Não há força mais destrutiva na sociedade humana do que a guerra. A cada dia e a cada quilômetro que avança, rasga o tecido social ao redor da vida. As escolas fecham, os transportes param, as ruas ficam vazias, e essa é a respiração profunda antes do mergulho. Quando a onda chega, traz consigo o medo como poucos de nós que não vivem em zonas de guerra podem realmente entender: os sons das bombas, as imagens de destruição em lugares a próximos de sua casa, depois a visão de sangue e ferimentos e morte. No final das contas, a guerra é isso: matança organizada.
Essa é a realidade que milhões de pessoas enfrentam hoje em toda a Ucrânia. É brutal, trágico e doloroso em igual medida. Não deve haver equívocos na esquerda ao condenar a invasão de Vladimir Putin e as mortes que ela traz em seu rastro. O contexto importa quando se trata de conflito, mas não pode haver justificativa para enviar tanques e aviões para um país soberano. É um crime histórico. Devemos fazer o que pudermos para apoiar os refugiados ucranianos que são suas vítimas e mostrar nossa solidariedade aos bravos manifestantes em cidades da Rússia que insistem em dizer que isso não seja realizado em seu nome.
Ontem, Volodymyr Zelenskyy, eleito com um mandato esmagador pelo povo ucraniano em 2019, exortou o governo Putin a acabar com a violência e negociar. Todos os que se consideram democratas devem apoiar esse apelo.
É precisamente porque a guerra é tão devastadora que precisamos de um movimento anti-guerra. Este é especialmente o caso em um mundo em que a unipolaridade e o domínio inquestionável dos Estados Unidos estão se desfazendo rapidamente. A geopolítica das décadas de 2020, 30 e 40 não se parecerá com as das décadas de 1990 ou 2000. Eles se parecerão muito mais com o século XX, com grandes potências competindo por influência em todo o mundo. Se quisermos evitar que os piores episódios dos últimos cem anos se repitam, precisamos aprender suas lições mais uma vez – e rapidamente.
Um registro de cumplicidade
Uma lição é esta: devemos ser capazes de criticar nossos próprios governos. O caminho para a guerra é pavimentado com as mitologias nacionalistas das grandes potências e a impunidade de seus líderes. No caso da Rússia, isso ficou claro nos últimos dias, com as palestras de uma hora de Putin apresentando uma versão distorcida da história. Mas não é apenas na Rússia que as grandes potências têm mitologias e os líderes vão para a guerra impunemente.
Na Grã-Bretanha, nossos líderes invadiram estados soberanos sem ter tido provocação. Eles fizeram isso no Iraque em 2003, participando do assassinato de centenas de milhares de civis. As pessoas que mentiram para nos levar para aquela guerra não enfrentaram até hoje as consequências. Suas carreiras continuaram, assim como suas vidas luxuosas, enquanto uma região inteira do mundo foi mergulhada nas profundezas do inferno por décadas. Ainda estamos vivendo com as suas consequências hoje, inclusive aqui na Grã-Bretanha, com a crise dos refugiados ou a restrição das liberdades civis provocada pela Guerra ao Terror.
Mas eles não fizeram isso apenas no Iraque. Ouvimos muito pouco hoje sobre o papel da Grã-Bretanha na guerra liderada pela OTAN na Líbia em 2011, que demoliu esse Estado, deixou seu povo nas mãos de senhores da guerra e empurrou milhares para fugir e se afogar no Mediterrâneo. Tampouco ouvimos falar da cumplicidade da Grã-Bretanha na guerra em curso no Iêmen, conduzida por nossa aliada Arábia Saudita com nossas armas, dos quais 17,6 bilhões de libras foram fornecidos pelos sistemas BAE aos sauditas desde 2015. As Nações Unidas estimam que 377.000 iemenitas morreram nesse conflito.
Essas vidas não são mais ou menos importantes do que as vidas dos ucranianos. Devemos lutar para acabar com todas essas guerras e todas as guerras que ainda estão por vir.
Uma coisa é certa: não vamos acabar com a guerra simplesmente dizendo que nosso lado representa a virtude e o outro lado representa o mal. Essa é a mitologia que engolimos de nossos líderes e da mídia no Ocidente todos os dias. Desde a Guerra Fria, o Ocidente se posicionou como defensor da democracia e da liberdade de expressão em todo o mundo. A opinião liberal em nossos países de origem repetiu este argumento ad nauseam. Mas dificilmente era verdade.
Mesmo na Rússia, quando a Guerra Fria terminou e o Ocidente reinava supremo e incontestável em toda a face da terra, o Ocidente não podia e não queria defender a democracia. Ele interveio descaradamente na eleição russa de 1996 para ajudar a fraude eleitoral que deu vitória a Boris Yeltsin, um resultado que de muitas maneiras abriu o caminho para a Rússia que vemos hoje.
Quantas pessoas no Ocidente sabem sobre o papel de seus governos nessa eleição? Quantos sabem que a privatização em massa que se seguiu sob Yeltsin resultou em milhões de mortes na antiga União Soviética? Este estudo acadêmico não é de alguns periódicos marginais; foi uma descoberta de 2009 publicada no Lancet. A expectativa de vida entre os homens russos caiu de 67 em 1985 para 60 em 2007. Isso é uma catástrofe social, e nós ajudamos a causá-la.
Não é surpresa alguma, então, que quando o sonho da democracia capitalista que vendemos ao povo russo se tornou uma fraude, eles se voltaram para um demagogo nacionalista como Putin? Não é, mas eles não fizeram isso sozinhos. Os serviços de inteligência da Grã-Bretanha ajudaram a facilitar a ascensão de Putin e Tony Blair até voou para São Petersburgo para assistir à ópera ao seu lado, a fim de reforçar sua credibilidade. Ainda mais contundente, nossos líderes apoiaram Putin em seu massacre brutal na Chechênia, ignorando os crimes de guerra que ele cometeu para promover os interesses da British Petroleum.
Na mesma época, os políticos britânicos estavam facilitando o fluxo de dinheiro dos oligarcas russos em grande escala para Londres. Logo, o Partido Conservador sozinho estava recebendo mais de 2,3 milhões de libras em doações políticas das mesmas pessoas que se beneficiaram da privatização em massa feita na Rússia. Como essas pessoas podem reivindicar qualquer autoridade para criticar Vladimir Putin?
Contra a guerra em todos os lugares
Esta é a mesma classe política que agora bravateia no Parlamento, fazendo declarações grandiosas e sacudindo os sabres da “justiça”. Nada disso deve fornecer qualquer consolo ao povo da Ucrânia. Para nossos líderes no Ocidente, eles eram tanto um peão em um tabuleiro de xadrez geopolítico quanto são para Putin. Mas, a menos que essa realidade – o fato de nossos governos não representarem justiça, democracia ou paz em escala global – fique clara às pessoas que vivem aqui, eles nunca serão responsabilizadas por suas ações.
Em 2008, a OTAN convidou a Geórgia e a Ucrânia a aderirem. A lógica para georgianos e ucranianos, com uma superpotência militar avassaladora e cada vez mais hostil ao lado, era bastante óbvia. Mas que tipo de jogo os líderes ocidentais estavam jogando? Eles alguma vez pretenderam, como exige a adesão à OTAN, entrar em guerra com a Rússia se ela invadisse esses países? A resposta a essa pergunta ficou clara quase imediatamente quando a Rússia invadiu a Geórgia. E hoje está ainda mais claro.
Mas nossos líderes seguiram em frente, encorajando o governo ucraniano a continuar no caminho da integração militar com o Ocidente. (Muitas vezes se esquece que é isso que significa ser membro da OTAN, e por que há muita oposição.) Eles venderam ao povo ucraniano a mentira de que sua democracia e liberdade seriam salvaguardadas com o poderio militar dos EUA, britânicos e franceses. Nunca seria – e nem deveria. O mundo seria um lugar mais seguro hoje se as potências nucleares se enfrentassem na Europa Oriental? Qual seria o prognóstico para a liberdade e a democracia em qualquer lugar da terra nessas circunstâncias?
E então, para que serve tudo isso? Por que os ucranianos foram convidados a caminhar por uma estrada para serem efetivamente deixados à própria sorte? Alguém realmente acreditava que a Rússia permitiria que mísseis norte-americanos fossem colocados em sua fronteira? Eles não deixaram pela mesma razão que todos sabemos que os Estados Unidos também nunca permitiriam que a China colocasse seus mísseis em Guadalajara. Na verdade, não precisamos de hipóteses quando temos a história: quando a União Soviética tentou em Cuba, tivemos a invasão da Baía dos Porcos e a Crise dos Mísseis de Cuba, o mais próximo que o mundo já chegou de uma guerra nuclear.
É correto condenar Vladimir Putin por seu papel no derramamento de sangue na Ucrânia hoje. É um massacre injustificável e uma violação do direito internacional. Também é importante levar em conta o papel de nossos próprios governos na crise – o ponto em que tivemos uma influência real e poderíamos ter mudado o curso da história. O fato é que a Grã-Bretanha poderia ter passado as últimas décadas construindo uma ordem internacional multilateral de cooperação, diálogo e paz. Em vez disso, passou seu tempo lutando, financiando guerras e perseguindo os interesses de sua elite corporativa.
As únicas pessoas que vão contar essa história, em meio ao constante auto-engrandecimento da classe política e midiática, são o movimento anti-guerra. É por isso que suas vozes importam. Eles podem nem sempre obter a análise correta, mas sua perspectiva é inestimável. E é exatamente em momentos como esse que o establishment tenta calá-los, porque sua própria visão de mundo fica exposta.
Os falcões da guerra no Ocidente zombam da ideia de multilateralismo ou de um mundo de diálogo genuíno. Eles vêem isso como ingênuo. Dizem que nunca poderia conter um líder como Putin. Mas o que sua retórica belicosa conseguiu? Quão ingênua sua abordagem à Ucrânia parece agora? Por que essas figuras, que realmente influenciam a política externa deste país, nunca são responsabilizadas por seus fracassos?
Parte da resposta é que eles encontram bodes expiatórios. Eles alinham onze parlamentares trabalhistas de esquerda que assinaram uma declaração anti-guerra e dizem que são exemplos de traidores nacionais ou fantoches de Putin. Eles ameaçam puni-los. Eles voltam sua retórica belicosa para o inimigo interno, pessoas que eles sabem que não tiveram absolutamente nenhuma influência sobre as decisões que levaram a esta guerra em primeiro lugar.
E o ciclo continua. Enquanto isso, o mesmo governo que afirma apoiar os ucranianos nega seus vistos de refugiados e promove uma série de leis anti-refugiados. As vendas de armas para regimes autoritários em todo o mundo que travam guerras continuarão. A mitologia sobre a defesa da liberdade e da democracia pelo Ocidente vai perdurar, mesmo que ofereça ilusões a povos com os quais nunca se importou ou pretendeu proteger.
A única alternativa é um movimento anti-guerra com princípios que possa construir solidariedade contra líderes belicistas para além das fronteiras nacionais – e precisamos de um mais do que nunca.
Sobre os autores
é o editor da Tribune.