Ernest Hemingway tinha medo do escuro. Depois de ter sido gravemente ferido na Primeira Guerra Mundial, sempre que estava em casa precisava manter a luz acesa a noite toda e a sua irmã as vezes tinha de sentar ao seu lado apenas para o manter calmo. Ele tinha sido alvejado numa batalha noturna e disse que sentiu a sua alma partir do seu corpo e misteriosamente regressar. Depois disso tinha a certeza de que se se encontrasse novamente na escuridão total a sua alma abandonaria o seu corpo permanentemente.
O jovem Hemingway, tal como apresentado no primeiro dos três episódios da série da PBS, Hemingway, dirigida por Ken Burns e Lynn Novick, é uma figura interessante – um tipo grande e desajeitado que se sente mais confortável na natureza, lutando numa família estranha e perturbada, propensa a doenças mentais e ao suicídio. Tenta encontrar o seu caminho inicialmente como repórter e depois como escritor. O episódio cobre o tempo antes de desenvolver a personalidade extravagante pela qual é mais conhecido, o escritor agressivo e conflituoso, que bebia em excesso, o homem macho sempre assistindo a touradas, falando sobre as fraquezas de escritores rivais e sendo fotografado sorrindo ao lado dos grandes e belos animais que caçou. Essa personalidade, que o tornou rico e famoso, bem como opressivamente egocêntrico, é explorada no segundo episódio. O terceiro episódio aborda como essa mesma personalidade ajudou a agravar o seu alcoolismo e doença mental que acabou por levá-lo ao suicídio.
A série trata Hemingway com o tom de reverência solene, ou mesmo lúgubre, pelo qual Ken Burns é conhecido, como se todos ainda considerassem que Hemingway foi o maior escritor americano do século XX, o que, tanto quanto sei, não é de modo algum o caso.
Na altura em que tomei consciência dos debates sobre o cânone literário americano, a reputação de Hemingway já estava bastante danificada:
Nos anos 80, escreve Mary Dearborn, na sua biografia ricamente detalhada, “Hemingway e o seu lugar na tradição literária ocidental passaram a estar sob ataque total, à medida que leitores e estudiosos questionavam urgentemente o que os ‘homens brancos mortos‘ como Hemingway têm para nos dizer numa época multicultural que já não lhes confere prioridade automática. O chamado código Hemingway – uma abordagem dura e estóica da vida que aparentemente substitui a coragem física… por outros tipos de feitos – parecia cada vez mais provinciano e cansativamente macho”.
Mas podemos continuar recuando mais no tempo e encontrar a decadência instalando-se no estatuto de estrela de Hemingway enquanto escritor importante. O documentário comprova o fato surpreendente de Hemingway já estar desgastando suas boas-vindas nas várias críticas na década de 1940. Talvez tenha sido uma reação inevitável a todo aquele culto do herói nos anos 20 e 30, quando ele era o escritor mais admirado e servilmente imitado da América.
Já em 1974, Orson Welles descrevia a reputação literária de Hemingway como estando “num eclipse total”. É uma entrevista engraçada, com Orson Welles falando sobre a amizade um tanto ou quanto conflituosa que existia entre eles e que começou com uma luta incompetente durante uma projeção de Terra de Espanha, um documentário dirigido pelo comunista holandês Joris Ivens. O filme tinha sido financiado por um grupo de pessoas de esquerda que apoiavam à causa republicana durante a Guerra Civil Espanhola. A narrativa foi lida por Orson Welles e escrita por Hemingway e pelo seu amigo John Dos Passos, que deixou de ser seu amigo após discussões sobre a política do filme. Orson Welles criticou parte da narrativa, o que enfureceu Hemingway. Welles então zombou do escritor por ser “tão grande e forte”, desencadeando uma torrente de punhos voadores, a maioria deles errando o alvo.
Orson Welles observa também que, por muito que admirasse a arte de Hemingway, uma característica muito importante dele enquanto pessoa estava ausente nas suas obras mais famosas:
Aquilo que nunca encontramos nos seus livros é o seu humor. Dificilmente há uma palavra de humor num livro de Hemingway porque ele é tão tenso e solene e dedicado ao que é verdadeiro e bom. Mas, quando estava descontraído, Hemingway era tremendamente divertido e era isso que eu adorava nele.
Penso que essa é a razão pela qual os seus romances mais famosos – O Sol Nasce Sempre, O Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram – podem ser chatos de ler. Na minha juventude, quando lia tudo o que me era recomendado por pessoas de alto nível literário, não lhes dei importância. Pareciam livros rígidos e extenuantes, mal escritos. O caráter pesado da abordagem de Hemingway é comovedoramente explicado no documentário de Burns, que mostra como o autor aliviaria a sua ansiedade diária de escrever dizendo a si próprio: “Escreve apenas uma frase verdadeira”.
Tenho atualmente muito mais simpatia pela condição e problemas do escritor e provavelmente poderia ler os seus romances com maior empatia. Mas, por outro lado, sempre detestei tiques como a sua recusa frequente em usar contrações, o que parecia absurdamente afetado, alternando frases como “Nick didn’t look at it” e “Nick did not watch“. Evitar as contrações é claramente uma forma de acrescentar solenidade e peso emocional, neste caso ao agonizante nascimento de um bebé no conto Acampamento Índio, frequentemente citado no documentário de Burns e Novick.
Tal como Charles Dickens, que tinha uma tendência para o uso de palavras em inglês arcaico como “thee” e “thou” em vez do moderno “you” em momentos de grande significado espiritual, Hemingway experimentou a mesma técnica em Por Quem Os Sinos Dobram, escrevendo o conhecido desastre pós-coital “And did thou feel the earth move?” (“E sentiste a terra mover-se?).
É uma pena que para chegar às coisas mais interessantes sobre Hemingway – a sua juventude dura, alguns dos seus excelentes contos e a sua política de esquerda – se tenha de percorrer o pior da sua escrita e depois todos os disparates em torno da sua personalidade pública extravagante. Ouvimos como Hemingway costumava gabar-se interminavelmente sobre os perigosos lutadores que derrotara e sobre as medalhas que ganhara por bravura em combate – tudo mentiras, como o documentário aponta – quando, de acordo com qualquer padrão razoável de coragem, ele já tinha provado ser mais do que corajoso no início da sua vida.
A explicação para este comportamento é tão óbvia que dificilmente é necessária uma série documental de três episódios para explicar. É bastante claro atualmente que Hemingway era uma manteiga por dentro, assustado pela morte tal como todos nós, as pessoas normais, e estava apenas construindo uma fachada de grande homem para evitar que alguém reparasse.
Os esgotamentos mentais do pai que tanto amava, que acabaram por levá-lo ao suicídio, abalaram tanto Hemingway que ele se virou contra o pai de uma forma brutal, condenando-o pela sua “fraqueza”. Hemingway odiava e temia a sua mãe controladora, apoiando-a financeiramente mas recusando-se a vê-la durante muitos anos antes da sua morte. Ficou tão destroçado com a carta de rejeição que recebeu da sua primeira noiva, uma enfermeira do exército da Primeira Guerra Mundial, que nunca a superou. Passou o resto da sua vida tentando desesperadamente controlar as mulheres, empurrando cada esposa para o papel de dona de casa-enfermeira-concubina, aborrecendo-se em seguida e deixando-a por outra mulher, mais aventureira.
Conheceu o seu par ideal na 3º esposa, Martha Gellhorn (a quem Meryl Streep dá a voz no documentário), uma colega jornalista que também cobria a Guerra Civil Espanhola. Ela deixou-o para cobrir a Segunda Guerra Mundial, que Hemingway tentou evitar cobrir porque tinha um medo desesperado de ir – sentiu, não sem razão que, agora na casa dos 40 anos, já tinha levado a sua sorte longe o suficiente para sobreviver a duas guerras. Mas seguiu-a para a batalha e envergonhou-se quando ela conseguiu uma cobertura muito melhor do Dia D do que ele – Martha Gellhorn escondeu-se destemidamente num navio de combate em direção à praia de Omaha, enquanto Hemingway esperava a uma distância segura com os outros jornalistas. Provavelmente para compensar por ter sido desmascarado, cruzou a linha que separa o repórter do civil-soldado e lutou realmente na terrível batalha da Floresta Hurtgen com o 22º Regimento de Infantaria.
Foi com Mary Welsh, a 4º esposa (voz de Mary-Louise Parker no documentário), que finalmente conseguiu uma descoberta sexual, capaz de admitir por fim, na sua velhice, que a sua preferência era por mulheres de aparência andrógina e pelo jogo erótico de troca de papéis, com ele desempenhando o papel de Catarina e ela o papel de Pedro. No entanto, fora do quarto, continuava tratando ela não muito melhor do que às anteriores e é espantoso o que a maioria das esposas de Hemingway estavam dispostas a suportar. Mas é verdade que tentou escrever sobre como encontrar maior liberdade sexual no seu último romance inacabado, O Jardim do Éden.
Para muitos, esse livro foi o primeiro sinal de que talvez algo mais estivesse acontecendo por baixo de todo aquele vozerão. Para mim, era o estudo do film noir, cujas raízes estão em dois grandes escritores americanos: o brilhante mestre da literatura policial Dashiell Hammett e a figura ligeiramente surpreendente de Ernest Hemingway. Ambos chegaram à notoriedade na década de 1920, escrevendo ficção baseada na observação, que se assemelhava a reportagem, combinando insipidez e vivacidade com um resultado surpreendente. Esta abordagem fazia sentido vinda de Hemingway, um antigo repórter. Hammett, no entanto, havia trabalhado como detetive até ficar tão enojado com seus serviços de fura-greves (muitas vezes envolvendo assassinato) que desistiu. Como Hemingway, ele finalmente abraçou a política de extrema esquerda, causando problemas com o governo norte-americano mais tarde.
Ambos os escritores preferiram a exterioridade à interioridade. Recusaram-se a descrever as características e processos psicológicos dos personagens, que nas suas obras frequentemente tinham de ser colhidos a partir de diálogos curtos e secos e das descrições de atributos físicos e ações, da forma como eram manuseados objetos como cigarros, ferramentas ou copos.
Uma consequência deste estilo de escrita era bastante clara – o mundo só parecia óbvio na sua apresentação espetacular, mas era terrivelmente difícil de ler. As pessoas eram difíceis de compreender, não conseguiam sequer compreender-se a si próprias a maior parte do tempo. Em O Falcão de Malta, o detetive privado de Hammett, Sam Spade, oferece o que poderia ser uma pista para a sua natureza esquiva à mulher que ele pode ou não amar, numa história famosa conhecida como a parábola Flitcraft. É sobre um vendedor de seguros chamado Flitcraft que, ao andar por uma rua da cidade, quase é morto por uma viga de construção em queda. Como reação a isso faz uma série de mudanças dramáticas na sua vida – abandona a sua família, muda o seu nome e muda-se para uma cidade diferente. Na nova cidade, após alguns anos, consegue o mesmo tipo de trabalho, casa com uma mulher semelhante à que tinha antes, tem o mesmo número de filhos.
“Ele ajustou-se as vigas que caíam, depois já não caíam mais vigas, e ele ajustou-se para elas não caírem”, explica Spade. Foram produzidas resmas de análise literária tentando compreender de que forma a parábola Flitcraft representa a filosofia de vida de Spade.
O impressionante conto de Hemingway, Os Assassinos, que tanto perturbou Ken Burns a ponto de, segundo ele, ter inspirado o seu interesse inicial no escritor, também inspirou um grande film noir de 1946 lançado como “Os Assassinos, de Ernest Hemingway”, embora Hemingway o odiasse. Dois bandidos aparecem num restaurante de uma pequena cidade aterrorizando os infelizes empregados e clientes por informações sobre o ex-lutador sueco Ole Anderson, onde tomava normalmente as refeições. O alter ego de Hemingway, Nick Adams, consegue avisar o sueco que uns assassinos contratados o perseguem, mas este recusa-se a fugir e fica passivamente à espera do seu próprio assassinato.
Mas muito antes de nos depararmos com o mistério da indiferença do sueco à morte violenta, Hemingway já tinha construído um estado de perturbação e mal-estar difuso até sobre os fatos mais simples – que horas são, quais são os nomes das pessoas, o que está no menu do restaurante versus o que pode realmente ser comido no restaurante –, agravado pelas ameaças dos capangas, que falam em tom rítmico, constantemente empregando o insulto “rapaz brilhante” como uma rotina de uma comédia meio demente.
A ansiedade de ser apanhado dentro de algum sistema perigosamente incompreensível caracteriza alguns dos melhores primeiros contos de Hemingway, incluindo a sensação de impotência masculina no centro desses contos. É uma pena que no documentário seja dada tão pouca ênfase a este cruzamento com a pulp fiction e com o ponto de vista cinematográfico do film noir.
O documentário de Burns e Novick também lança, como era previsível, muito pouca luz sobre a política de esquerda de Hemingway. O documentário sublinha a forma como Hemingway está desmoronando-se no final da sua vida, provavelmente devido a uma combinação de fatores herdados – nove concussões ao longo da sua vida e o agravamento do alcoolismo. Apesar de Hemingway estar convencido durante este tempo de que estava sendo espionado pelo governo, Burns e Novick rejeitam tudo isso e tratam a questão como uma simples paranoia.
No entanto, como se verificou, Hemingway estava mesmo sendo observado por agentes do governo e havia uma longa ficha no FBI sobre ele que remonta a décadas atrás. Como David Masciotra, da revista Salon, argumenta,
Burns de fato entrevistou o falecido A. E. Hotchner, um jornalista e amigo de longa data de Hemingway que escreveu três livros sobre o autor, mas nunca reconhece que Hotchner expressou remorsos por não ter levado a sério as alegações de Hemingway sobre a vigilância do FBI. A exposição pública da ficha do FBI levou Hotchner a escrever que “lamentavelmente julgou mal” os receios do seu amigo e que a perseguição do FBI a Hemingway contribuiu para “a sua angústia e suicídio”.
A vigilância a Hemingway começou, sem surpresa, na década de 1930:
Hemingway chamou a atenção do FBI décadas antes, devido ao seu apoio ao governo republicano (ou seja, socialista) na Espanha durante a Guerra Civil Espanhola… [J. Edgar] Hoover denunciou Hemingway como um “antifascista prematuro” – uma designação bizarra mas, no entanto, adequada, por causa do engajamento político de Hemingway com a destruição das forças fascistas ao longo de toda a sua vida.
Imaginem o quanto a vigilância do FBI deve ter aumentado nos últimos tempos da vida de Hemingway, com o seu apoio declarado à revolução de Fidel Castro em Cuba, apoio que apenas é brevemente mencionado no documentário de Burns e Novick. Contudo, não mencionam o apoio financeiro de Hemingway e o seu trabalho ativista em prol da revolução, que deve ter contribuído muito para aumentar sua ficha de mais de cem páginas no FBI na altura da sua morte em 1961:
[A ficha] incluía a ordem do diretor do FBI, J. Edgar Hoover, para monitorar Hemingway, detalhes de planos para colocar os seus telefones sob escuta e até informações sobre como o médico de Hemingway na Clínica Mayo ia reportando o estado do autor aos serviços do FBI no Minnesota. Há também documentos de agentes com propostas sobre como o FBI poderia destruir a reputação pública do tão amado escritor.
Num ato chocante de má prática jornalística, a série de Burns e Novick não menciona uma vez sequer a ficha do FBI”.
Parece que o apoio de Hemingway a Fidel não diminuiu, mesmo depois que o desastre da Baía dos Porcos e a proibição de viagens dos Estados Unidos a Cuba impediram o autor para sempre de retornar à sua amada casa cubana onde viveu por vinte anos. Burns e Novick visitaram a casa na preparação da série e encontraram “garrafas de álcool meio bebidas, os seus discos espalhados em torno da vitrola e pequenas notações sobre seu peso, rabiscadas a lápis na parede, ao pé da balança no seu banheiro”.
No entanto, a ênfase do documentário é dada aos pedaços de prova que contrariam a política de esquerda de Hemingway, tal como a sua declaração de tom libertário num determinado momento da vida:
“Mão posso ser comunista agora porque acredito numa única coisa: a liberdade. O Estado, não me interessa nada. Tudo o que o Estado alguma vez significou para mim foi uma tributação injusta. Acredito no mínimo absoluto de governo”.
Não que o documentário seja pouco informativo – Burns e Novick parecem ter tido acesso a todos os locais, cartas, fotografias, filmes pertinentes, bem como a entrevistas relacionadas com o seu tema. Mas o tom geral e a abordagem tendem a ser os mesmos independentemente do assunto, quer se trate da Guerra Civil, do jazz, do basebol, do Dust Bowl ou de Ernest Hemingway. Como sempre, há a narração calorosa de Peter Coyote, música melancólica e um enredo narrativo bastante simples. No entanto, o resultado final do documentário é uma tendência despolitizadora, mas a verdade é que Ken Burns já é conhecido pela sua capacidade de limar as partes mais rugosas e mais interessantes dos seus temas.
Hemingway, apesar do que se possa pensar de toda a sua fanfarronice, merece um retrato melhor. E nós também.
Sobre os autores
é crítica de cinema da Jacobin e autora no Filmsuck, nos Estados Unidos. Ela também apresenta um podcast chamado Filmsuck.
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