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(Glenn Carstens-Peters / Unsplash)

Grandes empresas de tecnologia estão matando o cinema

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Tradução
Felipe Kusnitzki

A compra da MGM pela Amazon é apenas um dos últimos exemplos de como o monopólio das grandes empresas de tecnologia, as Big Tech, estão promovendo uma transformação na indústria cultural. Artistas, trabalhadores e o público destes filmes que vão sofrer com as consequências.

Durante a pandemia, especulou-se sobre quando empresas como a Netflix e a Amazon tirariam proveito das dificuldades da indústria midiática para expandir seus próprios negócios. Muito desse debate se concentrou nos cinemas e se eles comprariam uma das cadeias de exibição que estavam falindo, mas, na verdade, a primeira grande aquisição a sair foi a de um grande estúdio.

Em 26 de maio, a Amazon anunciou que compraria a MGM Studios por US$ 8,45 bilhões. A compra do famoso estúdio cinematográfico de Hollywood visa reforçar a posição da Prime Video à medida que seus concorrentes expandem suas plataformas de streaming, mas também sinaliza um desenvolvimento preocupante na consolidação da indústria do entretenimento.

Grande parte da cobertura dos jornais se concentrou no que isso significará para o negócio de streaming da Amazon: como o catálogo anterior da MGM reforçará as ofertas de streaming da Prime Video e fornecerá muita propriedade intelectual para minerar em futuras séries. Seu extrovertido CEO, Jeff Bezos, chegou a dizer que a compra foi atraente porque “a MGM tem um vasto e profundo catálogo de propriedade intelectual muito amado” que a Amazon pode “reimaginar e desenvolver para o século XXI”.

Essas declarações refletem o quão importante a propriedade intelectual (reconhecível) se tornou para a indústria moderna do cinema e da televisão, mas não nos diz nada sobre o benefício que os trabalhadores e o público podem esperar dessa fusão. A verdade é que o discurso em torno das indústrias de bens culturais mudou quase que inteiramente para refletir os interesses do oligopólio da mídia e a consolidação dessas indústrias está corroendo fundamentalmente a qualidade do trabalho e a produção cultural à medida que as corporações estão expandindo cada vez mais seu poder.

Consolidação à força

Nos Estados Unidos, a consolidação da mídia foi aumentando, grande parte, durante a última década. Em 2009, a Comcast comprou a NBCUniversal e a Disney começou sua transformação no rolo compressor que é hoje com a compra da Marvel por US$ 4 bilhões. Em 2012, também comprou a Lucasfilm por uma quantia semelhante, fisgando mais uma outra grande peça de sustentação da propriedade intelectual que impulsionava seu domínio atual nas bilheterias: a franquia Star Wars.

Mas durante esse tempo, houve outra mudança importante que apenas incentivou a tendência de consolidação que vemos hoje. A transformação da Netflix de um negócio de locação de DVDs para uma plataforma de streaming e, particularmente, sua entrada na produção de filmes e televisão em 2013, representou a entrada do capital tecnológico no negócio da mídia e do cinema. As empresas de tecnologia têm acesso muito mais fácil ao capital do que as empresas de mídia existentes, porque os investidores acreditam que terão maiores retornos, criando uma pressão para que se consolidem à medida que Amazon, Apple e outras entram na briga.

A competição apresentada por empresas de tecnologia também começou a transformar o modelo de negócios do setor. À medida que as empresas de streaming buscavam mídia para suas plataformas, o custo de aquisição de conteúdo aumentou, forçando as empresas de mídia existentes a igualar seus preços. Ao mesmo tempo, o modelo de streaming começou a esvaziar a cauda longa da receita. Em vez de colocar um filme nos cinemas ou um programa na televisão, e então vender cópias físicas e vários direitos de transmissão ao longo dos anos que se seguiram, a mídia permanecerá no catálogo de streaming para sempre.

Essas tendências serviram para acelerar o ritmo desta consolidação. Em 2016, a AT&T fez uma grande aquisição da Time Warner por US$ 85 bilhões, colocando a Warner Bros e a HBO sob seu controle, enquanto que a CBS e a Viacom também se fundiram. Então, em 2018, a Disney comprou a 21st Century Fox por US$ 71 bilhões, efetivamente tirando um de seus principais concorrentes de cena. É difícil não subestimar o quão significativo foi esse movimento e como afetou a indústria cinematográfica.

O ensaísta Film Crit Hulk (pseudônimo) compara a compra da Fox pela Disney com o que aconteceria se a Coca-Cola comprasse a Pepsi. “Comprou seu rival, saqueou as peças necessárias, manteve algumas marcas valiosas, pegou a biblioteca e desmontou todo o resto”, escreve o crítico. “E assim, de repente, 1/6 da indústria se foi.” Apesar de seu crescimento, a Disney estava realmente fazendo menos filmes um ano antes da aquisição da Fox do que na década de 1990 e não manterá a mesma produção que a Fox costumava produzir. À medida que o número de projetos diminui e o poder das empresas aumentam, a mão de obra também é afetada.

Acabando com o poder dos sindicatos

Nos primeiros anos das guerras do streaming, as plataformas foram tratadas como se estivessem inaugurando uma nova era de criatividade, à medida que buscavam realizar grandes produções com talentos reconhecíveis tanto na frente quanto atrás das câmeras para atrair novos assinantes. Eles também estavam distribuindo dinheiro para pessoas que geralmente tinham dificuldade para financiar seus projetos, permitindo um grau de experimentação que era atraente para pessoas que queriam algo diferente. Mas isso não duraria para sempre.

Em 2019, o analista de streaming Eric Schiffer disse que já estávamos saindo da “era de ouro do streaming”, porque as séries de nicho começaram a encontrar um terreno muito mais árduo para sobreviver. As decisões da Netflix sobre quais programas renovar foram determinadas por um algoritmo estranho que acabou levando ao cancelamento desproporcional de séries feitas por mulheres. Ao mesmo tempo, as séries da Netflix tiveram dificuldade em passar da segunda ou terceira temporada, que normalmente ocorre quando os bônus e aumentos salariais são concedidos. Tudo isso afeta o trabalho da indústria audiovisual.

Os atores, atrizes e diretores mais conhecidos ficarão bem, já que seus nomes são muito procurados em nossa cultura de consumo dirigida por celebridades e influenciadores, mas para as pessoas que trabalham no set e figuram as pequenas letras nos créditos do filme, não será tão fácil. A indústria cinematográfica é um dos raros setores em que os sindicatos continuam fortes, mas da mesma forma que as empresas de tecnologia corroeram o poder dos trabalhadores em outras áreas, as tendências que estão alimentando a indústria incluem também enfraquecer os sindicatos.

Os sindicatos lutaram pelas “proteções e garantias mais básicas em uma indústria absolutamente definida por sua atuação temporária”, escreve Film Crit Hulk. Mas o ensaísta explica que, assim como as empresas de eventos de subterfúgios jurídicos para negar os direitos aos trabalhadores, os gigantes da tecnologia e empresas de mídia consolidadas que disputam o domínio do streaming também estão prejudicando os direitos trabalhistas. As empresas de tecnologia como a Netflix, em particular, não tiveram que observar convenções sindicais e os direitos de cauda longa dos trabalhadores, conforme a mídia vai sendo retransmitida. E é assim que vários direitos adquiridos se tornaram inúteis na era do streaming.

Quando se trata de trabalhos mais manuais, jovens escritores e outros trabalhos de set que você talvez não conheça, o Film Crit Hulk alerta que “as taxas para esses trabalhos quando analisadas de forma geral são muito mais baixos e as pessoas estão muito felizes por simplesmente conseguirem um trabalho”, tornando mais difícil ser financeiramente estável à medida que as pessoas pulam de um emprego para o outro – isso, se puderem encontrá-los de forma confiável. Os trabalhadores e seus sindicatos ainda estão lutando, e os produtores formaram recentemente seu próprio sindicato para lutar por melhores condições, mas essas mudanças na forma como a mídia é produzida não têm consequências apenas para os trabalhadores. Elas também alteram o tipo de filme e televisão que podemos assistir.

Mudando sua percepção de produção cultura

A composição da indústria desde sempre desempenhou um papel importante na definição do que seria produzido. Na década de 1940, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos impôs leis antitruste contra os principais estúdios cinematográficos, resultando nos Decretos Paramount que limitaram o controle dos estúdios sobre a distribuição e levaram a uma explosão da produção independente nas décadas seguintes.

Da mesma forma, na década de 1970, o governo dos Estados Unidos implementou as regras de distribuição e juros financeiros (popularmente apelidado de “fin-syn”, abreviação de “financial syndication”, em tradução livre: distribuição financeira), que regulamentavam estritamente o que ABC, CBS e NBC – as três principais emissoras da época – podiam exibir no horário nobre. Essas restrições permitiram que a produção independente prosperasse à medida que o poder do oligopólio era refreado.

Mais uma vez, nos encontramos em um período em que um oligopólio exerce seu poder sobre a indústria do cinema e da televisão. A Disney controla estritamente seu catálogo e o da antiga 21st Century Fox, limitando a capacidade dos cinemas de exibir filmes clássicos. Ele usa seu domínio sobre a bilheteria por meio das propriedades que tem da Marvel e Star Wars para impor termos cada vez mais punitivos aos cinemas. Mas esse processo também gerou uma mudança na mídia produzida.

A Disney foi pioneira em mudar para um modelo focado em sucessos de bilheteria que fazem uso da propriedade intelectual existente para atrair o maior público global possível, seja Marvel, Star Wars, suas franquias clássicas e alguns dos outros propriedades intelectuais adquiridas durante os anos. Em seguida, usa esses filmes de sustentação para levar os espectadores e espectadoras à programas e minisséries que já estiveram anteriormente nas redes de televisão – sem mencionar seus parques temáticos e cruzeiros – mas que estão cada vez mais disponíveis exclusivamente por meio de sua própria plataforma de streaming.

Netflix, Amazon e outras importantes grandes empresas estão tentando emular essa estratégia, como evidenciado pelos comentários de Bezos sobre a propriedade intelectual da MGM. A Amazon investiu quase meio bilhão de dólares apenas para a primeira temporada de sua série de televisão ambientada no mundo do livro O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, na tentativa de fazer seu próprio Game of Thrones, e busca fazer uso da propriedade intelectual da MGM para desenvolver uma mídia igualmente reconhecível para atrair as pessoas. A originalidade é mais difícil de vender e, portanto, está se tornando mais difícil fazer com que uma dessas grandes empresas assuma esse risco.

Comentando sobre essa fusão, Nicholas Russell explicou que as guerras de streaming e a consolidação que está sendo incentivada transformam o cinema e a televisão em “commodities a serem negociadas e acumuladas a fim de obter assinaturas”, o que leva a uma “diluição da qualidade e vitalidade para o cinema enquanto formato”. Embora empresas como a Disney estejam produzindo menos filmes para o cinema, pois se concentram exclusivamente em sucessos de bilheteria, todas estão desenvolvendo uma enxurrada de conteúdo para suas plataformas de streaming para manter a atenção das pessoas – mas a qualidade desses programas diminuiu notavelmente.

Um precedente preocupante

É sempre difícil reconhecer o que não existe – que filmes e formatos televisivos não estão sendo produzidos porque os mercados são estruturados para incentivar outra coisa. O cinema e a televisão independentes ainda existem, mas o panorama da mídia orientado pela propriedade intelectual tem pouco espaço para histórias que não se encaixam em suas marcas existentes. A crítica ao super-herói, à ficção científica e aos sucessos de bilheteria também desperta a raiva daqueles que são confrontados pela nostalgia de emburrecer cada história ao nível que seja palatável a uma audiência infantil para refratá-las por meio de uma propriedade intelectual reconhecível.

Resta saber o que acontecerá com a fusão Amazon-MGM, mas isso abre um precedente preocupante no nível da fusão Disney-Fox. Uma das empresas de tecnologia dominantes engoliu um estúdio de Hollywood para atender a seus objetivos monopolistas e o máximo que muitos comentaristas podem fazer é se perguntar se eles conseguirão alguns novos programas no Prime Video.

É hora das autoridades que regulam os direitos de concorrência focarem sua atenção para o oligopólio de mídia e agir rapidamente para trazer novas leis que alcançam resultados semelhantes aos Decretos Paramount ou regras fin-syn. O valor da propriedade intelectual para esses gigantes da mídia também mostra a necessidade de desmantelar as excessivas proteções de direitos autorais sobre essas propriedades para forçar as empresas a investir em algo novo.

O cinema e a televisão não devem ser deixados para o setor privado, e o fracasso desse setor mostra a necessidade de uma plataforma pública para investir no tipo de produções que retratam a vida de pessoas que não são ricas e que façam as pessoas pensarem criticamente sobre o mundo em que vivemos. A Amazon, é claro, não tem incentivo nem motivação para fazer isso.

Sobre os autores

é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won't Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).

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Published in América do Norte, Análise, Cultura, Filme e TV and Tecnologia

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