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Foto de "Hillside Miracle" na 2100 E 23rd St. (Spectrum News)

Contra a falta de alternativa

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Disseram que não havia alternativa – mas era mentira. Uma outra ciência econômica é possível: comprometida com as lutas populares e com a construção de uma sociedade justa e democrática. A Rede Desajuste te convida a pensar junto uma nova economia para reconstruir o Brasil.

A partir do final dos anos 1980, e crescentemente ao longo das duas décadas seguintes, o mote que justificava qualquer tipo de política antipopular, na verdade, de populismo para as elites, era o de que, supostamente, não haveria alternativa. A crise do socialismo real deixou os ideólogos da ordem vigente confiantes a ponto de declararem, na maior desfaçatez, não haver outro mundo possível. Simplesmente não há alternativa ao capitalismo neoliberal globalizado, e as múltiplas facetas da desigualdade, argumentavam, refletem a vida como ela é – fatos brutos da natureza, a qual um realista deve se adaptar. 

Na prática, a exigência era que se aceitasse resignadamente a austeridade, a piora das condições de vida, o achatamento dos salários, a globalização corporativa, a depredação ambiental, a brutal concentração de riqueza e poder, o domínio absoluto das finanças sobre a economia e até sobre a política e a marginalização estrutural de grupos historicamente oprimidos.

O realismo do mercado proclamou despudoradamente por anos – e há ainda uns tantos fanáticos a insistir na tese – que a diferença salarial de gênero se deve ao fato, natural, de que as mulheres eventualmente se tornam mães, e em relação a isso, novamente, tampouco há alternativa.

A miséria da ortodoxia

O reflexo da miséria intelectual, onipresente no debate público, encontrava coro na academia, buscando aniquilar também qualquer forma teórica alternativa de se compreender as relações econômicas. Não há alternativa analítica à trindade escassez, escolha e individualismo metodológico, decretavam os sacerdotes da ortodoxia.

A consolidação desta hegemonia não se deu sem resistências. Fenômenos como a greve dos petroleiros contra a privatização da Petrobras em 1995, a batalha de Seattle contra o encontro da OMC em 1999 e o Fórum Social Mundial, iniciado em 2001, apontavam no campo da mobilização militante, ainda que de forma confusa e dispersa, para outras formas de fazer política e pensar a economia. Do ponto de vista teórico, ideias tidas como não convencionais resistiram à avalanche do novo pensamento único por meio dos ciclos especializados, em universidades e em departamentos que ousaram manter o dissenso para além daquilo que o senso comum permitia.

Foi só a crise de 2008, no entanto, que abriu no Norte Global uma nova janela de disputa política. Nos anos que se seguiram a ocupações e mobilizações de massa contra as políticas de austeridade, foram emergindo vozes capazes de aglutinar maiorias ao redor de um projeto popular diante da catástrofe econômica, social e climática do projeto neoliberal.

No campo da pesquisa econômica, a violência da crise e a necessidade de algum tipo de balanço crítico sobre como se chegou a esse ponto forçou, até mesmo nos segmentos convencionais, um pouco mais de amplitude. Notadamente, o que se ganhou de diversidade foi muito mais temático do que propriamente metodológico, considerando que temas novos foram incorporados ao mesmo arcabouço lastreado na ideia de indivíduos atomizados fazendo escolhas racionais em um mundo de escassez. 

O tema das desigualdades, que por anos havia sido negligenciado pelo mainstream, ganhou notória centralidade na virada pós-crise. Tanto do ponto de vista teórico como também na arena política abriu-se uma nova possibilidade de agenda de transformação social que questionasse de modo enfático o sagrado poder alocativo dos mercados. Essas novas fraturas serviram para mostrar também que mesmo nas ciências econômicas o centro do tabuleiro pode e deve ser disputado: a chamada ortodoxia nunca é um simples bloco monolítico e eterno, mas campo de luta, sobre o qual se deve incidir estrategicamente, fragilizando certezas, tensionando dogmas e expandido os limites do que é possível pensar.

Nosso norte é o sul

Ao contrário do que acontecia no norte, o Brasil e a América Latina, onde nossa geração cresceu, não pareciam um terreno assim tão árido. Por aqui, as lutas dos povos produziam alternativas. A maré de transformação social que tomou conta da região ao longo da primeira década do século XXI mostrava que sim, era possível ter desenvolvimento com distribuição de renda e de poder, ao mesmo tempo avançando na desconstrução de estruturas racistas, LGBTQIA+fóbicas e misóginas, fortalecendo a democracia e valorizando o meio ambiente.

Nossa região vibrava com experimentações sociais, com políticas públicas inovadoras e participativas, processos constituintes democráticos, concepção de Estados plurinacionais e formulações sobre modos de vida sustentáveis nos quais o conceito do Bem Viver estaria no centro. Foi nos dada, enquanto geração, a possibilidade de sonhar com um outro futuro possível, com mais direitos, mais democracias e a realização de demandas de justiça que se articulavam em suas múltiplas dimensões – justiça econômica racial e ambiental. 

Não por acaso, a crise de 2008 chegou com atraso em nosso continente. Mas sua chegada, ao interromper o ciclo de pujança e dar vazão às insatisfações com os limites das mudanças promovidas pelos governos da primeira onda, abriu margem para as várias manobras que retiraram governos legítimos do poder e permitiram a ascensão de líderes de direita ou extrema direita. Apesar da resistência de setores progressistas, nos últimos anos vivemos um ciclo de exclusão, morte e autoritarismo. Nos resta, como alternativa, formular estratégias de produção, distribuição e governo ainda mais potentes que aquelas implementadas anteriormente. Um processo transformador que já está em curso e tem como símbolo a vitória inédita da esquerda colombiana com Gustavo Petro e Francia Márquez.

Não será tarefa fácil. Não há caminho espontâneo para um horizonte melhor. Tampouco uma nova consciência solidária emergirá automaticamente devido a pandemia, como alguns chegaram a sugerir. Nem mesmo podemos tomar como dado que a formulação de planos de reestruturação ambientalmente sustentáveis, tal como passaram a ser debatidos no Norte Global, tenham em si a capacidade transformadora que necessitamos. Mas está se abrindo efetivamente uma nova janela histórica, uma oportunidade para que projetos mais profundos de mudança possam se organizar e disputar a sociedade. A mudança social não cai do céu: exige reflexão teórica séria e articulação política estratégica. Nada surgirá se não da ação coletiva e consciente da maioria do povo trabalhador, o mesmo que tem pagado caro para sustentar o privilégio de poucos.

“Quem menos polui é, perversamente, quem mais sofre com os impactos da degradação ambiental.”

Se para muitos ainda é mais fácil imaginar o fim do planeta do que o fim do sistema de exploração, nossa tarefa é contribuir para a elaboração de uma gramática econômica que não se limite à gestão da escassez, mas que tome para si o desafio de ser criativa, construindo e propondo uma nova forma de se produzir, distribuir e regular a vida social pautada pela suficiência. Uma economia política que leve em conta todas as múltiplas dimensões do conflito distributivo e também pautas de reconhecimento, tomando a afirmação da diversidade e dos direitos humanos como centrais para a construção de uma sociedade verdadeiramente humana.

A devastação ambiental está intimamente ligada à desigualdade econômica. A crise ecológica, e as injustiças climáticas dela decorrentes, encontra sua raiz em uma forma específica de organizar a produção e distribuir o produto. Quem menos polui é, perversamente, quem mais sofre com os impactos da degradação ambiental. Os povos indígenas, os maiores guardiões da floresta em pé, são cotidianamente atropelados pelo atual modelo de econômico. É necessário pensar de outro lugar, formular novos modelos: uma economia que amplie sua forma de compreender o trabalho e que, incorporando uma visão mais coerente do conflito distributivo, entenda que ao excluir da esfera da remuneração o trabalho reprodutivo e do cuidado aprofunda desigualdades – notadamente de gênero e raça. Precisamos de uma ciência econômica que estabeleça um contato com outras áreas a partir do diálogo e respeito intelectual, que deixe de lado suas pretensões imperialistas, reconhecendo que apenas uma interdisciplinaridade genuína pode ser capaz de apontar respostas para os dilemas do nosso tempo.

A construção dessa nova economia política não é antagônica ao desenvolvimento – uma urgência diante da realidade periférica dos nossos países do Sul Global. Bem ao contrário: o enfrentamento das múltiplas desigualdades, o combate às mudanças climáticas e a reformulação do que é trabalho são motores para um ciclo de desenvolvimento não predatório, que não deixe ninguém para trás. A sintonia latino-americana que nos possibilitou fazer frente a um mundo que carecia de alternativas na primeira década deste século, será novamente a chave para inaugurar um novo tempo. O que queremos ver é um tsunami de transformações econômicas e sociais que ponha fim à miséria intelectual e política que hegemonizou o consenso global autoritário dos últimos 40 anos. 

Nosso convite

Diante de uma compreensão coletiva de que pensar fora da curva era urgente e necessário, fundamos a rede Desajuste em 2019 com intuito de reunir pessoas em diferentes estágios de sua formação e com trajetórias profissionais distintas. Com a chegada da pandemia não só nossa avaliação sobre o Estado da arte do debate econômico e político se mostrou especialmente sintonizada entre nós e com as urgências do campo de conhecimento, como também a virtualização da vida nos permitiu uma integração nacional antes difícil de se imaginar e hoje impossível de se abrir mão. Nos conhecemos e nos reconhecemos: uma geração de jovens de todo o Brasil, que entendiam economia para além das marcas disciplinares e que se dispuseram a pensar conjuntamente numa outra forma de se viver, produzir e distribuir.

No final de semana do dia 01 de julho de 2022 nossa rede se reunirá em seu primeiro encontro nacional, contando com a participação da Jacobin Brasil, para debater estes temas e organizar melhor a nossa pequena contribuição a essa tarefa histórica de imaginar e propor uma nova economia. Uma descrição mais detalhada do evento pode ser encontrada aqui. Para participar, basta se inscrever aqui. Se quiser conhecer mais a rede, somos @desajusteecon no Twitter e Instagram.

Já que as propostas do campo restringem-se há tanto tempo ao ajuste, resta-nos retribuir com o Desajuste, porque a realidade exige que pensemos fora da curva.

Sobre os autores

foi formada em 2019 e busca congregar pessoas que estão iniciando sua trajetória no debate econômico, questionando os atuais paradigmas e consensos do campo ortodoxo.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Capital and Economia

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