Na última semana, a notícia de que o governo espanhol, pelas mãos da vice-primeira ministra e, também, ministra do Trabalho, a comunista Yolanda Díaz, pretende rever a reforma trabalhista de 2012 – que reduziu, consideravelmente, os direitos trabalhistas por lá – gerou um intenso debate nas redes sociais. A proposta logo ganhou destaque no Brasil, principalmente porque Lula, em pessoa, passou a defender o exemplo espanhol para reverter a reforma trabalhista brasileira, aprovada por Temer, como um de seus projetos de campanha.
O assunto, contudo, não ficou exclusivo ao candidato petista. Os postulantes de centro e direita, buscando apoio do empresariado, já estão defendendo a reforma trabalhista em seus pronunciamentos, alardeando um possível agravamento da crise econômica caso a reforma seja revista. João Dória, principal nome do PSDB, inclusive, já se posicionou como defensor da Reforma de Temer.
O desmonte trabalhista no Brasil
Desde o golpe do impeachment contra Dilma Rousseff, os direitos trabalhistas passaram a ser considerados como um dos principais empecilhos para o crescimento econômico do país, passando a ser alvo de mudanças e reformas, tanto pelo governo Temer, quanto por Bolsonaro.
A reforma trabalhista de 2017 foi um dos principais projetos de Michel Temer à frente da presidência da República. Contudo, sempre se questionou a forma que essa reforma foi feita e se os seus reflexos seriam de fato benéficos para a sociedade.
A pandemia causada pela Covid-19 escancarou as deficiências da legislação trabalhista brasileira atual, especialmente em relação à completa falta de regulamentação dos trabalhadores motoristas de aplicativos (no momento, está em tramitação no Senado a PL 3055/2021, de autoria do Senador Acir Gurgacz, do PDT-RO, que inclui esses trabalhadores no regime da CLT).
Assim, a alteração da legislação trabalhista promovida por Temer necessitaria de um prévio estudo de suas necessidades e um amplo debate entre especialistas dos meios jurídicos, sociais e econômicos, bem como de sindicatos. Mas, infelizmente, isso não ocorreu.
O projeto de lei que deu origem à reforma (PL 6787/2016) foi apresentado pelo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e aprovado apenas sete meses depois, em julho de 2017 a toque de caixa
Na época, Temer não escondeu que uma das principais inspirações para a reforma trabalhista foi a alteração da legislação espanhola em 2012. O então presidente inclusive se reuniu com o presidente do governo da Espanha em 2017, Mariano Rajoy, do conservador Partido Popular (PP), e destacou a semelhança entre os projetos de reforma entre os dois países e como queria que o Brasil seguisse o “renascimento” do Estado espanhol.
A reforma trabalhista trouxe diversas alterações pontuais, modificando a legislação quanto à jornada de trabalho, salário, férias e outras questões. Ainda, vale destacar duas mudanças que trouxeram maior impacto na relação trabalhista: a chamada sucumbência do trabalhador nas reclamações ajuizadas na Justiça do Trabalho, o que leva à condenação dos trabalhadores que perderam as causas a pagar seus empregadores ou ex-empregadores, e as alterações nas relações sindicais.
A primeira alteração visava diminuir o número de ações trabalhistas. Após a reforma, o trabalhador que perdesse a ação seria condenado ao pagamento de custas processuais, correspondente a 2% do valor atribuído à causa, e honorários advocatícios para a parte contrária, em algo em torno de 5% a 15% sobre o valor da causa.
Pode-se dizer que o efeito pretendido com essa alteração teve resultado, já que se estima que houve uma redução de cerca de 40% do número de reclamações trabalhistas, se comparado ao período pré-reforma.
Em relação aos sindicatos, o impacto da reforma de Temer talvez tenha trazido o maior peso na vida dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em que a reforma excluiu a contribuição sindical obrigatória (antes, um dia do salário por ano era destinado à entidade sindical da categoria), a nova legislação estabeleceu que o pactuado passou a prevalecer sobre o legislado.
Isso significa que os sindicatos deixaram de receber valores substanciais, que eram utilizados para o pagamento de despesas relacionadas à manutenção da sede física, pagamento de seus empregados e despesas do dia a dia. As contribuições agora são apenas voluntárias, o que certamente diminui o valor destinado para realização de palestras, assembleias, impressão de jornais e panfletos, aluguel de carros de som e outras atividades do cotidiano dos órgãos sindicais.
Em suma, se a reforma deu mais peso para as negociações coletivas das categorias profissionais com os patrões, nas quais os trabalhadores são representados pelos sindicatos. Essas negociações produzem as chamadas convenções coletivas ou acordo coletivos, mas por outro lado, ela enfraqueceu os mesmos sindicatos que precisam estar fortes para negociar.
A reforma trabalhista, contudo, não foi a única alteração na esfera trabalhista realizada nos últimos anos. O governo Bolsonaro seguiu os passos de Temer e realizou diversas outras reformas na estrutura do Direito do Trabalho.
Uma das primeiras ações de Jair Bolsonaro foi a extinção do Ministério do Trabalho e Previdência Social, pasta do Governo Federal fundado no governo Vargas em 1930. Com isso, houve a retirada da pauta trabalhista da vista do Poder Executivo, evidenciando que esta não é uma das prioridades do atual governo.
Com isso, a área foi absorvida pelo Ministério da Economia, evidenciando a ideia de subordinação do Direito do Trabalho às exigências econômicas, materializando o projeto neoliberal de Paulo Guedes e Bolsonaro. Como o Ministério tinha uma importante função fiscalizadora e administrativa, o resultado foi uma enorme confusão no mundo do trabalho.
O Ministério, talvez por isso, teve de ser recriado. Com a Medida Provisória (MP 1.058/21) em julho de 2021, período de crise governamental causada pelas denúncias de propina na compra da vacina na CPI da Covid. Em dezembro de 2021, às vésperas do ano eleitoral, foi sancionada a lei que recriou a pasta, após aprovação perante a Câmara dos Deputados e o Senado.
Durante o governo Bolsonaro, foi publicada a Medida Provisória que criou o “Contrato de Trabalho Verde e Amarelo”, buscando a contratação de jovens de 18 a 29 anos, com a redução de direitos trabalhistas: diminuição do valor do Fundo de Garantia recolhido pela empresa, redução da multa sobre o Fundo de Garantia em caso de rescisão contratual, isenção das empresas em contribuir com a alíquota patronal do INSS, dentre outros.
Ou seja, havia uma clara redução dos direitos trabalhistas, sob a falsa percepção que se tratava de um gesto patriota em prol do país. Próximo à data do término da vigência legal da Medida Provisória (120 dias), Bolsonaro decidiu revogar a MP, já que o texto não poderia ser reeditado e teria poucas chances de ser transformado em lei.
Com essa estratégia, a expectativa do governo é promover uma nova MP da “Carteira Verde e Amarela” no ano de 2022, antes do término do mandato de Bolsonaro.
Outra tentativa de reduzir direitos trabalhistas por parte de Bolsonaro foi a promulgação da MP 927, que regulamentava as relações trabalhistas durante o início do período pandêmico. Em sua primeira redação, em um período de extrema incerteza social, econômica e sanitária, a MP previa a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, sem a necessidade de qualquer contraprestação em dinheiro por parte dos empregadores.
Ou seja, a solução encontrada pelo governo era a mais fácil possível: o risco do negócio era transferido aos empregados, que ficariam o período todo sem nenhum ganho financeiro, enquanto o empregador não teria que arcar com nenhum valor e o Estado idem.
Devido à grande pressão da oposição e a má repercussão na mídia, o artigo da MP que previa essa suspensão foi revogado logo no dia seguinte. Somente após a promulgação da MP 936, passou a vigorar uma condição menos cômoda para o governo: era permitido a redução da jornada de trabalho e até mesmo a suspensão temporária do contrato de trabalho, com a redução proporcional do salário, mas com o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, que foi custeado e pago pela União.
Em 2022, ano de eleição presidencial, a pauta trabalhista certamente será tema de debates e alvo de propostas, tanto para reduzir os direitos que sobraram, quanto para retomar aqueles que foram revogados.
O caso espanhol
A Espanha, um dos países mais afetados pela crise econômica de 2008, promoveu uma grande reforma trabalhista em 2012, liderada pelo governo conservador do PP, sob o pretexto de que reduziria o enorme percentual de desempregados.
Para tanto, foram flexibilizados alguns direitos existentes, possibilitando, por exemplo, a negociação de direitos referentes à jornada de trabalho e remuneração sem a participação das entidades sindicais; possibilidade de contratação temporária de trabalhadores; redução dos valores das verbas rescisórias pagas aos empregados dispensados; possibilidade de dispensa coletiva; dentre outros.
Para sindicalistas e partidos de esquerda, encabeçados pelo Partido Socialista Operário da Espanha (PSOE), a reforma trabalhista de 2012 não trouxe os benefícios econômicos e sociais defendidos por Mariano Rajoy. Pelo contrário, não gerou os empregos estimados, além de ter precarizado os direitos existentes. Dentre os argumentos principais, estava o aumento da contratação temporária de trabalhadores, substituindo a contratação por tempo indeterminado. As empresas, assim, estariam contratando de forma ininterrupta trabalhadores temporários, fraudando a contratação definitiva.
Após meses de negociação entre o governo atual, liderado pelo primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez e sua vice e, também, ministra do Trabalho e Economia Social, Yolanda Díaz, filiada histórica ao Partido Comunista, sindicatos e entidades patronais, foi aprovada no final de 2021 a Contrarreforma Trabalhista.
O principal objetivo dessa nova alteração na legislação trabalhista espanhola é coibir a contratação fraudulenta de trabalhadores temporários, que representa hoje 26% dos trabalhadores no país. Não será mais possível a realização desse tipo de contrato em sequência. Em regra, esses contratos devem durar 90 dias e, em casos específicos, poderão durar por seis meses, prorrogáveis por mais seis, se aprovado por norma coletiva.
No Brasil, a reforma de Temer trouxe situação semelhante, com a possibilidade de “contrato intermitente”, na qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua.
A contrarreforma espanhola busca, também, evitar a terceirização. Para tanto, as empresas fornecedoras de mão-de-obra deverão seguir as normas coletivas da atividade realizada, aplicando todos os direitos que um empregado contratado pela empresa tomadora de serviços teria.
Outro ponto que merece destaque é a chamada ultratividade da norma coletiva. Isso significa que os direitos conquistados por meio de negociação coletiva com os sindicatos estão garantidos mesmo com o término de vigência da norma, não sendo necessária nova negociação para a sua manutenção. Vale lembrar que a Reforma de Temer vedou expressamente a ultratividade da norma coletiva (art. 614, § 3º, da CLT).
As entidades patronais, representadas pela Confederación Española de Organizaciones Empresariales (CEOE), conseguiram, contudo, a manutenção de alguns pontos da Reforma de 2012.
Por exemplo, foi mantido o artigo que permite a modificação pelo empregador de condições referentes à jornada e remuneração por razões econômicas, técnicas, organizacionais ou de produção. Também foi mantida a previsão legal que permite a inaplicabilidade dos direitos definidos em norma coletiva pactuada com o sindicato pelas mesmas razões acima expostas.
A manutenção desses pontos da reforma de 2012 foi alvo de críticas por parte da esquerda, que acredita que ainda haverá meios legais de se perpetuar a precarização da legislação trabalhista.
Revisão brasileira do desmonte trabalhista?
A discussão sobre a contrarreforma espanhola da legislação trabalhista se dá em um momento em que o Brasil registrou 13,7 milhões de trabalhadores desempregados, conforme pesquisa divulgada em outubro de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referente ao 3º trimestre do ano passado.
Importante registrar que em novembro de 2017, mês em que a reforma trabalhista entrou em vigor, o país registrava 11,9 milhões de desempregados e, desde então, nunca registrou marca inferior a 11,1 milhões, tendo, inclusive, chegado em seu pico entre julho e setembro de 2020, quando registrou 14,9 milhões de desempregados.
Ademais, no período, o Brasil registrou a quarta maior taxa de desemprego no mundo (13,2%), sendo que a Espanha, principal inspiração para a nossa reforma, registrou a segunda maior taxa (14,6%). Portanto, quase cinco anos depois, no caso brasileiro, e dez anos no caso espanhol, não se pode afirmar que o objetivo das respectivas reformas foi atingido.
Além disso, a produtividade da economia espanhola está estagnada desde 2012, contrariando os argumentos dos defensores da reforma. No caso brasileiro é pior, estamos em queda livre desde 2017 — e não conhecemos ainda o nosso fundo do poço. Do ponto de vista dos trabalhadores, ambas as reformas foram um desastre, economicamente, a espanhola não rendeu frutos e a brasileira é parte do desastre.
Caso Lula continue defendendo uma revisão da reforma trabalhista em sua campanha presidencial, terá um trabalho de conciliador semelhante ao de Yolanda Díaz. Contudo, não poderá perder de vista os principais pontos que afetaram a classe trabalhadora, especialmente o enfraquecimento das entidades sindicais (algo que Lula deve acompanhar de perto, tanto pelo seu histórico como sindicalista, quanto pela participação das centrais sindicais brasileiras nas reuniões prévias para discutir o caso espanhol) e a restrição do acesso à Justiça do Trabalho.
Sobre os autores
é advogado Especialista em Direito do Trabalho pela PUC-SP.