classe de servos.

Nesse contexto, os seres humanos sujeitados aos capitalistas eram comparados ao gado. A teoria de Locke servia para que tanto os habitantes originais da América quanto os servos que obrigados ao trabalho agrícola fossem impedidos de deter quaisquer direitos de propriedade, enquanto os concedia aos proprietários dessa mão de obra – isto é, os proprietários e senhores de escravos:

a grama que meu cavalo mordeu; a pastagem que meu servo cortou; e o minério que cavei em qualquer lugar, onde tenho direito a eles em comum com outros, tornam-se minha propriedade, sem a cessão ou o consentimento de qualquer entidade. A mão de obra que era minha, as removendo daquele estado comum em que se encontravam, fixou nelas minha propriedade. [ênfase adicionada]

Como observa um comentário de Lea Vandervelde, “o exemplo menos persuasivo em qualquer série é geralmente listado no meio. Assim, ele serve para aumentar o efeito cumulativo, mas escapa ao escrutínio.”

Um artigo recente de Holly Brewer, da Universidade de Maryland, tenta resgatar a reputação de Locke. O artigo de Brewer recebeu bastante atenção, incluindo Jesse Walker na revista Reason, que cita um dos meus artigos anteriores:

Se Locke for visto, corretamente, como um defensor da expropriação e da escravidão, quais são as implicações para o liberalismo clássico e o libertarianismo [de direita]? … A mais importante é que não há justificativa para tratar os direitos de propriedade como direitos humanos fundamentais, a par com a liberdade pessoal e a liberdade de expressão.

Walker observa que essa visão de Locke sofreu um “agudo desafio acadêmico” por Brewer (embora seu trabalho não responda diretamente ao meu).

Brewer descarta a questão da redação da Constituição de Carolina como um trabalho para o qual Locke foi contratado e pago e argumenta que “quando Locke teve uma verdadeira posição de poder no império, o que ele de fato obteve na década de 1690 após a Revolução Gloriosa, ele tentou minar o desenvolvimento da escravidão naquele império de maneiras substanciais e abrangentes.”

Só que a maioria das evidências que Brewer cita apontam na direção oposta. A principal disputa em questão surgiu em torno da atribuição de direitos ao recebimento de terras às pessoas simplesmente por serem donas (ou senhoras) de servos, fossem estes negros ou brancos. A Constituição da Carolina incorporava esses direitos (conhecidos como “headrights” ou “direito por cabeça”), mas Brewer defende que essas disposições já haviam sido inseridas quando Locke começou a trabalhar no documento – e que ele simplesmente as deixou inalteradas.

Ela também observa que muito mais tarde, sob o reinado da Rainha Anne, Locke emergiu como um forte oponente desses direitos, em particular aqueles associados com a propriedade de escravos negros, ao invés de trabalhadores brancos presos à terra (e aos seus donos). Ela escreve:

Na prática, o conceito legal de domínio assumiu a forma dos direitos por cabeça, o que encorajava o senhorio, grandes propriedades e trabalho forçado. O primeiro proprietário de Barbados, o Conde de Carlisle, dava aos homens dez acres de terra para cada servo que possuíam. Por proclamação real, Carlos I e Carlos II prometeram “direitos por cabeça” de cinquenta acres de terra na Virgínia para qualquer pessoa que comprasse um servo, fosse este branco ou negro.

No entanto, Locke não fazia objeções à escravidão em si, e nem mesmo ao princípio do direito por cabeça (que era inteiramente consistente com sua teoria da aquisição). Sua objeção era que os direitos por cabeça estavam sendo explorados a ponto de não sobrar terra para ninguém reivindicar além dos grandes magnatas.

Isso era inteiramente consistente com sua posição teórica, que justificava a aquisição de terras com a condição de que sobrasse em terras “o suficiente e tão boas quanto”. Obviamente, como indiquei em meu artigo sobre Thomas Jefferson e Locke, essa condição era um absurdo sem sentido. Os requerentes de terras recém-expropriadas invariavelmente exaurem esse estoque em no máximo poucas décadas, como aconteceu com a compra da Louisiana por Jefferson, que ele imaginou que duraria por “centenas de gerações”.

O principal ponto que podemos extrair disso tudo é que Locke esteve profundamente envolvido no emaranhado da escravidão estadunidense ao longo de sua vida, mas nunca se posicionou diretamente contra ela. Brewer desculpa Locke alegando que

revogar qualquer uma dessas leis da Virgínia (em relação à escravidão) seria complicado. Locke não podia sugerir que o novo governador ignorasse os estatutos existentes na Virgínia, pois isso prejudicaria o governo eleito.

Essa combinação de uma terna preocupação com o autogoverno lado a lado com a aceitação da escravidão levou Samuel Johnson, na época da independência estadunidense, a se perguntar sobre “como é que podemos ouvir os clamores mais altos em nome da liberdade vindo daqueles que submetem os negros?” Essa frase representa um contraste notável com a  muito citada afirmação de Locke de que

“a escravidão é um estado tão vil e miserável para o homem, e tão diretamente oposta ao temperamento generoso e à coragem de nossa nação; que dificilmente se poderia conceber que um inglês, muito menos um cavalheiro, devesse advogar por ela.” 

Só que evidentemente, neste contexto, ele se referia à “escravidão” ao poder da dinastia os Stuart, e não à verdadeira compra e venda de seres humanos. Neste último contexto, Brewer cita uma passagem dos Tratados Sobre o Governo que ela considera que isentariam Locke do apoio à escravidão:

Aqueles que eram ricos nos Dias dos Patriarcas, como hoje nas Índias Ocidentais, compravam servos homens e criadas, e com o crescimento destes, bem como com a compra de novos servos, vinham a possuir famílias grandes e numerosas […] É possível pensar que o Poder que possuíam sobre elas representava uma herança que descendia de Adão, sendo elas a compra de seu dinheiro? A cavalgadura de um Homem em uma expedição contra um Inimigo, seu Cavalo comprado em uma Feira, seria uma prova tão boa quanto essa de que o proprietário gozaria da condição de Senhor que Adão por comando possuía sobre todo o Mundo, e que por Direito descenderia até ele […] já que o título de poder que o mestre possuía em ambos os casos, seja sobre escravos ou sobre cavalos, advinha apenas de sua compra; e que a obtenção de Domínio sobre qualquer coisa, por barganha e por dinheiro, seria uma nova maneira de provar que alguém já possuía essa condição por Descendência e Herança.

Brewer comenta que

As reivindicações de poder sobre os escravos nas Índias Ocidentais eram, portanto, tão frágeis quanto as reivindicações dos Stuarts de senhorio ou domínio, ambas baseadas em fraude. Nem a monarquia nem o domínio sobre os servos eram uma condição hereditária desde Adão. “Homens e criadas”, que ele também chamou de “escravos”, eram comprados – e não herdados. Tal compra não poderia legitimar o domínio de um homem sobre outro.

Esse trecho foi completamente mal interpretado, como mostra a comparação de servos a cavalos (de novo!). Certamente, Locke argumenta em ambos os casos que a propriedade é derivada da compra, e não como uma herança de Adão. Este ponto é dirigido contra Sir John Filmer, que procurava fundamentar o “direito divino dos reis” precisamente nessa herança.

Porém, uma consideração da analogia do cavalo por Locke deixa nítido o que ele está ou não afirmando. A ideia de que a posse de um cavalo demonstraria um direito hereditário que poderia ser rastreado de volta até Adão é obviamente ridícula; mas é igualmente evidente que Locke não pretendia alegar que o domínio dos homens sobre os cavalos, adquirido por meio da captura, compra ou criação, era ilegítimo. E, uma vez adquirida, a propriedade sobre os cavalos e sua progênie é hereditária. Não há nada aí que possa sugerir que Locke se oponha à escravidão comercial, incluindo a propriedade sobre os filhos das pessoas escravizadas.

É verdade que a própria justificativa teórica de Locke para a escravidão, baseada na captura em uma guerra defensiva, não funciona para os filhos de escravos. Mas ela é igualmente inaplicável à vasta maioria dos africanos escravizados que, longe de serem agressores, foram os alvos de guerras com o objetivo de escravizá-los em busca de lucros. Não há sinal de que essa inconsistência jamais tenha incomodado Locke – de fato, sua proposta de estender o status de hereditariedade aos servos brancos mostra o oposto disso.

Ao contrário da apologética de Brewer, Locke merece por completo sua reputação como a inspiração teórica para o grupo dominante entre os “Pais Fundadores” dos EUA, que não viam problemas em combinar uma retórica retumbante sobre a liberdade com acomodações práticas à escravidão. Se vale a pena adotar como modelo alguém nesse período, são os radicais antiescravistas como Tom Paine e Benjamin Rush – e não John Locke.

Sobre os autores

é um economista australiano da Universidade de Queensland e publica um blog no portal Crooked Timber.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Europa, Legislação and Política

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