Hobsbawm, em um livro inteligente e provocativo, procurou demonstrar que o drama da Europa consistia na conjunção (ou tradição) de intelectuais revolucionários e uma sociedade que repele a revolução. Durante a leitura senti o historiador, que vivera o pós-bolchevismo, lidando sutilmente com convicções íntimas e a justificação dos erros da União Soviética nas questões internas do partido, dentro de suas fronteiras, e na política internacional de concessões à “Guerra Fria”.
Nós, no Brasil, nem isso poderíamos fazer. Os nossos partidos de esquerda viram-se forçados a um oportunismo tortuoso, compensado com momentos de exaltação teórica, e só uma vez chegaram à prática, com a experiência da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935. Esse “revolucionarismo subjetivo” começou a sofrer retificações, exatamente na época em que ruiu a “Guerra Fria” e se proclamou o novo credo burguês da “morte do socialismo”. Os intelectuais, na maioria, quando desligados da prática preferem salvar a pele, para não sacrificar a consciência.
Houve um deslocamento nem sempre coerente e encoberto em direção à social democracia, que não seria um mal em si. O mal procedeu na disposição de ceder terreno sem luta e na instrumentalização da social democracia para a condição de mão esquerda da burguesia. Esse processo continua e nos ameaça com a perda das poucas alternativas partidárias de construção de uma sociedade nova.
Gostaria de tratar do tema como sociólogo. Na PUC-SP, por exemplo, onde passei a lecionar no último trimestre de 1977, deparei com uma oferta rica de cursos. Havia um que focalizava a organização social. Em um ímpeto automático, perguntei por que não havia um curso que tratasse não apenas da mudança social, mas especificamente da revolução social. Aí estariam dados os dois pólos: a ordem e a sua reprodução; a ordem e sua transformação radical ou pelo avesso. Meus colegas do curso de pós-graduação, que eram abertos à reflexão crítica, logo endossaram essa complementação necessária.
De uma perspectiva macrossociológica, a revolução é mais importante que a estabilidade social, vistas como assuntos específicos. Os evolucionistas foram combatidos por causa da predominância de abordagens mecanicistas e positivistas. Não existiria, porém, “evolução social da humanidade” ignorando-se mudanças sociais abruptas, provenientes de invasões, difusão cultural e mudanças sociais que adaptassem a ordem a inovações que conduziam à reforma social e à revolução.
Se ultrapassássemos os raciocínios circulares, a ordem social não ganharia muito com a obsessão comparativa. Especialmente em sociedades estratificadas, nas quais a ordem social pode conter contradições e tensões mais ou menos violentas em virtude de sua constituição. É um mito postular que os dinamismos reprodutivos são mais importantes que os transformadores. Nessas sociedades, a estabilidade procede do monopólio do poder por uma categoria social, uma casta, um estamento ou uma classe. Como explicaram Marx e Engels em A ideologia alemã, o monopólio do poder e a estabilidade vinculam-se à supremacia ou à dominação predominante.
Isso não pressupõe, por si só, a existência de tensões e de contradições que exijam algum tipo de mudança social. E a revolução (como a reforma social, de outro ângulo) cria as motivações da rebelião. A dominação de classe, que nos interessa aqui, tende a reforçar a estabilidade e a prolongar a ordem social existente além da capacidade de tolerância e submissão de outras classes ou dos sem-classes, que chegam a uma visão negativa da ordem social e terminam por desejar explodi-la, eliminando a ordem prevalecente e a dominação de classe.
A desintegração da era feudal foi prolongada. Apesar da dispersão dos núcleos de população e do grau de autonomia dos grandes senhores, a solidariedade dos estamentos dominantes conteve as impulsões que poderiam acelerar os ritmos históricos. O preço da salvação da nobreza decidiu-se pela centralização do poder nas mãos das casas nobres mais poderosas, no aparecimento resultante da monarquia e na dissociação progressiva dos artífices-comerciantes de controles rígidos. Foi assim que surgiram as premissas históricas da difusão do capital sob a forma de moeda, da propriedade privada moderna e das relações mercantis correspondentes. Aos poucos, esse estamento intermediário ajudou a soterrar a ordem feudal e tornar-se ele próprio muito importante na sociedade emergente.
Ficando dentro dessa perspectiva morfológica, que abstrai aspectos decisivos da totalidade dos processos econômicos e políticos, observa-se que se formava uma classe nova, interessada na desintegração da sociedade feudal apenas para aproveitar-se dos dividendos que podiam ser convertidos em riqueza ou poder. A burguesia abriu o seu caminho de forma sinuosa e inseriu-se na revolução – ao mesmo tempo ativa e parasitariamente. Iria demorar mais de três séculos para que ela brandisse bandeiras revolucionárias “populares” e de “salvação nacional”.
O exemplo é esclarecedor, porque mostra a formação de uma dominação de classe segundo moldes dissimulados e sob o manto de uma espoliação de outros setores da sociedade, de alto a baixo, com economia de energias sociais e por meio da penetração sistemática em todos os postos acessíveis de poder. Nesses termos, a desintegração da sociedade feudal e a consolidação da monarquia erigem-se em um modelo de rebelião silenciosa, que abrange reformas sociais sucessivas, a extinção paulatina da herança feudal e a fermentação de inovações estruturais de cima para baixo e vice- versa.
De fato, antes de encerrar esse complexo ciclo de alteração da ordem, burgueses conseguiram enobrecer-se, suas subclasses se irradiavam por todo o sistema de poder e, no conjunto, ardiam pelo advento de uma ordem social na qual não encontrassem obstáculos para difundir uma nova concepção do mundo. A revolução social coroa, nos fins do século XVIII e no início do século XIX, essa eclosão tardia que transmuta uma rede intricada de interesses econômicos, valores sociais e aspirações políticas.
No comando das fábricas, de outras instituições-chaves da sociedade e, em particular, do Estado inaugura-se outro estilo de ação social burguesa. Com ritmos rápidos, a burguesia consolida uma dominação de classe que inverte os pilares centrais da “Grande Revolução”. Liberdade, igualdade e fraternidade, nos seus principais desdobramentos, não eram conciliáveis com a forma moderna de propriedade, com a acumulação ampliada do capital, que impunha, inexoravelmente, a exploração intensiva do trabalhador, e com as lutas sociais inerentes ao novo tipo de sociedade civil.
A burguesia “conquistadora” não podia ceder espaço à ebulição que agitava a sociedade. Ela não interrompe sua revolução, mas passa a graduá-la com o fito de estendê-la a todos os recantos do meio sócio-econômico, cultural e político. As suas bandeiras revolucionárias foram enroladas e toda transformação que afetasse a estabilidade da ordem sofria paralisações prolongadas.
Excluído, de fato, das malhas do confronto tolerado e da submissão ao poder, o proletário não dispunha de vias de auto-emancipação coletiva. Só a experiência ensinaria quais eram as armas institucionais que deveriam ser postas em movimento para desencadear lutas sociais que ameaçassem a organização das fábricas ou da sociedade. O Estado assumiu o pendão de garantir a estabilidade e de selecionar mudanças que só a largo prazo teriam um significado positivo para todos. Não havia como infiltrar-se, a não ser por peneiramento social, que desfalcava os proletários de seus quadros mais capazes e combativos (“circulação das elites” acompanhada da acefalização decorrente da pequena burguesia e dos líderes dos trabalhadores qualificados).
O nível cultural médio dos países europeus mais adiantados fazia com que os mestres-artesãos tivessem informações especializadas e conhecimentos superiores aos que possuíam outros trabalhadores. Isso facilitou a disseminação do radicalismo político e a formulação de reivindicações que conduziram a posições de reforma social e permitiram a erupção dos dois movimentos sociais descritos por Marx e Engels no Manifesto comunista. Liberais e conservadores resistiam às pressões de baixo para cima. Na iminência de manifestações desastrosas para a ordem preferiam, se tivessem alternativa, dosar as mudanças exigidas. Apenas endossavam o que era mais urgente ou inevitável. A “democracia burguesa”, portanto, entrava no compasso da acomodação e sua realidade histórica nascia dos setores em confronto com a dominação de classe.
Quase um século mais tarde, o capitalismo financeiro tomou-se crescentemente burocrático e processos de internacionalização da produção, do mercado e do “Estado de Direito” germinaram em três ondas sucessivas de oligopolização e de avanços e recuos na incorporação imperialista da periferia. No ínterim, os centros imperiais fabricaram sua própria periferia. A tecnologia dos computadores e a tecnocracia tomaram conta do que se chama hoje em dia de “globalização”.
Depois do desfecho da “Guerra Fria” disseminou-se o mito de que o “socialismo está morto” e a ordem social da terceira revolução do capital monopolista funcionou como uma armadilha tanto para o “radicalismo responsável”, quanto para a própria revolução. Os países pobres ou em desenvolvimento foram empurrados para essa armadilha, pois o capitalismo monopolista da era atual requer uma infra-estrutura nova (uma fronteira de expansão dentro do mesmo espaço geográfico).
O “neoliberalismo” serviu para dar uma aparência de sentido a esse processo de devastação das classes sociais e dos sem-classes. Um embuste ideológico sem paralelos e também sem premissas históricas engana a imaginação burguesa e daqueles que deveriam encampar a resistência acirrada às formas de violência, de ultra-espoliação e de esmagamento das lutas sociais dos trabalhadores, da pequena burguesia e de estratos das classes médias em desenvolvimento social. As respostas a essa tragédia, dadas em nome da “esquerda” pela social democracia, assumiram caráter ambíguo e conformista.
Nesse passo revela-se a atualidade do marxismo e a necessidade do socialismo revolucionário militante. A experiência do socialismo de acumulação e das tentativas revolucionárias nacionalistas patentearam-se como insuficientes. Eles tiveram um ponto positivo: a volta a Marx, conjugando dialeticamente teoria e práxis. Os erros cometidos têm importância crucial. Eles apontam para as exigências expressas do pensamento socialista revolucionário. Reclamam fidelidade integral aos objetivos da democracia da maioria e a elaboração dos requisitos do advento do comunismo.
Não se pode separar em três o processo da revolução socialista: no topo dirigente, as lideranças intermediárias políticas e tecnocráticas; no meio, mas sem possibilidades concretas de ação revolucionária propriamente dita, os “intelectuais orgânicos”, sábios eunucos de uma ordem social moldada sem a compreensão das tendências históricas de médio e longo prazos da revolução; na base, uma extensa população excluída das atividades que ligam teoria e prática, fanatizada por uma máquina de propaganda cruel e castrada do poder operário.
Muitos rastreiam em Marx suas previsões geniais da organização e do futuro do capitalismo, inclusive no que se refere à primeira manifestação do capital monopolista. Mas não é por aí que se define toda a grandeza de Marx e de outros marxistas de formação teórica rigorosa. Ela está descrita na “ótica comunista”, que ele e Engels formulam com perspicácia política no Manifesto comunista. A divisão corre entre a reprodução e a ampliação da barbárie; e uma sociedade sem classes, que aniquila larga parte da herança cultural burguesa.
Os acadêmicos se apossaram dos textos clássicos do socialismo revolucionário. Chegaram a tomá-lo tão preciso que acabaram lidando com um marxismo morto, uma espécie de teologia tomista ou de metafísica kantiana (como se pode exemplificar com Althusser). A erudição afogou o que havia de inventivo e de provocativo para a reflexão e a contribuição das gerações posteriores. Ora, o destino de sua obra não era esse — mas o de fundir as idéias dos filósofos às ações rebeldes dos operários, gerando forças sociais de construção de uma sociedade nova.
A atualidade de Marx prende-se, pois, diretamente ao solapamento e eliminação do capitalismo monopolista avassalador da “globalização” de economias, culturas e sociedades que, na verdade, só se unificam em certos pontos estratégicos da consolidação do capitalismo em seu paradigma final, mais bárbaro e brutal que se poderia imaginar. Há pensadores simpáticos a Marx e neomarxistas rigorosos que enxergam nos caracteres do capital monopolista em desenvolvimento para duvidar ou mesmo negar a probabilidade de uma revolução operária.
Sem proceder a uma representação do concreto como totalidade histórica, tiram ilações que abstraem o campo das mudanças revolucionárias. Seria preciso perguntar: tais caracteres fundamentam a presunção de que as mudanças históricas que virão se concretizem? O capitalismo monopolista da era atual sufocou as contradições intrínsecas ao capitalismo em geral e que se agravam de maneira imprevista graças à composição do capital e à tecnologia que ele pressupõe? Ao produzir lucro e pobreza numa escala geométrica e ao entronizar uma tecnocracia que domina todas as instituições, da corporação gigantesca ao Estado, ele aumenta a tolerância dos subalternizados, cujo patamar mínimo de pobreza gira em torno de 25% para cima ou para baixo? A comunicação de massa exerce um efeito narcótico permanente na cabeça dos escorraçados do sistema. Mas ela não tem como anular as contradições reais de uma sociedade desse tipo.
Aproximamo-nos da verdade por inteiro. A atualidade de Marx não reside nas obras que escreveu, mas no apelo para estudar e reinterpretar o concreto como totalidade histórica e descobrir nele a natureza da revolução. Atualidade significa “ir além”, seguindo os mesmos princípios e métodos interpretativos. Se sobrevivem as crises de longa duração e se persiste o clamor rancoroso dos que sofrem os dilemas sociais, a ordem está condenada. Generaliza-se o saber de que na civilização vigente fica a gênese das iniquidades, das psicoses e do padrão de desumanização da pessoa. As duas alternativas são a decadência inevitável ou o socialismo. De que lado nos situamos? Deixar que a civilização mais rica da história da humanidade pereça miseravelmente ou levar avante os processos de renovação sem limites que ela contém, sob a égide do socialismo revolucionário?
Voltamos ao ponto de partida que Marx e Engels atravessaram. As revoluções de meados do século XIX falharam, dentro de uma ótica comunista. O que os dois pensadores fizeram? Debruçaram-se sobre a história para descobrir as fontes de seus erros. Puseram revolução e contrarrevolução face a face e buscaram novas interrogações para os problemas mal-entendidos ou para os processos em gestação. As evoluções do capitalismo monopolista hodierno são claramente reacionárias. Reação versus revolução.
Temos de recuperar a noção de revolução permanente, que eles enunciaram. E verificar por que os caminhos dessa típica reação, imersa sob inovações e “modernidade”, desembocam nos limites de uma civilização estática. E, principalmente, cabe-nos estudar se os dinamismos da revolução não estão alimentando, no substrato da sociedade capitalista mais avançada, algo diferente — uma civilização capaz de fomentar um mundo histórico que vá além dos tecnologistas e dos seus aproveitadores. Ou seja, liberar a imaginação inventiva, a ciência e a tecnologia das cadeias que as prendem à multiplicação da injustiça social.
Sobre os autores
foi um sociólogo e político brasileiro. Patrono da sociologia brasileira, também foi deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, tendo participado da Assembleia Nacional Constituinte. Faleceu em 1995.
[…] Veja mais em:https://jacobin.com.br/2021/07/revolucao-um-fantasma-que-nao-foi-esconjurado/ […]