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Para mim, socialismo é minha vivência nas ocupações, onde tudo é discutido. Desde um barracão da cultura, a uma cozinha coletiva até uma horta coletiva. Foto de Comunicação MTST.

Uma trabalhadora doméstica rumo ao Parlamento pelo poder popular

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O Brasil é o país que mais tem empregadas domésticas no mundo. Mas, essa enorme parcela da classe trabalhadora têm poucos ou praticamente nenhum direito. Nesta conversa com a Jacobin Brasil, a militante socialista, liderança do MTST e candidata a deputada estadual Ediane Maria conta como pretende transformar radicalmente esse cenário, aquilombar a política e fortalecer o feminismo periférico.

UMA ENTREVISTA DE

Gercyane Oliveira

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil é o país que tem o maior número de trabalhadoras domésticas do mundo. Segundo dados de 2017, o país emprega cerca de 7 milhões de pessoas no setor – composta majoritariamente por mulheres negras.

O trabalho doméstico é herança escravocrata, alimentada pela desigualdade e pela dinâmica social criada principalmente após a tardia abolição da escravatura no Brasil. E embora seja um dos maiores setores de serviço da classe trabalhadora, ele não tem uma representação política. Mas Ediane Maria Do Nascimento, trabalhadora doméstica, militante socialista e liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), pretende mudar radicalmente esse cenário.

Nesta conversa com Gercyane Oliveira, da Jacobin Brasil, ela conta como as lutas por moradia e as lições que aprendeu de Paulo Freire e Angela Davis nas ocupações e transformaram sua vida para sempre. 


GO

Quem é Ediane Maria e qual a sua trajetória na militância?

EM

Uma migrante do sertão de Pernambuco, mulher preta, periférica, mãe solo de quatro filhos e trabalhei minha vida inteira como empregada doméstica. Sou filha de Dona Raimunda, ex-caseira da fazenda que virou também empregada doméstica e babá. E filha de José Emerêncio conhecido lá em Floresta-PE como canoeiro. Sou a sétima de oito irmãos e moro no Estado de São Paulo há mais de vinte anos.

Uma mulher que foi esquecida e invisibilizada, e a minha dor não interessava para ninguém. Vim encontrar dignidade e ver que não estava sozinha e ter um resgate de identidade dentro das ocupações do MTST no dia 03 de setembro de 2017, quando entrei na maior ocupação da América Latina que era a Povo Sem Medo de São Bernardo do Campo, que chegou a ter mais de 12 mil famílias – e eu estava entre essas famílias. 

“Comecei a ver que toda essa divisão e todo esse sofrimento relacionado à segregação racial que vivemos não é normal. Tentam naturalizar porque esse é o papel do capitalismo.”

Hoje faço parte da Coordenação Estadual do MTST, ajudando várias áreas e setores do movimento. O ressignificado da solidariedade e o reconhecimento na dor do outro, reivindicando o bairro que quero, o direito à cidade, compreendendo que hoje essa consciência que eu passei a ganhar ao longo do processo e comecei a ver que toda essa divisão e todo esse sofrimento relacionado à segregação racial que vivemos não é normal. Tentam naturalizar porque esse é o papel do capitalismo.

Sou uma pessoa que luta e reivindica melhores condições de vida. Por isso, trago a pauta de luta das mulheres negras, pois somos as mais violentadas, as que mais sofremos com a violência doméstica e são mulheres que estão até hoje em sua grande maioria em subempregos como diaristas ou empregadas domésticas. Muitas vezes não existe o direito de sonhar com uma aposentadoria e até de poder adoecer com um sistema de saúde de qualidade. 

São várias lutas que temos e dar esse protagonismo e visibilidade é fundamental em um cenário que mostra que nossas vidas foram muitas vezes esquecidas. A gente vive numa sociedade que não nos olha como seres humanos e como pessoas que precisam diretamente de políticas públicas.

GO

Quando se fala em justiça social há uma distinção entre distribuição de renda, reconhecimento e a representação. Diria que a sua candidatura está nesses três níveis na conjuntura atual?

EM

A minha candidatura se encaixa bem nesses três pontos, até porque, falar de distribuição de renda é entender que nós, enquanto empregadas domésticas e diaristas – que são base dessa sociedade -, temos que fazer tudo isso em relação à distribuição e a economia. Entendemos que vivemos em situações onde não recebemos sequer salário mínimo, muitas de nós não temos nossos direitos garantidos com trabalho informal. Não dá para lidar com uma diarista como se ela fosse um motoboy da limpeza, então a minha candidatura vem para dar visibilidade e protagonismo a um trabalho que é o terceiro que mais contrata no país mas, por outro lado, não temos direito a nada. 

Trabalhamos por dia, e se porventura, adoecermos não temos ninguém que olhe por nós e ninguém que fale nesse lugar. Então, estar nesse espaço hoje – e vamos conseguir entrar  na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) – vai ser um canal e porta-voz de organização dessa classe que foi esquecida, oprimida e luta por direitos sociais.

“Como diz a Angela Davis: ‘Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.'”

Não há como falar do trabalho doméstico de uma diarista ou de um sofrimento da mulher negra, da mãe solo que vive no “pico” do morro e vive a segregação racial – sabendo que nós somos uma base da sociedade – sem que a gente não esteja nesses espaços. Os espaços de poder como as ALESP continuam sendo ocupadas por pessoas brancas, em sua maioria ricas que não representam a maioria que somos nós. Às vezes nos colocam como minoria, nós somos a maioria e o carro chefe que sustenta a base. Como diz a Angela Davis: “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”

Na minha candidatura, quando saímos nas ruas e vou falar com as meninas que são iguais a mim elas dizem: “caramba, não acredito! é possível a gente avançar”. Portanto, para além de uma questão de representatividade, é também de honra, de ocuparmos e colocarmos nossas vozes nesses espaços que nos foi negado por tanto tempo. 

GO

Diante das investidas neoliberais e violentas da extrema direita, qual a sua análise acerca da força dessa contraofensiva da qual você faz parte, do feminismo de quebrada? É possível falar de socialismo nesse feminismo periférico?

EM

O olhar da periferia – que é de onde venho -, e entendendo que a maioria somos nós que nos organizamos, inclusive nesse governo genocida que vivemos, com a auto-organização para combater à fome, vê que tudo isso foi liderada pelas mulheres negras com organização de brigadas com cestas básicas. 

“Acredito que o feminismo popular periférico é o feminismo que luta por igualdade e por justiça.”

Quando falamos de aquilombar em meio a essa segregação que a gente vive, olhar para a periferia é olhar para essas pessoas onde existe reconhecimento e sabe as dificuldades e lutas, por exemplo, da mulher mãe em conseguir uma creche em período integral, mulheres como eu que lutam por trabalho e que consigam manter seus filhos. Então, dependemos muito uns dos outros, e para mim o socialismo é quando você de fato está junto com as pessoas. E tentamos, à nossa maneira, com as nossas limitações, conseguir ajudar quem está à nossa volta. 

Acredito que o feminismo popular periférico é o feminismo que luta por igualdade e por justiça. Uma mulher pode lutar por uma creche e nem saber que é feminista. A minha mãe é uma pessoa que trabalhou a vida inteira e sempre disse: “não quero depender de homem, quero ter o meu dinheiro.” Falar desse feminismo é também falar da minha mãe, que é a mulher que conheci como uma feminista. Porque eu cresci com essa mulher falando o tempo inteiro que não queria depender de um homem. 

Então, primeiro é dar essa liberdade para que a maioria das mulheres negras saiam de um lar violento. Nós sofremos com a violência e não existe uma delegacia da mulher próxima a nossa casa, não temos a participação do Estado onde sofremos a violência doméstica. Este é o meu olhar sobre o feminismo popular, com várias lutas que travamos. Nós conseguimos – mesmo com esse desgoverno – ter unidade e lugar na sociedade que é um papel fundamental enquanto mulheres negras. Continuamos a resistir. 

GO

Em algumas ocasiões, você disse que é preciso aquilombar a política, nos conte um pouco sobre o significado simbólico e concreto disso.

EM

Quando eu digo que é preciso aquilombar, em primeiro lugar, trazer o protagonismo do que vivemos na periferia. Quando vim morar em São Paulo, morava no centro e era um lugar frio e distante em um lugar onde é cada um por si e Deus por todos e ninguém está preocupado com ninguém. Na periferia de Santo André – onde moro há 20 anos – lá eu conheci pessoas que tinham pouco mais e que queriam estar juntas. Você é alguém na periferia. Então, a política tem que ser essa voz e ser aquilombada, trazer protagonismo para dentro das Assembleias Legislativas e desmistificar aquele lugar. Se você chegar hoje e perguntar para as pessoas o que um Deputado Estadual e Federal fazem, a maioria da população não sabe dizer.

“O povo precisa participar dos espaços que foram retirados de nós, para ficar retido na mão de poucos. Por não saberem o que acontece, são manipulados.”

Então, é ocuparmos este espaço e podermos dizer em prática o que se faz ali e quem pode estar neste lugar. Porque as políticas que são feitas ali dentro vão mexer diretamente na sua vida. Portanto, o povo precisa saber o que está acontecendo dentro de uma Assembleia Legislativa. O povo precisa participar dos espaços que foram retirados de nós, para ficar retido na mão de poucos. Por não saberem o que acontece, são manipulados.

Aquilombar a política é fazer com que os direitos do povo negro e classe trabalhadora, das mulheres que sofrem violência, sejam ocupados por nós. E vamos falar o que a periferia precisa, como mulheres negras e mães solos. É trazer essa visibilidade e nada de nós sem nós. Fazer com que todos os movimentos que já se organizam, e os que não estão organizados, comecem a participar desses espaços institucionais que se sentem excluídos e que sofrem com a falta de políticas públicas. 

GO

Você diria que o programa de lutas e as bandeiras que levanta em sua candidatura, como o feminismo e o socialismo, ainda é um tabu na periferia?

EM

Para mim, socialismo é minha vivência nas ocupações, onde tudo é discutido. Desde um barracão da cultura, a uma cozinha coletiva até uma horta coletiva. Tudo discutido coletivamente, cada um traz o seu conhecimento e ideias, e conseguimos fazer diferente. Precisamos trazer essa visão do coletivo. Quando saímos de uma ocupação, a gente vê que é um polo de formação 24h, um lugar de possibilidade. Então, o socialismo para mim é quando existe a oportunidade igualitária onde se pode atuar em diversas áreas, como na ocupação, em áreas da comunicação, do setor de autodefesa e etc.. Oportunidade independente, de gênero, raça, sexualidade, faixa etária… onde todo mundo tem a mesma possibilidade.

É assim que enxergo o socialismo. Vivemos em uma sociedade que tem o discurso da meritocracia “acordar mais cedo”, “se estudar mais” e “se você correr mais”. Mas, não é assim que funciona. Estamos vendo pessoas, migrantes do sertão nordestino, do Norte ou Nordeste, que estão debaixo do barraco de lona, que estão ocupando junto com a gente e são a maioria das pessoas que trabalharam a vida inteira, como diaristas, empregadas domésticas, pedreiros, pintores e trabalhadores de aplicativos. Pessoas que mesmo com o seu trabalho não conseguem ter o básico que é moradia digna ou a escritura da casa em que mora. Eu moro até hoje nos fundos da casa da minha ex-sogra, em Santo André e onde vivo não tem escritura, é um bairro que tem mais de 30 anos e não há escritura. Ou seja, não é nem da minha ex-sogra.

“Para mim, socialismo é minha vivência nas ocupações, onde tudo é discutido. Desde um barracão da cultura, a uma cozinha coletiva até uma horta coletiva.”

Essa é a visão que a gente traz do socialismo. Para mim, que as pessoas entendam e façam parte da construção de uma nova sociedade, que se organizem e que vejam que é possível avançar e ter esse ganho de consciência. Hoje, eu luto pelo país, cidade, Estado e bairro que eu quero porque tive formação a todo o tempo nas ocupações e agora posso analisar, tendo o pensamento crítico, trabalhando com a diversidade e pensando com o olhar de cada um, inspirado na educação de Paulo Freire. Avançar entendendo que todos podemos ser protagonistas. 

GO

Sabemos que as eleições e a institucionalidade não resolvem todos os problemas que a classe trabalhadora enfrenta. Como ultrapassar os limites dessa democracia burguesa e avançar o programa de lutas?

EM

Quando digo que a minha candidatura é popular, onde pessoas como eu não se via nesse lugar. Não achava que era possível, porque, quem aparecia de 4 em 4 anos na periferia? Era um cara branco ou alguém panfletando pra esse cara. Ou arrumavam o asfalto e colocavam a faixa na rua “fulano fez esse serviço”. 

Então, quando a gente constrói a luta socialista, mostramos que é possível fazer parte e garantir o café da manhã para os seus filhos, o almoço e o jantar. É garantir que nossos filhos tenham acesso à Universidade entendendo que não é o ponto final, mas sim o primeiro passo. Lutando por políticas públicas de permanência, onde a maioria dos filhos da classe trabalhadora são os primeiros. A minha filha é a primeira da família a ingressar na Universidade Federal. 

É preciso mostrar que a nossa função não é só ir lá e votar, mas sim, fiscalizar e cobrar, colocando pessoas nossas lá dentro. Trazendo os oprimidos para o centro do debate, mexendo no futuro de crianças negras, fazendo política de onde estiver e avançando juntos.

Sobre os autores

é empregada doméstica, militante socialista e coordenadora do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e do movimento negro Raiz da Liberdade.

é tradutora, redatora e repórter na Jacobin Brasil. Também é jornalista no Opera Mundi, membro do Fórum Latino Palestino.

Cierre

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Published in América do Sul, Cidades, Entrevista and Política

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