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O novo drama distópico de sobrevivência Squid Game reflete o crescente descontentamento com a desigualdade socioeconômica sul-coreana. (Netflix)

Round 6 é uma alegoria do inferno capitalista

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Tradução
Cauê Seignemartin Ameni

Como Parasita, a nova série de sobrevivência da Netflix, Round 6, dramatiza os horrores da desigualdade e da exploração contemporânea na Coreia do Sul - e destrói o mito capitalista de que o trabalho árduo garante a prosperidade.

Embora o mundo conheça a indústria do entretenimento sul-coreana principalmente por sua prolífica produção de K-Pop, um punhado de filmes e séries de TV também tem atraído atenção internacional nos últimos anos. As exportações de filmes do país são muito mais sombrias e abordam direta e alegoricamente a dura realidade da vida na Coréia sob o capitalismo.

A última entrada neste gênero é o drama distópico de sobrevivência da Netflix, Squid Game [Round 6 no Brasil], que está a caminho de se tornar a série de streaming mais assistida de todos os tempos. Como o filme vencedor do Oscar 2019 de Bong Joon-ho, Parasita, e o drama Extracurricular de 2020 da Netflix, Round 6 reflete o crescente descontentamento com a desigualdade socioeconômica coreana.

Apelidado como um dos quatro “tigres asiáticos”, a economia sul-coreana passou por grandes mudanças nos últimos sessenta anos, após a rápida industrialização após a Guerra da Coréia. Em 1960, a renda per capita da Coreia do Sul de US$ 82 a colocava atrás de uma longa lista de países economicamente explorados e empobrecidos, como Gana, Senegal, Zâmbia e Honduras. Foi somente com a chegada ao poder do ditador Park Chung-hee em 1961 que a Coréia começou a experimentar um enorme crescimento econômico. Conhecida como o “Milagre do Rio Han”, a Coreia do Sul passou de um país de baixa renda a uma das principais economias do mundo em poucas décadas.

Embora o crescimento econômico da Coreia tenha elevado o padrão geral de vida, muitas pessoas foram deixadas para trás. A taxa de suicídio na Coreia do Sul é uma das mais altas do mundo, um problema especialmente prevalente entre os idosos, quase metade dos quais vive abaixo da linha da pobreza. Os jovens têm suas próprias tretas, como o recrutamento militar, o acirramento da pressão acadêmica e o desemprego (em 2020, a taxa de desemprego juvenil era de 22%). Eles cunharam um termo para essa sociedade de alta tensão e oportunidades limitadas: “O Inferno Joseon”, uma referência satírica à dinastia Joseon rigidamente hierárquica que a Coréia moderna teve de deixar para trás.

Enquanto milhões de coreanos comuns lutam para sobreviver, as elites do país mantêm um controle rígido sobre a economia. A economia coreana funciona com base nos chaebol, conglomerados empresariais pertencentes a um punhado de famílias ricas e poderosas que são apoiadas pelo governo. Antes elogiados por tirar a nação da pobreza, eles agora agem como o epítome do capitalismo monopolista na Coréia do Sul, cheia de escândalos de corrupção sem sofrerem consequências. Entre os maiores chaebol do país está a Samsung, cujo CEO Lee Jae-yong foi libertado da prisão em agosto de 2021 depois de cumprir apenas metade de sua sentença de 2 anos por suborno e peculato. Para justificar sua libertação, o governo sul-coreano citou a importância de Lee para a economia do país.

A extrema desigualdade da Coréia é o tema central de Round 6. No programa, um grupo de jogadores endividados competem numa variação de jogos infantis, para ter a oportunidade de ganhar 38 milhões de KRW. Só há um problema: todo jogo é jogado até a morte. Os jogadores que falham são mortos no local e o risco de eliminação aumenta a cada rodada. Cada vez que um jogador é morto, dinheiro extra é adicionado ao prêmio, exibido na forma de um cofrinho gigante que levita no dormitório dos jogadores.

Enquanto isso, um grupo de elites mundiais muito ricas assiste e se deleita nas miseráveis tentativas ​​dos jogadores de ganhar o prêmio em dinheiro. Eles apostam na vida dos jogadores da mesma forma que o protagonista da série, Gi-hun, apostou em uma dívida que arruinou sua vida tempos atrás: uma ilustração criativa de como a sociedade capitalista funciona com dois conjuntos de regras, um para os ricos e outra para os pobres.

O que diferencia Round 6 de outros conteúdos distópicos, como Battle Royale e The Hunger Games, é o foco explícito da série na classe e na desigualdade, especialmente no contexto da Coreia do Sul contemporânea. No segundo episódio, os personagens voltam ao seu cotidiano após terem votado pela descontinuação do jogo no primeiro episódio, mas as péssimas condições de suas vidas, atoladas com esmagadoras dívidas, inevitavelmente os fazem retornar. Se eles vão sofrer com o capitalismo apesar de tudo, eles também podem provar o prêmio em dinheiro que o jogo promete e que pode mudar suas vidas. Talvez em referência à natureza inevitável do Inferno Joseon, o episódio é intitulado “Inferno”.

A descrição da Coréia do Sul na série Round 6 ressalta como as circunstâncias econômicas para a classe trabalhadora coreana não lhes dão escolha a não ser jogar os jogos supervisionados pelos governantes da sociedade. A história gira em torno de Gi-hun, cujo vício em jogos de azar e o desemprego o deixaram endividado. Ela opta por jogos na esperança de ganhar dinheiro suficiente para pagar as contas médicas de sua mãe moribunda e para sustentar sua filha na tentativa de impedi-la de se mudar para os Estados Unidos com sua mãe.

Conforme a série avança, é revelado que os problemas financeiros iniciais de Gi-hun podem ser rastreados até a perda de seu emprego dez anos antes. O roteirista e diretor da série, Hwang Dong-hyuk, disse que modelou o personagem de Gi-hun após os organizadores da greve da fábrica da Ssangyong Motors em 2009, que terminou em derrota após sucessivos ataques na fábrica da Ssangyong Motors. Em flashbacks, aprendemos que depois que Gi-hun e um grupo de seus colegas foram demitidos, ele e seus companheiros sindicalistas se barricaram no depósito da Dragon Motors durante a noite. Os fura-greves arrombaram as portas e espancaram os trabalhadores com cassetetes, batendo em um colega de Gi-hun até a morte diante de seus olhos. Enquanto essa cena de violenta repressão se desenrola, Gi-hun se sente mal por não estar presente no nascimento de sua filha que estava nascendo.

A Coreia do Sul tem uma longa e contínua história de práticas anti-trabalho, muitas vezes extremas e às vezes violentas. No mês passado, o presidente da maior confederação sindical do país foi detido e encarcerado sob o pretexto de violar as normas de segurança da COVID-19 em uma manifestação trabalhista em Seul. Muito provavelmente, seu objetivo de elevar o grau da militância trabalhista intrigou o governo.

Embora Round 6 acene para a greve mais recente da Ssangyong Motors em 2009, a violenta luta de classes atravessou a história coreana por décadas. Em 1976, por exemplo, as trabalhadoras da fábrica têxtil Dong-Il iniciaram uma luta por eleições sindicais justas e democráticas que durou quase 2 anos, durante as quais enfrentaram uma imensa brutalidade policial e ataques de fura-greve. A luta culminou em um ataque de anti-sindicalistas apoiados pela CIA, que despejaram excrementos humanos nas trabalhadoras que tentavam votar nas eleições sindicais. Dong-Il sintetiza várias passagens da história trabalhista coreana ao mesmo tempo: a política anti-operária do governo, a guerra corporativa contra os trabalhadores, a violência contra as mulheres e o sindicalismo da empresa ligada à União Federal Coreana (FKTU). Os últimos 50 anos da história do trabalho coreano desde então não foram menos brutais.

No 4º episódio de Round 6, “Um mundo justo”, um competidor é pego trapaceando. Ele e seus cúmplices são escrachados rapidamente. O mestre do jogo então faz um discurso apaixonado no qual descreve o processo como uma meritocracia e a si mesmo como um provedor benevolente de oportunidades. “Essas pessoas sofreram desigualdade e discriminação no mundo real”, diz ele, “e estamos dando a elas uma última chance de lutar de forma justa para vencer”.

Embora talvez seja um aspecto universal nas sociedades capitalistas, a meritocracia tem ressonâncias particulares na cultura coreana, que remonta ao confucionismo. A ideia de que o trabalho duro valerá a pena continua sendo um slogan comum na Coréia, mesmo quando mais e mais jovens coreanos que seguiram o rígido caminho do sistema educacional coreano altamente competitivo enfrentam desemprego, dominação chaebol e desigualdade.

Para muitos, “O Milagre do Rio Han” se tornou “O Inferno de Joseon”. E, como Parasita antes dele, Round 6 mostra que o mito capitalista do país está sendo perfurado por rachaduras cada vez mais profundas.

Sobre os autores

está na Universidade de Yale, estudando ciência política e é membro da Young Democratic Socialists of America. Ela atua no conselho editorial da Broad Recognition, uma revista feminista de Yale.

Cierre

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Published in Ásia, Cultura, homeIzq, Resenha and Trabalho

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