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Mulheres soviéticas praciando tiro esportivo nos anos 1930. Foto MAMM/MDF

Contra a misoginia neoliberal

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Para manter as mulheres reféns da hierarquia social, conservadores tentam reduzir as oportunidades econômicas e as formas como podem suprir suas necessidades básicas: moralizando o sexo casual, proibindo o aborto e deixando poucos métodos anticoncepcionais. Mas nem sempre foi assim. Na URSS, as mulheres tinham mais segurança econômica e, consequentemente, mais liberdade e melhor sexo.

Cada vez mais países estão legalizando o serviço de barriga de aluguel para pessoas (homens solteiros inclusive, o que precisa ser debatido a partir dos dados de pedofilia, abuso e violência contra meninas no ambiente doméstico) ou casais desejosos por filhos, mas que não podem gestar ou não querem arcar com o ônus físico e psicológico de uma gestação. Para todos, a adoção não é uma alternativa. No Brasil, a prática é permitida apenas entre pessoas da mesma família.

A comodificação do útero é mais um desdobramento da mercantilização dos corpos femininos, que ganha contornos cruéis com o avanço da agenda neoliberal, mas cuja capa progressista e misógina dificulta um debate honesto e socialmente localizado sobre emancipação feminina, equidade de gênero e o que defendemos como sociedades justas e livres. 

Comecemos por situar a realidade material objetiva na qual vive a maior parte das mulheres no mundo hoje, sobretudo aquelas em países do Sul global. Segundo dados de 2017 do Fórum Econômico Mundial, apesar das mulheres serem maioria em termos globais, elas possuem menos de 20% das terras privadas e em 90 países não têm direitos iguais em se tratando de possuir terras. Mulheres costumam formar a metade, quando não a maior parte, em qualquer grupo social, dos povos originários as pessoas mais pobres. Do ponto de vista global, mulheres são um grupo oprimido tanto como corpo feminino generificado quanto como corpo feminino sexuado”.

Sabemos que o contexto social e econômico das mulheres é fruto de um processo histórico de dominação capitalista-patriarcal, responsável por colocar e manter metade da população mundial em condições de pobreza e vulnerabilidade. No entanto, o neoliberalismo tem intensificado esse processo ao recorrer ao nosso trabalho de reprodução social não remunerado para reduzir gastos sociais, cortando serviços públicos como creches, hospitais, escolas e asilos, aumentando, como consequência, a sobrecarga feminina.

 Embora esse trabalho possa ser terceirizado pelas parcelas financeiramente mais abastadas, a maior parte das pessoas que não pode fazê-lo, ou seja mulheres pobres e racializadas, arca diretamente com as consequências das políticas neoliberais enquanto veem cada vez menos possibilidades de acessar empregos formais estáveis e sofrem com o aprofundamento da desigualdade econômica, endividamento massivo e um novo ciclo de acumulação primitiva. 

O mais recente relatório da Oxfam sobre desigualdade mostrou o quão duro a crise da Covid-19 foi para as mulheres: “A pandemia fez retroceder a paridade de gênero de 99 anos para 135 anos. As mulheres perderam coletivamente US$ 800 bilhões em ganhos em 2020, com 13 milhões a menos de mulheres empregadas quando comparado a 2019”. E esses dados pesam mais para mulheres racializadas. A Oxfam alerta ainda que os dados são conservadores e os números reais devem ser ainda maiores.

Corpo-mercadoria 

É pertinente retomar aqui a publicação de Kristen Ghodsee sobre o porquê as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo, em especial quando, em suas próprias palavras, a autora resume a teoria da economia sexual: 

“A teoria da economia sexual pressupõe um sistema econômico capitalista na qual as mulheres possuem um ativo (o sexo) e podem vendê-lo ou doá-lo, seja como trabalhadoras do sexo ou de maneiras menos evidentes, mas não menos transacionais, como amantes, namoradas ou esposas. Para suprir necessidades básicas (comida, moradia, saúde, educação), as mulheres precisariam vender sexo ou ganhar dinheiro de outra forma. Quanto mais oportunidades de ganhar dinheiro tiverem à disposição (ou seja, em sociedades com alto nível de igualdade de gênero), menor será a dependência da venda de sexo, e maior a probabilidade de que façam sexo por prazer”.

Embora a teoria da economia sexual tenha sido desenvolvida por homens conservadores, e recebido críticas pertinentes de profissionais da psicologia e feministas, os autores acabaram confirmando o que muitas feministas e socialistas afirmam: em uma sociedade onde mulheres têm mais acesso à educação e emprego, elas experimentam maior liberdade sexual porque encontram outras formas de suprir suas necessidades básicas. Em outras palavras, a mercantilização do corpo não é uma questão de escolha quando você não tem outra forma para ganhar o suficiente para sobreviver.

Ghodsse retoma a pesquisa de Roy Baumeister e Juan Pablo, publicada no Jornal de Psicologia Social, em 2011, onde os autores cruzaram dados globais de igualdade de gênero para provar o fundamento da teoria da economia sexual: “quando a mulher não consegue obter, de forma fácil ou direta, certos recursos como influência política, assistência médica, dinheiro, educação e trabalho, a venda do sexo se torna um meio crucial para garantir uma vida de qualidade”. Conservadores usam a teoria da economia sexual para informar maneiras de fazer as mulheres não terem outras formas de suprirem suas necessidades básicas sem ser pelo sexo: acabar com o sexo casual, proibir o aborto, deixar poucos métodos anticoncepcionais e poucas oportunidades econômicas para as mulheres. 

A própria variação dos preços entre barrigas de aluguel em países pobres e ricos pode servir de ilustração da teoria da economia sexual aplicada ao comércio de útero. Em um levantamento de 2019, nos Estados Unidos, o preço de uma gestação era de US$ 110 a 130 mil enquanto na Georgia US$ 58 mil e na Colômbia US$ 75 mil. 

Não é preciso nos alongarmos para muito além dessa explicação reduzida da teoria da economia sexual para entendermos que mulheres precisam de acesso à educação e emprego, e não do aval do Estado para transformarem seus corpos em máquinas de reprodução para pessoas ricas que podem pagar por isso. Há de se questionar se chegamos ao ápice da sociedade da mercadoria, ou se o capitalismo-patriarcal encontrará outras formas de exploração das mulheres em sua versão neoliberal cada vez mais misógina. 

Indústria do sexo

Em uma pesquisa mais ampla sobre mercantilização do corpo feminino (ou partes dele), encontrei o artigo da jornalista Julie Bindel sobre sua experiência cobrindo o que eu chamaria de “indústrias do sexo” – o que inclui não só a compra e venda do ato sexual, como também óvulos, cabelos, sexo, leite materno e claro, pornografia. Apesar de todo o seu relato ser de embrulhar o estômago, um ponto em especial chamou minha atenção: o da jovem mãe ucraniana que vendeu seu leite materno para um negócio de filmes pornô (temos um combo duplo aqui). 

Leite materno é um fetiche de fácil acesso em sites como pornhub e há muitos interessados em comprá-lo. Bindel reproduz o relato da jovem da seguinte maneira: 

“foi uma experiência humilhante e forma de cuidar do seu bebê: ‘Era tudo que eu tinha – isso, ou me vender por sexo. Eu não tinha ideia de que as pessoas queriam esse leite até que meu senhorio me disse que era minha única maneira de pagar meu aluguel. Não tenho ideia de quanto ele vendeu, mas meu peito doeu e me senti humilhada e envergonhada por fazer isso. Eu realmente não posso explicar o porquê'”. 

Para ser bastante honesta, é difícil entender quem ainda insiste em acreditar que as mulheres entram nas indústrias do sexo por escolha; tal distanciamento da realidade pode ser conveniente, mas não se sustenta frente à abundância de pesquisas e relatos mostrando que a maior parte é sugada para dentro como resultado de um processo histórico de dominação, objetiva e subjetiva. Afinal, a mercantilização dos corpos femininos só pode acontecer em uma sociedade que transforma mulheres em objetos (de baixo valor) e reinventa de forma incansável suas formas de manter a subordinação feminina. Em outras palavras, a redução da mulher em partes comercializáveis é, como assinala Kristen Ghodsee, “resultado de um sistema econômico que oferece pouca segurança material às mulheres e encoraja as pessoas a transformarem tudo o que têm (trabalho, emoções, fluidos corporais, óvulos etc.) em produtos a serem vendidos em um mercado onde o preço é determinado pelos caprichos da oferta e da procura”.

Sobre os autores

é jornalista, feminista e mestranda em ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Você pode encontrá-la em @marinacolerato no twitter e instagram e na newsletter Lado B.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Europa, História, Livros and Sociologia

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