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O que os socialistas devem fazer diante da crise climática para salvar nossas cidades

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Nas últimas décadas, o Brasil vem sentido os efeitos concretos da crise climática gerada pelo aquecimento global, onde 3.679 municípios brasileiros, dos 5.570, estão vulneráveis a inundações, deslizamentos e outros desastres ambientais. Mas é possível reverter esse cenário e aqui está um plano estratégico de luta para esquerda remodelar nossa economia, cultura e política.

Inundações, ondas de calor extremo, longas estiagens, secas na Amazônia. O Brasil já sente há pelo menos duas décadas os efeitos concretos das mudanças climáticas. Só nos últimos dez anos 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por algum tipo de desastre ambiental relacionado aos eventos extremos produzidos pelo aquecimento global. A tragédia provocada pela crise climática no Rio Grande do Sul colocou definitivamente no centro do debate público a agenda ambiental.

Junto com ela vieram inúmeras perguntas: como cuidar das vítimas da tragédia? Qual o papel do Estado no financiamento da transição, da mitigação e da adaptação aos efeitos da crise climática? Quais deveriam ser as prioridades? Qual o lugar do Brasil no aquecimento global? Quem financia a transição nos países da periferia do capitalismo? São muitas as questões e essa humilde reflexão não tem a pretensão de oferecer todas as respostas.

Mas ao invés de ser mais uma entre tantas análises sobre a responsabilidade do capitalismo para o colapso climático do planeta, o que tentaremos aqui é oferecer uma alternativa de interpretação sobre o papel dos socialistas na construção de uma tática para enfrentar o tema das mudanças climáticas na perspectiva da construção de posições hegemônicas, isto é, posições com capacidade de disputar efetivamente os rumos da transição. 

Essa disputa, obviamente, se expressa tanto em termos culturais quanto materiais. Ao mesmo tempo em que devemos compreender de que forma tragédias como a do Rio Grande do Sul abrem espaço para significantes como solidariedade, empatia e cuidado, também devemos interpretar corretamente os movimentos das classes dominantes e seus representantes para impedir qualquer transição que não seja orientada às necessidades de reprodução do capital. Comecemos, então, por algumas categorias básicas que devem estar “na ponta da língua” de qualquer militante socialista para podermos enfrentar essa disputa.

Breve introdução às mudanças climáticas

O marxismo, como a mais completa teoria de interpretação do sistema capitalista, tem como principal categoria o trabalho. E o trabalho é visto por Karl Marx como par numa relação dialética com a natureza, sobre a qual a ação humana interage com os recursos disponibilizados pelo planeta e os transforma em valores-de-uso para garantir a reprodução material da humanidade. Para isso o trabalho depende de “estoques” naturais de matéria e energia que são, obviamente, limitados.

Acontece que o capitalismo só pode existir na medida em que seja possível garantir a reprodução do capital através de sua permanente valorização, que podemos mensurar através do que chamamos popularmente de “crescimento econômico”. Esse crescimento – a valorização do capital – depende de trabalho humano, mas também, de recursos materiais e energéticos que são finitos. Além disso, quando falamos de crescimento, estamos pensando um processo de reprodução em constante expansão, o que exige quantidades crescentes de recursos, mas também libera quantidades cada vez maiores de resíduos. 

“A comunidade científica, após vários estudos, concluiu que a temperatura da terra já aumentou 1,3°C desde a revolução industrial e que um aumento superior a 1,5°C pode trazer riscos incalculáveis.”

O aquecimento global é, basicamente, o efeito da emissão desses resíduos na atmosfera. Os chamados gases de efeito estufa são resíduos da produção, da circulação e do consumo de diferentes valores-de-uso. Quando você acende uma lâmpada em casa, quando dirige seu carro até o supermercado ou quando joga uma embalagem plástica na lata do lixo, está gerando resíduos que poderão se tornar gases de efeito estufa. Esses gases se alojam na atmosfera, mudam a temperatura do planeta e afetam a vida natural, impactando o regime de chuvas, os ventos, a temperatura dos oceanos, enfim, todo o equilíbrio do ecossistema terrestre que levou milênios para se estabilizar até o início da era industrial.

A comunidade científica, após vários estudos, concluiu que a temperatura da terra já aumentou 1,3°C desde a revolução industrial e que um aumento superior a 1,5°C pode trazer riscos incalculáveis para a vida na Terra. Para evitar isso, a 15ª Conferência do Clima da ONU, realizada em Paris, estabeleceu uma série de protocolos com a finalidade de monitorar e comprometer os governos, as empresas e os cidadãos com a redução das emissões de gases de efeito estufa até 2050.

As COP’s acontecem anualmente e têm como objetivo verificar se os países estão fazendo sua parte para atingir as metas definidas em 2015 na Conferência de Paris. Além disso, esses encontros também discutem como financiar a transição (especialmente nos países pobres), quais medidas poderiam ser adotadas para mitigar os impactos das mudanças climáticas e como adaptar as cidades aos efeitos do aquecimento global. Debatem também estratégias para gerar fontes de energia menos poluentes, formas mais sustentáveis de uso do solo e como preservar as florestas, fundamentais para a captação de CO₂ na atmosfera. 

Porém, desde que foi definida a meta de evitar que o planeta alcance um aumento de 2ºC em comparação com o início da era industrial, poucos avanços foram concretizados. O sistema do capital segue se reproduzindo sobre bases altamente poluentes, gerando resíduos em quantidades cada vez maiores e sendo incapaz de estabelecer um uso planejado e racional dos recursos naturais. Some-se a isso uma crescente instabilidade geopolítica – com o aumento do número de conflitos armados, protecionismo comercial e disputa por recursos naturais – e temos um cenário nada animador para o cumprimento das metas de Paris.

“Países do capitalismo central cobram dos países pobres da periferia do sistema que mantenham suas reservas naturais intocadas, como forma de compensação por dois séculos de poluição industrial.”

A ONU não tem condições de impor aos países medidas sancionadoras caso não cumpram suas metas em relação às emissões de gases de efeito estufa. Por isso as contribuições de cada um são “autodeterminadas” (as chamadas NDC’s) e seguem como parâmetro o objetivo geral de evitar o aquecimento do planeta até 2ºC. Além disso, como sabemos, as desigualdades entre o Sul e o Norte global colocam uma série de desafios e paradoxos. Obviamente, países do capitalismo central cobram dos países pobres da periferia e semiperiferia do sistema que mantenham suas reservas naturais intocadas, como forma de compensação por dois séculos de poluição industrial, enquanto os países pobres cobram dos ricos uma compensação para manter intocadas suas “riquezas naturais”.

Por outro lado, as formas de integração ao sistema que o capitalismo oferece aos países pobres envolvem a exploração de recursos que são altamente poluentes, como o gás e o petróleo, criando o chamado “paradoxo da transição nos países do Sul”. Tentativas de exigir dos países ricos uma compensação financeira pela preservação ambiental, como a Iniciativa Yasuní, no Equador, que previa medidas de financiamento externo para evitar a exploração petrolífera na Amazônia, foram fragorosamente derrotadas no passado recente e a ideia de um “fundo global” de compensações até agora não passa de uma promessa distante.

Outros conceitos que compõem o “glossário” da agenda ambiental e devem ser apropriados por todos são as noções de justiça climática – pensando uma transição que inclua as maiorias sociais – mitigação – que é a capacidade de diminuir as emissões de gases de efeito estufa – adaptação – as ações que visam preparar as cidades para os eventos climáticos que já não podem mais ser contornados – e emergência climática – que define como urgentes as medidas que precisam ser adotadas para evitar o colapso do planeta. 

O Brasil e as mudanças climáticas

Como já vimos, o Brasil tem sido profundamente impactado pelas mudanças no clima. Segundo dados disponíveis no site do Ministério do Meio Ambiente, dos 5.570 municípios brasileiros, 3.679 têm capacidade adaptativa baixa ou muito baixa à eventos extremos e desastres hidrogeológicos, como vendavais, ondas de calor, fortes ressacas marinhas, deslizamentos e inundações. Além disso, nas últimas duas décadas a crise climática já afetou diretamente 125 milhões de brasileiros com perdas econômicas que ultrapassam os U$ 60 bilhões – equivalente ao PIB da Eslovênia.

Mas além de vítima das mudanças climáticas, a matriz econômica brasileira também colabora com a poluição atmosférica. Segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima, em 2021 o país emitiu 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO₂ equivalente, um aumento de 12,2% em relação a 2020 (2,16 bilhões de toneladas). Mas diferente dos países ricos, as emissões do Brasil não têm como origem principal a produção industrial ou a geração de energia.

A produção de energia no Brasil é relativamente limpa, sendo quase 85% da energia elétrica produzida hoje renovável. Atualmente as três maiores fontes que compõem a matriz de energia elétrica brasileira são hidráulica (62%), eólica (12%) e biomassa (4,7%); entre as fontes não renováveis as maiores são gás fóssil (6,1%), petróleo (4%) e carvão mineral (1,75%). No entanto, quando pensamos em todo o setor de energia, só 44,8% são renováveis, porque passam a ser calculadas também as emissões do transporte, por exemplo. Ao todo a produção de energia elétrica responde por 18% das emissões de gases de efeito estufa. A indústria, por sua vez, corresponde a apenas 4% das emissões de CO₂ e outros gases, enquanto o setor de resíduos emite 4%, especialmente metano oriundo dos aterros sanitários. 

“A maior parte das emissões do país são provenientes das atividades agropecuárias (25%) e do desmatamento (49%).”

Mas com baixa emissão na produção industrial e na geração de energia elétrica, como o Brasil pode ser o sétimo país que mais produz gases de efeito estufa, com 3% do total? A resposta está no agronegócio. A maior parte das emissões do país são provenientes das atividades agropecuárias (25%) e do desmatamento (49%). Esse desmatamento está associado tanto à expansão da fronteira agrícola propriamente quanto à ampliação de áreas de pastagem, especialmente em Estados como Mato Grosso e Pará. A principal contribuição dada pelo Brasil ao aquecimento global está no seu modelo econômico, altamente dependente do agronegócio predatório. Quase 25% do PIB do Brasil em 2023 foi gerado pelo setor, que também responde por quase metade das vendas internacionais do país, atraindo divisas que ajudaram a financiar o Estado brasileiro. Apesar de gerar proporcionalmente poucos empregos se comparado a setores como serviços ou indústria, o agronegócio segue tendo um peso enorme nas definições macroeconômicas de qualquer governo.

O preço dessa dependência, no entanto, tem sido cada vez mais alto. Além das ondas de calor nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, as chuvas torrenciais que atingiram o Rio Grande do Sul também têm relação direta com a ação do agronegócio. O desmatamento do Cerrado e da porção ao sul da Amazônia aumenta a pressão atmosférica, empurrando a umidade da floresta para uma espécie de “corredor” entre os Andes e as zonas desmatadas. Quando essa umidade encontra as massas de ar polar vindas da Argentina acontecem as enormes precipitações que vimos nos últimos meses. Enquanto os gaúchos se afogavam e sofriam com o frio, os paulistas viviam um verão interminável com várias semanas seguidas de sol e calor.

Três discursos: cuidado, modelo econômico e papel do Estado

Se as mudanças climáticas no Brasil estão relacionadas ao modelo econômico do país, não há razões para acreditar que elas poderão ser superadas rapidamente. Assim, a multiplicação de fenômenos extremos impactará cada vez mais a sociedade e, consequentemente, a política. O que vimos no Rio Grande do Sul nas últimas semanas é apenas uma amostra das tragédias que tendem a se repetir cada vez mais, cobrando respostas de governos e lideranças políticas. O drama narrado em tempo real, 24 horas por dia, com os principais telejornais do país sendo apresentados diretamente de Porto Alegre, tornam o tema onipresente. Pesquisas recentes mostram a formação de um verdadeiro “bloqueio emocional” a quaisquer outros temas que não tivessem relação com a tragédia vivida pelo RS, remetendo ao sentimento dos primeiros meses da pandemia de Covid-19. 

Nesse contexto, surge uma realidade contraditória: por um lado, o fator “cuidado com as pessoas” ganha centralidade (o que deveria, em tese, favorecer posições mais humanistas); por outro, o crescente desgaste da imagem de Lula e dos políticos em geral, favorece o bolsonarismo e sua narrativa anti-establishment contra o Estado. Não por outra razão o slogan escolhido pela extrema direita após alguns dias de desorientação foi “o povo pelo povo”.

Num contexto de dor e sofrimento, o que se espera dos políticos é que eles “arregacem as mangas” e abracem aqueles que estão sofrendo. Sem isso, a visão de “políticos desumanos” vai ganhando força, fortalecendo as narrativas da extrema direita que buscam jogar no colo do sistema o atraso nas medidas emergenciais de amparo às vítimas das enchentes, como mostram as fake news sobre caminhões parados na divisa entre SC e RS ou a suposta rejeição de ofertas de ajuda internacional por parte de Lula. Não por outra razão o bolsonarismo escolheu o slogan “o povo pelo povo” para representar o ódio aos políticos tradicionais.

“Vivemos o fim de uma etapa histórica. A crise da globalização neoliberal está gerando um mundo mais violento, mais inseguro, mais instável e menos previsível.”

Para reverter essa tendência negativa, as lideranças de esquerda deveriam articular três discursos. O primeiro é aquele em torno da solidariedade diante dos eventos climáticos extremos. Somos, afinal, o setor que sempre defendeu o cuidado com o outro diante do “salve-se quem puder” do neoliberalismo. A liderança que mais políticas sociais promoveu no país é do nosso campo – o presidente Lula – e temos um histórico de presença nos movimentos sociais que nos credencia politicamente. Devemos nos engajar diretamente em ações de solidariedade sempre que episódios como o do RS se repetirem, seja onde for. O segundo tem a ver com o papel do Estado. Apesar de tudo o que vivemos nos últimos anos no enfrentamento ao bolsonarismo, hoje, a força hegemônica na direita brasileira, nosso inimigo fundamental continua sendo o modelo neoliberal. Portanto, fortalecer o Estado e seus mecanismos de proteção é – assim como foi na pandemia – um discurso fundamental para fortalecer nossas posições. E o terceiro tem a ver com a defesa de outro modelo econômico, que supere a dependência do agronegócio predatório, que pense a transição nos marcos da mudança do modelo produtivo brasileiro, que abandone as ilusões desenvolvimentistas. Esse é, claro, o discurso mais complexo e precário, mas que deve ser articulado na perspectiva de uma promessa de futuro que vá além da mera “gestão do sistema” e seus limites.

A esquerda diante das mudanças do nosso tempo

Vivemos o fim de uma etapa histórica. A crise da globalização neoliberal está gerando um mundo mais violento, mais inseguro, mais instável e menos previsível. Em algumas regiões já podemos falar de sinais de desglobalização, como na Europa, que se fecha cada vez mais frente às “ameaças” representadas pela imigração, a guerra e o terrorismo. Mergulhadas na crise do neoliberalismo, democracias frágeis e sequestradas pelo poder econômico se tornam presas fáceis da extrema direita, que ganha terreno prometendo o retorno a uma era dourada de ordem e progresso que nunca existiu.

Frente ao medo e às incertezas em relação ao futuro, aquilo que Álvaro García Linera tem chamado de “ausência de horizonte preditivo”, surge uma situação paradoxal. De um lado, o centro político entra em crise, incapaz de conectar-se com as demandas populares e totalmente subjugado às necessidades de reprodução do sistema. De outro, o medo gera uma interdição às propostas mais radicais da esquerda, vistas como sinônimo de mais insegurança. É aí que ganham terreno os populistas de direita ou ressurgem das cinzas lideranças carismáticas que habitam o imaginário das maiorias sociais.

Uma parte da esquerda, incapaz de compreender as mudanças nessa etapa histórica, segue apostando tudo no combate às desigualdades econômicas, ignorando a importância que a luta cultural ganha em momentos como esse. Por isso é incapaz de compreender que, apesar da melhora dos indicadores econômicos – inflação sob controle, diminuição do desemprego e aumento da renda média – segue havendo um profundo mal-estar entre os mais pobres em relação à política como um todo. Outra parte, em oposição à velha esquerda, aposta num descolamento total das demandas materiais do povo, agarrando-se numa incompreensível “defesa da democracia”.

“Articular a crise climática com a defesa de outro modelo econômico não só é possível, como indispensável e o capitalismo não pode assegurar uma transição justa.”

Entre uma posição e outra, uma força que se pretenda hegemônica – primeiro no seu campo e em seguida na sociedade como um todo – deve articular de forma dialética forma e conteúdo, avanços materiais e simbolismo, batalha cultural e ocupação das estruturas de Estado. Articular a crise climática com a defesa de outro modelo econômico não só é possível, como indispensável. O capitalismo não pode assegurar uma transição justa, nós sabemos. Mas num momento de mudança de etapa histórica, quando as pessoas estão com medo do novo, é preciso usar mensagens que possam ser facilmente assimiláveis e toquem os corações.

A crise climática não pode ser um significante vazio. Ela tem que ser a expressão concreta de uma ameaça à vida, à felicidade, ao emprego, à família. Por isso tem potencial para se tornar a mais anticapitalista das lutas, já que é a única com capacidade de questionar de forma global o modelo e oferecer uma alternativa capaz de associar o econômico, o cultural e o político. Mas para isso, devemos traduzir a crise climática como um perigo real, numa operação discursiva que mobilize os afetos a partir da dimensão material da vida.

Um esboço de tática

Em termos táticos, o que sustento é que a esquerda socialista precisa de um programa socioambiental que questione os valores do neoliberalismo, mas não de forma abstrata. Não podemos opor a solidariedade ao individualismo se a única rede solidária que existe no imaginário das pessoas é a família ou a igreja. Nossos valores estão ausentes do território porque os instrumentos construídos historicamente pela classe trabalhadora, como sindicatos, associações comunitárias e partidos, deixaram de estar onde a vida é vivida. Por isso precisamos ir a um terminal de ônibus quando queremos encontrar o povo. Já não estamos ao seu lado.

O conteúdo desse programa deve ser capaz de produzir aquilo que Chantal Mouffe chama de “articulação hegemônica”. Ou seja, uma aliança entre parte do mundo do trabalho, da classe média, da intelectualidade crítica, da cultura, entre outros, em torno da defesa da vida contra a morte, representada pelas mudanças climáticas, pelos negacionistas, pelo autoritarismo da extrema direita, pelo agronegócio predatório. A defesa da Amazônia e o combate frontal às atividades predatórias na região – incluindo gás e petróleo – devem ser uma ponte com setores médios que contribuam para financiar e apoiar iniciativas que protejam os modos de vida tradicionais ao mesmo tempo em que permitam a transferência de algumas cadeias de agregação de valor para a região Norte (onde vivem 30 milhões de brasileiros, na sua maioria em cidades pobres), diminuindo as desigualdades regionais.

“No plano nacional, essa tática se articula com a defesa de reformas tributárias robustas que ajudem a financiar a transição, já que não há que se esperar que os países ricos o façam.”

Nas grandes cidades, onde somos mais fortes, devemos defender modelos mais humanos, seguros e modernos, combatendo as desigualdades econômicas ao mesmo tempo em que permitimos reformas urbanas que incentivem as atividades produtivas privadas, aproximando – e não rejeitando – a perspectiva do empreendedorismo individual e familiar. No plano nacional, essa tática se articula com a defesa de reformas tributárias robustas que ajudem a financiar a transição, já que não há que se esperar que os países ricos o façam.

No plano político, a tática passa por formar um bloco entre todas as forças de esquerda e centro-esquerda contra a extrema direita, mas buscando impulsionar no interior dessa aliança a formação de um novo ator hegemônico que expresse a ascensão de uma nova esquerda, pós-desenvolvimentista, antineoliberal, radicalmente democrática, que combate o racismo ambiental e se mostre profundamente comprometida com a luta por outro modelo.

Um programa socioambiental para a esquerda

Esse programa deve contemplar vários aspectos, sempre buscando associar a luta política e econômica com sua dimensão cultural. Repetindo: nosso propósito deve ser a construção de articulações hegemônicas entre classes e frações de classes, com a liderança dos interesses populares na formação daquilo que Antonio Gramsci chamou de uma “classe nacional”. Para isso, nosso programa socioambiental deve ter, ao menos, seis eixos:

1. Preservação e combate ao desmatamento

Diferente dos negacionistas de extrema direita, acreditamos na ciência. Logo, se os dados apontam que o avanço da fronteira do agronegócio predatório sobre a floresta é a principal contribuição do Brasil ao aquecimento global, essa deve ser prioridade número zero. Mas não só. Devemos lutar contra qualquer atividade predatória na Amazônia, do garimpo à exploração de combustíveis fosseis. Isso porque, além dos enormes riscos ambientais envolvidos, atividades dessa natureza mantém o Brasil refém do modelo de exportação de bens primários, inviabilizando a construção de um modelo econômico alternativo. A tese da “acumulação primitiva” necessária ao desenvolvimento de uma economia industrial justificou as maiores atrocidades da história. Não podemos conciliar defesa da Amazônia com qualquer forma de atividade predatória. Essa batalha, no entanto, é tão urgente quanto difícil. Contra nós estão os lobbys mais fortes do país, além de uma mentalidade atrasada de parte da própria esquerda, o que exige a formação de alianças amplas.

2. Reforma agrária e agricultura sustentável

Mas não basta impedir que o agronegócio expanda seus tentáculos sobre a floresta. É preciso alterar a dinâmica produtiva para diminuir a dependência econômica que o Estado brasileiro tem em relação às exportações do setor. Para isso, devemos combinar um forte impulso à agricultura de baixo carbono com prioridade para a produção familiar e de alimentos, moderna e comunitária. Também é necessário encontrar aliados entre os setores que produzem em larga escala para uma transição de modelo, considerando as demandas do mercado internacional. Se nem a revolução socialista terminou do dia para a noite com a produção em larga escala na Rússia, não seremos nós que o faremos no Brasil do latifúndio mecanizado e tecnológico, com o movimento camponês integrado à lógica da reprodução do capital. 

3. Transição energética

Como vimos, a energia elétrica produzida no Brasil é em sua grande maioria renovável, mesmo que os impactos ambientais para a promoção de obras como as da usina de Belo Monte tenham sido desastrosos. Ainda assim, segue havendo pesados subsídios para a produção de energia termoelétrica fóssil, além da energia nuclear e a pressão para manter em níveis preocupantes a produção de etanol (que também é poluente). Além de investir em tecnologias que possam posicionar o Brasil numa nova divisão internacional do trabalho e da produção – já que o modelo clássico de desenvolvimento pela via da industrialização está interditado pela ultramonopolização de cadeias inteiras da produção industrial – um programa socialista para a transição energética poderia ao mesmo tempo gerar novos empregos bem remunerados, diminuir os custos da produção industrial e mesmo do valor da energia domiciliar. Para isso, são necessários investimentos estatais em pesquisa nas novas fontes de energia, em particular o hidrogênio verde, que pode ser gerado a partir das usinas hidrelétrica já em funcionamento e poderia ser parte de um plano robusto de industrialização justa e sustentável, com modelos cooperativos em escala.

4. Infraestrutura e adaptação climática

Num país desigual como o Brasil, os investimentos em infraestrutura são aqueles com maior capacidade de geração de emprego e renda no curto prazo. Não por outra razão a indústria pesada foi a primeira vítima da Lava Jato e seus aliados internacionais quando o país começou a exportar serviços de engenharia para o mundo todo. Um plano de transição socioambiental robusto exige, como demonstra a situação no Rio Grande do Sul, forte investimento em adaptação das cidades às mudanças que já são irreversíveis. Isso significa reforma urbana, infraestrutura de saneamento, transição em transportes para eletrificação de frotas e veículos particulares, gestão de resíduos e efluentes líquidos, dentre outros. Segundo dados do Instituto Aya só em obras de adaptação poderiam ser gerados entre 1,3 e 1,6 milhão de empregos diretos, com investimentos que poderiam chegar a R$ 46 bilhões ao ano na próxima década, gerando cidades mais resilientes e combatendo o racismo ambiental.

5. Financiamento da transição

Há uma trágica coincidência entre diferentes discursos negacionistas, de esquerda ou de direita: todos reivindicam o “direito ao desenvolvimento” do Brasil. Por incrível que pareça, é possível identificar esse argumento em declarações tanto de Jair Bolsonaro quanto de líderes de esquerda. É verdade que o planeta chegou ao ponto crítico em que se encontra porque os países do capitalismo central se desenvolveram economicamente sem qualquer preocupação ambiental. Logo, faz sentido o raciocínio de que por trás da defesa do meio ambiente estão, na verdade, motivações geopolíticas que buscam impedir o surgimento de novos atores na arena global. A questão é que, nessa lógica, qual a opção senão seguir rumando ao ponto de não retorno? Seguir emitindo CO2 e ignorar os alertas feitos pela ciência? Esperar que os países ricos financiem a transição dos países da periferia do capitalismo? Um programa socialista deve cobrar de todos os governos medidas para transformar sua matriz produtiva, gerando empregos, desconcentrando a renda e a riqueza, ampliando o investimento público e diminuindo as desigualdades. Em outras palavras: não podemos esperar o resgate do Norte global. Segundo dados do estudo “Caminhos para o Plano de Transformação Ecológica do Brasil” a combinação de medidas de adaptação, mitigação e adaptação poderia gerar um aumento do PIB do país entre US$ 230 e US$ 450 até 2030. O número de empregos gerados poderia chegar a 10 milhões e a neutralidade de carbono poderia ser alcançada antes de 2050, conforme prevê o acordo de Paris. Em outras palavras: é preciso fazer com que a transição se autofinancie ao mesmo tempo em que muda a matriz econômica do Brasil, zerando subsídios aos setores altamente poluentes e direcionando esses recursos ao financiamento climático. 

6. Democracia, controle social e combate às desigualdades

A incapacidade de frear a violência genocida em Gaza mostra a total falência dos instrumentos de governança global. Isso significa que o futuro da humanidade não será definido nas COP’s. Ao mesmo tempo, nos permite concluir que nenhuma transição socioambiental pode prescindir de um forte controle social. A crise da democracia liberal e sua subordinação às necessidades de reprodução do capital transformaram-na em um significante vazio. A transição, portanto, nos dá a oportunidade de sustentar a necessidade de uma nova democracia, baseada nos territórios, nos setores populares organizados, na transparência e na vontade das maiorias. Exemplos recentes como o plebiscito de Yasuní, que decidiu pelo fim da exploração petrolífera no parque natural de mesmo nome, são um exemplo de que é possível forjar uma nova consciência ambiental, onde as formas de vida tradicionais – sobretudo de povos indígenas, ribeirinhos, pescadores, quilombolas, dentre outros – são a ponta de lança. Os comitês de bacias hidrográficas, os conselhos populares de meio ambiente e recomendações internacionais, como a Convenção 169 da OIT, são instrumentos que devem ser reivindicados para pensar uma democracia ambiental robusta. 

Conclusão

Vivemos aquilo que Lauro Campos chamou de “crise completa”. Além da crise da globalização neoliberal – que já é em si mesma uma resposta à queda dos padrões de acumulação iniciada nos anos 1970 – vivemos uma crise da hegemonia dos Estados Unidos, uma crise dos instrumentos multilaterais do pós-guerra, e uma crise do sistema dos sistemas políticos assentados na democracia liberal. Essa multiplicidade de crises se soma agora à crise climática.

Por isso, precisamos de ma resposta à dinâmica predatória do capitalismo. Ela representa, porém, uma oportunidade de colocar todo o modelo em xeque. A saída, é claro, está em disputa. Mas quanto antes assumirmos a centralidade da luta socioambiental e compreendermos que ela abre uma janela histórica para apresentar alternativas à ordem do capital, colocando no lugar do vazio deixado pelo socialismo real uma proposta de mudança sistêmica, deixaremos menos terreno para nossos inimigos de extrema direita, que jogam com o medo para construir uma nova hegemonia, baseada no ódio, na intolerância, na violência e no controle absoluto do capital. É isso ou a barbárie.

Sobre os autores

é doutor em Ciência Política e presidente nacional do PSOL.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Capital, Cidades, DESTAQUE and Teoria

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