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Para Jones, o contrário do fascismo não é a democracia burguesa, é a revolução. Foto do BdF.

Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu

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Nove em cada dez mortos pela polícia de Pernambuco são negros, uma estatística que se repete por todo país. Para entender como seria possível mudar radicalmente essa realidade, conversamos com o único candidato negro do Estado: o militante comunista Jones Manoel, sobre como reverter a herança escravocrata do colonialismo, rap e as ameaças golpista do governo Bolsonaro.

UMA ENTREVISTA DE

Editores

Segundo a pesquisa realizada pela Rede de Observatórios de Segurança Pública, 93,2% das pessoas mortas pela policia são negro em Pernambuco. Essa realidade é uma das heranças mais violentas da escravidão e se repete por todo Brasil. Foi tentando entender ela no interior do Estado que Jones Manoel, primeiramente através do rap, se tornou comunista. 

Hoje, Jones é conhecido nacionalmente através de seus livros, como o que ele organizou sobre a Revolução Africana que chegou até as mãos de Caetano Veloso, e canal no Youtube, que já conta com mais de 213 mil inscritos. Com graduação em história e mestrado em serviço social pela em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ele recusou convite para estudar na Europa, China e Venezuela para ajudar a reerguer o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Tentando resgatar os tempos de gloria e combatividade eleitoral do partido, Jones, além de ser o único candidato marxista, é o único candidato negro de Pernambuco. Jones faz parte uma onda de jovens que se radicalizou à esquerda após Junho de 2013 e vem aumentando as fileiras do partido que um dia foi o aparato de luta de Gregório Bezerra, Carlos Marighella, Luís Carlos Prestes, Olga Benário, Ana Montenegro, Minervino de Oliveira, Solano Trindade entre outros nomes históricos.

Por onde passa, o pernambucano causa polêmica e deixa marcas. Em seu primeiro artigo publicado no lançamento da Jacobin Brasil sobre anticomunismo na esquerda, até mesmo a Folha de S. Paulo, maior jornal do país, se viu obrigada a repercutir o caso tamanho foi o furor nas redes sociais. Nesta conversa com a nossa redação, ele contou como as letras de rappers como Gog, RZO, Racionais MC’s e Clã Nordestino o ajudaram a entender a cruel realidade em que vivia até encontrar as principais teorias de Karl Marx. Além disso, também tratou sobre as dificuldades da esquerda em seu Estado e a ascensão do fascismo no Brasil com o partido fardado, que como bem lembra, vem antes da vitória eleitoral de 2018 com Jair Bolsonaro. 


JB

Como você se tornou comunista?

JM

Falar como me tornei comunista é sempre uma pergunta complexa, porque tem vários momentos da nossa vida, quando você pensa retrospectivamente, que levaram a esse caminho. Acho que a primeira coisa a ser dita é que eu sou uma pessoa filho da classe trabalhadora no sentido mais clássico da palavra. 

A minha família veio do interior do Cabo de Santo Agostinho, na zona rural da cidade do Engenho Sebastopol. Minha mãe começou a trabalhar com 7 anos de idade, minha avó e meu avô eram agricultores, e aí, como uma história clássica da classe trabalhadora brasileira, boa parte da família veio para a cidade grande, para Recife, tentar melhorar de vida. Minha mãe trabalhou quase a vida inteira como empregada doméstica, cozinheira, auxiliar de serviços gerais; meu pai, antes de ser morto, era pedreiro. Meu pai foi morto quando eu tinha 11 anos de idade. Eu cresci numa família em que a minha mãe assumiu todas as responsabilidades da casa, era uma mãe solteira criando dois filhos, eu e minha irmã mais velha, então desde cedo eu conheço muito bem o que é a realidade objetiva da classe trabalhadora brasileira. 

“Cresci ouvindo rap que sempre tiveram letras politizadas, de reflexão sobre a realidade da classe trabalhadora, população negra, violência policial e desigualdade.”

Além disso, sou um homem negro que desde sempre teve que enfrentar o racismo e a violência policial. Lembro perfeitamente que aos 14, 15 anos, mais ou menos, eu estava jogando videogame num playtime, que é como a gente chama aqui no Pernambuco, e aí fui abordado pela polícia, e o policial, sem qualquer justificativa ou motivo, deu uma coronhada com a arma nas minhas costas. Eu passei uns sete dias com as costas doendo e sem conseguir andar direito, de tal sorte que essa realidade objetiva que era colocada acabou sendo trabalhada inicialmente a partir do rap. Cresci ouvindo Gog, RZO, Racionais MC’s, Ao Cubo, Clã Nordestino, e tantos grupos fundamentais de rap que sempre tiveram letras politizadas, de reflexão sobre a realidade da classe trabalhadora, da população negra, da violência policial, desigualdade, e por aí vai. 

Me lembro perfeitamente de quando eu ouvi pela primeira vez a música de Gog “Malcolm X foi a Meca e Gog ao Nordeste”, em que Gog conta de maneira lírica a história de Malcolm X. Isso me chamou muita atenção, mas eu diria que o processo marcante para eu me tornar comunista aconteceu aos 18 anos de idade. Eu comecei a trabalhar com 13 anos, vendendo jornal no sinal de Boa Viagem, que é um dos bairros mais ricos da cidade, e aí passei toda a minha infância e adolescência trabalhando. Eu tinha a ilusão de que quando eu fizesse 18 anos e tivesse carteira assinada, viveria uma espécie de paraíso, com um bom salário, direitos trabalhistas, férias, décimo terceiro e etc.. 

Minha primeira experiência de trabalho com carteira assinada, num grande colégio privado aqui de Recife, foi traumática, para dizer o mínimo. Eu tinha uma patroa, proprietária da escola, extremamente sádica, que gostava de humilhar os funcionários; salário atrasava todo mês, era pago em cinco, quatro parcelas; a gente fazia hora extra e não tinha o pagamento devido, de tal sorte que, num belo dia – eu pegava no trabalho às duas horas da tarde e largava mais ou menos às onze, meia-noite; eles colocaram um jovem de 18 anos de idade para todo dia fechar sozinho a escola e ser responsável por ativar o alarme e qualquer assalto que tivesse na escola seria descontado do meu salário, como a patroa fazia questão de reiterar todo dia. 

Eu e meus amigos ficavam conversando na rua até mais tarde e, um belo dia voltando da escola, meu amigo Júlio César comentou comigo que tinha tido uma aula com a professora de sociologia da escola Augusto Severo, em que a gente fez o ensino médio, e aí ela ensinou a Júlio o que seria a mais-valia. Júlio me explicou o que era a mais-valia; lembro perfeitamente que minha reação foi falar “pô, faz muito sentido”; e ele disse que tinha uma explicação melhor no livro Sociologia para jovens do século XXI. De pronto eu peguei o livro, acho que foi o segundo livro que eu li na minha vida, o primeiro foi O alienista, de Machado de Assis, e ao terminar o livro eu já me considerava comunista, embora eu não tivesse lá muita clareza do que era ser comunista nesse momento. 

Depois disso, assisti ao documentário A revolução não será televisionada, que consolidou a minha opção política por um projeto revolucionário, por um projeto comunista, em seguida assisti ao documentário Ao sul da fronteira, do grande cineasta Oliver Stone, depois um outro documentário dele, Procurando Fidel, isso já me tornou um profundo admirador da Revolução Cubana, de Fidel Castro, Ernesto Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Celia Sanchez e companhia. E aos 19, quase 20 anos de idade, eu li pela primeira vez O manifesto do Partido Comunista

Nesse processo eu estava estudando para o vestibular, acabei passando na universidade. Eu já entrei na universidade me considerando comunista, querendo militar, procurando uma organização política para me organizar, lendo o programa de todos os partidos de esquerda do Brasil; li o programa do PT, do PSOL, da Consulta Popular, do PCdoB, do PCB – que foi o que mais me contemplou –, e aí decidi me organizar no partido, conversão que demorou um tempo para se concretizar, mas que foi acelerada com os resultados de Junho de 2013, dos quais participei abertamente aqui em Recife. E ao final daquele processo ficou muito claro para mim que a gente precisava de organização, e organização leninista; então em setembro de 2013 eu passo a integrar formalmente as fileiras da União da Juventude Comunista, a Juventude do PCB.

JB

Qual sua avaliação sobre o histórico partido no Brasil?

JM

Evidentemente, o PCB tem todo um charme particular, é bem sedutor você dizer que faz parte do mesmo partido em que militou Gregório Bezerra, Carlos Marighella, Luís Carlos Prestes, Olga Benário, Ana Montenegro, Minervino de Oliveira, Solano Trindade e tantos nomes históricos da cultura e da política brasileira. A decisão de começar a militar no PCB foi um processo de que, para mim, ser comunista significava necessariamente procurar ou o PCB ou o PCR (o Partido Comunista Revolucionário), só que eu tinha discordâncias teóricas abertas com a concepção do PCR do marxismo, do que que é o marxismo-leninismo, e isso consolidou minha opção pelo PCB. 

Como eu falei, entrei na juventude do partido em setembro de 2013, em 2014 passei a militar também formalmente no partido, não só na juventude, e estou no PCB até hoje, dando minha vida, toda a minha energia, a minha capacidade política e intelectual para fazer com que o PCB volte a ter o protagonismo que um dia já teve na classe trabalhadora brasileira. 

Acredito que o PCB, nos seus limites e suas possibilidades, é hoje o instrumento político mais capacitado para fazer do marxismo alma viva da política do povo trabalhador deste país e para colocar a revolução brasileira na ordem do dia.

JB

Nos últimos anos, você se tornou uma figura pública nacional. Por que está se candidatando a governador de Pernambuco? Não seria mais estratégico sair por São Paulo, onde o Gabriel Colombo está indo bem e seu partido tem mais base social?

JM

Acho que a opção para Pernambuco passou por três dimensões; primeiro a pessoal, que eu acho que não vale a pena explicitar em tantos detalhes, mas acho que só um exemplo e é significativo: eu não queria ficar longe dos meus sobrinhos, de tal sorte que quando eu decidi ficar em Pernambuco, não sair do meu Estado e fazer a política por aqui se passou por querer ver meus sobrinhos crescerem, estar do lado deles. 

“O Sudeste, de maneira geral, praticam uma espécie de colonialismo interno no Brasil, eles drenam a força econômica, a criatividade e os cérebros das regiões consideradas periféricas do nosso país.”

Acho que tem uma segunda dimensão, que é a do debate sobre o que é a formação social brasileira. Historicamente, São Paulo e o Sudeste, de maneira geral, praticam uma espécie de colonialismo interno no Brasil, eles drenam a força econômica, a criatividade e os cérebros das regiões consideradas periféricas do nosso país, como o Norte e o Nordeste, de tal forma que é algo relativamente comum figuras políticas que se destacam nessas chamadas regiões periféricas migrarem para Rio de Janeiro ou para São Paulo para fazer política. Eu decidi ter um caminho diferente, que eu precisava ficar em Pernambuco. Decidi que era importante para firmar um projeto realmente nacional que uma figura que se destaca não migre para São Paulo. Em São Paulo teria mais oportunidades não só políticas como profissionais também, eu sou escritor, escrevo e organizo livros, sou educador popular, tenho várias iniciativas na área da comunicação. 

Então São Paulo, do ponto de vista político e profissional, seria muito propício para mim, mas eu decidi que era importante firmar uma posição ética e política de que enquanto um pernambucano, enquanto um nordestino, não é porque, entre aspas, eu fiquei famoso nacionalmente que eu tinha que migrar para o Sudeste. Decidi ficar no meu Estado, fazer política do meu estado. Eu sou um comunista que luta por uma revolução brasileira, mas luta por uma revolução brasileira a partir de Pernambuco. Se nos próximos anos eu me construir enquanto uma liderança política nacional, isso vai acontecer a partir de Pernambuco, da minha terra. 

O terceiro aspecto, acho que é o emocional. Nos últimos dois anos e meio a três, eu viajei para mais de setenta cidades, fiz atividades pelo Brasil inteiro praticamente, e eu amo muito minha terra, eu gosto muito de Recife, eu gosto muito de Pernambuco, eu sinto saudade das ruas, do sotaque, da comida, sinto saudade até do cheiro não tão agradável do centro do Recife, de tal sorte que eu não conseguiria ficar longe daqui. Para além da dimensão política da possibilidade de ir para São Paulo, não faltaram convite nem ideias, eu também recebi um convite para fazer um doutorado, por exemplo, isso no final de 2019 pro começo de 2020, na China e na Venezuela. Recebi convite para estudar na Europa e recusei todos eles, porque eu não concebo a ideia de passar quatro anos da minha vida longe do meu país e não concebo hoje a ideia, nesse momento, de morar fora de Pernambuco. Eu quero ser um pernambucano, tal qual Gregório Bezerra, que fez política a partir da sua terra, de Pernambuco, lutar pela revolução brasileira, esse é o caminho. 

JB

Como você avalia o trabalho de campanha feito até agora pelo partido e o impacto de sua candidatura no cenário eleitoral?

JM

Eu acho que a campanha da gente já é exitosa, a gente vem conseguindo fazer uma campanha histórica e é de longe a campanha com maior mobilização, maior impacto da sociedade que o PCB faz aqui em Pernambuco nos últimos 20 anos. A gente vem conseguindo empolgar vários setores da juventude da classe trabalhadora, conseguindo fazer atividades em universidades, sindicatos, ocupações urbanas e rurais, em comunidades quilombolas, junto a comunidades indígenas, dialogando com o movimento negro, o movimento feminista, LGBT e movimento ambiental. 

A nossa candidatura vem tendo uma ótima repercussão. Do ponto de vista nacional, é interessante como todos os dias a gente recebe elogios, desejos de sucesso de várias partes do Brasil, inclusive de várias organizações políticas; já recebi mensagens de várias pessoas de fora de Pernambuco, do PT, do PCdoB, da UP, do PSOL, do PDT, elogiando a nossa campanha e a estética dela, elogiando o papel politizador que a gente vem tocando, elogiando essa dimensão que a gente vem dando à campanha, de resgatar o histórico de luta e rebeldia de Pernambuco, de colocar de novo no centro do debate o que foi o movimento Mangue Beat, de falar das ligas camponesas, de recuperar a memória histórica das resistências aqui em Pernambuco, e a gente vem conseguindo fazer tudo isso sem dinheiro. 

“Entre as dez primeiras candidaturas com mais doação do Brasil, nós somos a única candidatura de esquerda que está entre os dez.”

É importante dizer que o PCB não tem acesso a fundo partidário e também não teve acesso até agora ao fundo eleitoral. Estamos enfrentando um processo no TSE, que indeferiu o pedido de recursos do partido, e a gente está sem dinheiro, o que significa que, basicamente, estamos fazendo campanha com doação de pessoas. Isso é significativo, que uma das plataformas que o TSE liberou para doação de campanha, o Quero Apoiar, entre as dez primeiras candidaturas com mais doação do Brasil, nós somos a única candidatura de esquerda que está entre os dez; todo o resto são basicamente fascistas do Partido Novo ou do partido de Bolsonaro. Então a gente está tendo uma repercussão nacional, está mobilizando a sociedade, está recebendo muitos elogios, está conseguindo fazer um debate muito qualificado. 

Quando o PCB Pernambuco anunciou a nossa candidatura ao governo do Estado de Pernambuco, muitas pessoas se questionaram se um propagandista, um intelectual marxista, conseguiria debater políticas públicas, orçamento, modelo de governança, os problemas concretos que atingem o cotidiano mais imediato da classe trabalhadora. Eu acho que a gente vem conseguindo mostrar que não só é a única candidatura radical, popular, que defende um projeto de classe com enfrentamento às elites de Pernambuco como é a candidatura mais qualificada, com melhor debate, que mais conhece Pernambuco, que tem as melhores propostas de política pública, que consegue debater uma reformulação do orçamento do Estado com propriedade, sabendo do que está falando. 

Então acho que a candidatura já é vitoriosa, e como eu já disse em várias entrevistas, a gente vai surpreender muita gente ao final desse processo eleitoral com a votação que teremos aqui em Pernambuco.

JB

Qual o motivo de a esquerda pernambucana não ter construído unidade nestas eleições?

JM

A gente tentou bastante uma unidade de esquerda aqui em Pernambuco em 2018, saímos junto com o PSOL. Dani Portela, do PSOL, e Gerânio Simões, do PCB, inclusive foi a maior votação de uma chapa de esquerda em Pernambuco desde 2002. Foram mais de 180 mil votos numa aliança exitosa. Contudo essa unidade não conseguiu se reproduzir este ano por diversos motivos. 

Acho que do ponto de vista da UP, a gente tentou um diálogo com os companheiros na unidade popular pelo socialismo, eles definiram uma tática eleitoral própria, que a gente respeita; a unidade não foi possível aqui em Pernambuco, mais de maneira muito fraterna e respeitosa, a gente diz que espera que os companheiros e companheiras da UP votem na nossa candidatura, porque é a candidatura que apresenta o projeto político para Pernambuco que mais se aproxima do que a UP defende. 

Do ponto de vista do PSOL, a gente vem tendo diálogos bilaterais e conversações desde dezembro do ano passado, só que a unidade não foi possível, e nesse ponto a gente tem um elemento que foi desagradável, em alguma medida, nesses debates políticos e eleitorais. O candidato atual do PSOL, o João Arnaldo, bateu o pé, como a gente diz usando uma expressão popular, que, para a unidade sair, isso significava que a gente teria que necessariamente ir para vice dele; então João Arnaldo só aceitava debater unidade de esquerda se a gente fosse para vice. Só que, veja, o PCB não briga por nenhum tipo de hegemonismo, não briga por cargos, ele debate projetos e programa; não teríamos problema nenhum em assumir uma unidade de esquerda no papel de vice numa chapa liderada pelo PSOL, desde que isso fosse colocado abertamente, que fossem colocados para o debate os termos programáticos, como seria tocada a campanha, que projeto seria apresentado, qual política de alianças com a classe trabalhadora seria tocada, e nada disso foi colocado na mesa. 

“Propomos desde o começo que, se a gente chegasse a um impasse na conversa entre os dois partidos, que a gente deveria tentar organizar uma espécie de prévias.”

Acho que tem uma diferença muito clara na forma de fazer política tocada pela presidência do PSOL pernambucano, que é um grupo de dirigentes muito qualificado, o qual eu respeito muito, que sabe buscar uma unidade de esquerda e uma construção coletiva. O presidente do PSOL de Pernambuco, Tiago Paraíba, é um militante ultra qualificado, respeitoso, que sabe manter um trato cordial com todas as forças de esquerda, sem dúvida nenhuma uma referência de liderança político-partidária em Pernambuco e no Brasil, mas eu acho que a postura do companheiro João Arnaldo não ajudou esse processo de construção.

Nós, do PCB, propomos desde o começo que, se a gente chegasse a um impasse na conversa entre os dois partidos, que a gente deveria tentar organizar uma espécie de prévias, chamar os movimentos populares, os sindicatos, a intelectualidade, a universidade, reunir todo mundo que quer construir um projeto de esquerda popular e radical, chamar para uma conversa em que as bases disso diriam como seria montada a chapa. Infelizmente, isso não foi possível de ser construído, a gente respeita muito o PSOL de Pernambuco, a gente deseja sorte à candidatura deles. 

O PSOL tem quadros políticos incríveis, como é o caso da vereadora Dani Portela, que é uma referência fundamental para a luta política da nossa cidade e do nosso Estado, como é o caso de Luiza Carolina, candidata a deputada federal pelo PSOL, como é o caso do vereador Ivan Moraes, e tantos outros nomes; mas, infelizmente, acho que a postura de algumas lideranças do Psol não ajudaram na construção dessa unidade tão necessária. De tal forma que nesta eleição temos uma chapa do PSOL e uma chapa do PCB que estão disputando votos ao invés de estar construindo um programa coletivo unitário que teria maior capacidade de alcance, de pautar o debate, de mobilizar a sociedade pernambucana.

JB

A candidata que lidera as pesquisas, Marília Arraes, tem um sobrenome tradicional em PE, mesmo que ligado a uma família progressista – e isso se repete com muitos candidatos originários de famílias tradicionais de direita. Mas você é um dos poucos candidatos que não tem um desses sobrenomes. Como você avalia isso?

JM

Não sou filho de político, não sou de família rica, como eu já falei sou da classe trabalhadora. Minha vice, Raline Almeida, militante do PCB há dez anos, tal como eu, é natural da comunidade do Vasco da Gama, assistente social, militante de base. Pernambuco se caracteriza neste momento por uma gigantesca briga familiar; a gente até brinca falando que é o Game of Thrones Pernambuco. São famílias tradicionais da política burguesa daqui, famílias ricas, que se acotovelam para ver quem vai implementar o programa burguês em Pernambuco. 

A família Coelho domina Petrolina há mais de 150 anos; a família Ferreira é a família tradicional de Jaboatão dos Guararapes, o Anderson Ferreira, que é o candidato bolsonarista, foi o pior prefeito da história de Jaboatão; a família Lyra domina Caruaru, é um dos polos de poder, também há muitas décadas, o pai da Raquel Lyra já foi governador do Estado, a vice da Raquel Lyra, Priscila Krause, é filha do Gustavo Krause, que também já foi governo do estado de Pernambuco. O Danilo Cabral é representante da família Campos, que está no governo de Pernambuco há 16 anos. 

A própria Marília Arraes, inclusive, hoje é oposição ao PSB; mas veja, Marília Arraes foi vereadora pelo PSB, foi secretária de governo do péssimo prefeito Geraldo Júlio, que fez uma gestão em Recife antipopular, uma gestão para as construtoras que buscou desconstruir vários elementos positivos da gestão de João Paulo, que foi o melhor prefeito que Recife já teve. A Marília Arraes já apoiou para o governo do Estado o latifundiário e usineiro, inimigo dos direitos trabalhistas, Armando Monteiro. Na eleição de 2020, ela buscou apoio do Anderson Ferreira, esse mesmo que é o candidato de Bolsonaro aqui na eleição em Pernambuco. A Marília Arraes, também em 2020, na eleição para a prefeitura do Recife, buscou apoio da família Coelho. E aí note, nós denunciamos, à época, a campanha suja, podre, que o PSB fez contra a Marília Arraes no segundo turno, em que a disputa foi entre a Marília Arraes e João Campos, mas isso não muda o fato de que cada um se alinhou com algum setor da direita ou da extrema direita pernambucana e brasileira. 

“Quem está totalmente fora dessa briga familiar entre oligarquias ricas que sempre mandaram em Pernambuco é a nossa candidatura.”

O João Campos foi buscar apoio do Silas Malafaia e a Marília foi buscar apoio do Anderson Ferreira, entende? Então nessa eleição a única candidatura verdadeiramente de oposição, a única candidatura verdadeiramente contra o sistema de poder das oligarquias que está instalado em Pernambuco, a candidatura que faz oposição de frente aos usineiros, aos latifundiários, às empresas de ônibus, às construtoras, aos grandes empresários ricos e poderosos de sempre que mandam em Pernambuco, é a nossa. Com todo o respeito à candidatura do PSOL, o próprio João Arnaldo era do PT, que é parte do governo do PSB, e foi vice da Marília Arraes em 2020. E quando o João Arnaldo do PSOL foi vice da Marília Arraes, ela estava procurando diálogo e aliança com o Anderson Ferreira e com o Fernando Bezerra Coelho e a família Coelho. O Fernando Bezerra Coelho, lembrando, era líder do governo Bolsonaro no Senado e foi o articulador da defesa do bolsonarismo durante a CPI da COVID. 

Então só quem é oposição, e sempre foi oposição, a esse projeto político apresentado pelo PSB e quem está totalmente por fora dessa briga familiar entre oligarquias ricas que sempre mandaram em Pernambuco é a nossa candidatura, é a candidatura do PCB.

JB

E como você avalia a construção política de Marília Arraes e sua liderança, mesmo estando agora em um partido pequeno e não identificado com a esquerda?

JM

Me parece que a questão central é que tipo de aliança a Marília Arraes montou. Ela está no partido Solidariedade, que tem uma prática no Congresso Nacional de votar aliado com o bolsonarismo. Marília Arraes construiu uma aliança com um conjunto de partidos e forças políticas que são todos partidos que votam junto com bolsonarismo no Congresso Nacional. O vice da Marília Arraes é o Sebastião Oliveira, da oligarquia dos Oliveira, que entrou na política pelas mãos de um conhecido coronel aqui de Pernambuco, que é o Inocêncio Oliveira. 

O candidato ao Senado de Marília é André de Paula, que entrou na política pelas mãos do Marco Maciel, que foi do PFL, antigo Arena – como diria Brizola, um filhote da ditadura. A Marília Arraes está construindo alianças com figuras execráveis da política, como o Yves Ribeiro, que é prefeito de Paulista e é um péssimo prefeito; Lula Cabral, do Cabo de Santo Agostinho, que foi preso acusado de desviar dinheiro da aposentadoria de trabalhadores do município; e outras figuras tenebrosas. 

“Marília Arraes soltou um vídeo defendendo comunidades terapêuticas em suas redes sociais, e sem nenhum compromisso com os princípios da reforma antimanicomial, com os princípios do SUS.”

Na prática, o que a Marília está fazendo é uma aliança de oposição ao PSB, e só. Sem nenhum tipo de compromisso com bandeiras históricas da esquerda, com um programa de esquerda, com um programa verdadeiramente popular. Cito dois exemplos: a Marília Arraes soltou um vídeo defendendo comunidades terapêuticas em suas redes sociais, e sem nenhum compromisso com os princípios da reforma antimanicomial, com os princípios do SUS. Assim como Marília deu uma entrevista para a Rádio Jornal, em que ela passou um terço da entrevista dizendo que o empresário pernambucano é humilhado, não é escutado e precisa fazer um governo de escuta para os empresários, um governo que melhore o ambiente de negócios para a burguesia pernambucana, percebe? Então quando eu digo que a Marília Arraes, sem dúvida nenhuma, até pelo próprio elemento familiar envolvido e o elemento passional que está colocado de todos os lados, conseguiu angariar o papel de oposição ao PSB, que fazia um governo desastroso em Pernambuco. Mas a Marília Arraes não representa um projeto de esquerda, não representa um projeto popular, não representa um projeto para a classe trabalhadora. 

Na entrevista para o jornal Brasil de Fato, fiz uma afirmação que me parece sintetizar o que é essa disputa aqui em Pernambuco e qual o papel que a Marília Arraes cumpre. Eu disse que a Marília Arraes e o Danilo Cabral brigam tanto pelo nome do Miguel Arraes, mas a única candidatura que defende de maneira sistemática e inegociável a reforma agrária em Pernambuco é a nossa candidatura, e a reforma agrária, como sabem, foi uma das marcas do legado de Miguel Arrais. De tal sorte que a Marília é hoje a oposição ao PSB, mas projeto de esquerda, liderança de esquerda ela não é, se é que um dia já foi. 

Vale lembrar, para concluir, que a Marília Arraes foi praticamente a única deputada do PT que descentralizou a bancada naquela votação sobre vacinação privada, quando os empresários bolsonaristas queriam instituir uma fila privada de vacinação. A Marília Arraes teve uma posição contrariando a posição do PT, assim como ela construiu um acordo com Arthur Lira para assumir um cargo da mesa diretora da Câmara de novo à revelia do que era a posição da bancada do PT.

JB

Como você vê o atual momento do governo Bolsonaro? Existem condições para ele cumprir suas ameaças de golpe de Estado? O que a esquerda deve fazer para se preparar caso o bolsonarismo avance em suas intenções golpistas?

JM

O governo Bolsonaro representa uma força fascista. Fora de qualquer dúvida, a intenção do Bolsonaro é tumultuar o processo eleitoral, causar a violência nas ruas, criar um clima de caos e quem sabe instigar um golpe de Estado. Agora, Bolsonaro não é a única preocupação. É importante lembrar que nós temos o governo mais militarizado da história. Nunca antes na história da república brasileira tivemos tantos militares comandando o governo federal. 

“A ascensão do partido fardado é pré-Bolsonaro, pré-vitória eleitoral, e ela ganha outro grau qualitativo em outro nível de aceleração com a vitória de 2018.”

Essa ascensão do partido fardado aconteceu antes da própria vitória eleitoral de Bolsonaro, como sempre destaca o jornalista Pedro Marin, editor da Revista Ópera, a ascensão do partido fardado é pré-Bolsonaro, pré-vitória eleitoral, e ela ganha outro grau qualitativo em outro nível de aceleração com a vitória de 2018 do fascista Jair Messias Bolsonaro, de tal maneira que o que a gente precisa é entender que está colocado um enfrentamento a três vetores que são unificados: o bolsonarismo, o partido fardado e o neoliberalismo.

Alguns setores da esquerda querem apenas derrotar Bolsonaro nas urnas, não enfrentar o perigo que representa o partido fardado e muito menos enfrentar o neoliberalismo. Não dá para falar em derrotar o golpismo sem ligar o que seria uma mobilização de massas antigolpista em defesa dos direitos trabalhistas, a defesa da previdência social, das empresas públicas, do aumento do poder de compra do salário-mínimo, do combate à fome, da defesa da saúde, da educação, da derrubada do Teto de Gastos, de colocar em discussão a Lei de Responsabilidade Fiscal, revogando-a para fortalecer os serviços públicos e os direitos sociais para a classe trabalhadora. A gente não pode separar as três coisas. 

Bolsonaro é uma parte do problema, o problema imediato na conjuntura brasileira, como se fosse uma Hidra, um monstro de três cabeças. De um lado está o partido fardado, que tem um programa econômico ultraneoliberal que não difere em nada do discurso do Paulo Guedes, do outro lado está o próprio Bolsonaro e sua base fascista com seu discurso misógino, racista, antinacional, antipopular e antidemocrático; do outro lado, representado pela grande burguesia brasileira e pelos interesses de monopólios estrangeiros, está o programa neoliberal, ou ultraliberal, que vem destruindo a soberania nacional do país e que vem atacando nossas empresas públicas, que vem intensificando a superexploração da classe trabalhadora e a transferência de riqueza para fora. 

“O contrário do fascismo não é a democracia burguesa, contrário do fascismo é a revolução brasileira.”

A gente precisa fazer um enfrentamento conjunto a esses três vetores e agitar, esquentar, a luta de massa nas ruas. A derrota do bolsonarismo, do partido fardado e do neoliberalismo não vai ser feita com acordos no Congresso Nacional. Claro, ela passa também por uma mobilização, por uma luta institucional, mas passa principalmente pela reorganização política, ideológica e organizativa da classe trabalhadora, agitando a temperatura política das ruas, instigando a luta de massas e organizando os locais de moradia e trabalho para fazer com que a gente crie uma nova maioria social que consiga barrar a ofensiva burguesa que está em curso e mudar a correlação de forças e abrir uma avenida histórica para a revolução brasileira. Como eu gosto de falar, o contrário do fascismo não é a democracia burguesa, contrário do fascismo é a revolução brasileira.

JB

No lançamento da Jacobin, seu artigo gerou muitas críticas e tentativa de cancelamento por pessoas que nem sequer leram a revista. Por que você entende que houve essa reação e por que, na sua perspectiva, uma parte da esquerda brasileira age assim?

JM

O PCB, por muito tempo, era uma espécie de América Mineiro; o América já foi um time muito forte, muito competitivo, e deixou de ser. Todo mundo falava do América Mineiro com saudação, reverência, que era um time muito legal, muito fofo, porque até pouco tempo atrás no futebol brasileiro, nos últimos dois anos – eu não venho acompanhando muito –, ele não representava perigo, uma ameaça nenhuma de títulos importantes e relevantes.

O PCB vem crescendo bastante nos últimos anos, o PCB ainda é um partido pequeno nacionalmente, mas ele cresce a olhos vistos. Quem esteve nas ruas no ano passado nas manifestações contra Bolsonaro e Mourão, em defesa da vacina e da vida, viu o tamanho dos blocos do PCB nas ruas. O partido volta a ter um papel importante no movimento sindical, no movimento estudantil, nos movimentos de luta contra as opressões, no debate intelectual e cultural do país. E eu, enquanto militante do PCB, sou parte desse movimento. Então o episódio da Jacobin expressou o velho e conhecido anticomunismo de esquerda. 

Para muitas pessoas era legal quando o PCB era basicamente um partido com pouca base intelectual e que só influenciava mais num debate acadêmico. O PCB era conhecido por suas boas análises de conjuntura, mas a partir do momento que o PCB passa a ter cada vez mais capacidade não só de fazer boas análises de conjuntura como também influenciar na conjuntura, há uma hostilidade crescente cada vez maior. A nossa candidatura aqui em Pernambuco, por exemplo, vem enfrentando largas resistências, algumas abertas e outras não declaradas. Para você ter uma ideia, nós somos a única candidatura negra de Pernambuco. 

“O marxismo deixou de ser tema só de seminário acadêmico, ele é tema de mesa de bar, de roda de conversa, em sindicatos, nas ocupações urbanas, em ocupações rurais, no próprio debate eleitoral.”

Eu sou um trabalhador, um homem negro, minha vice, a Raline Almeida, é uma mulher negra, e mesmo assim há larguíssima resistência de vários setores do movimento negro em conversa conosco. Há uma dificuldade de adesão, que se fosse uma chapa do PT ou do PSOL, com as características que tem a nossa chapa, ela seria abraçada por todos e todas. Então isso é normal, isso vai acontecer, a gente ainda vai enfrentar muito anticomunismo de esquerda. A gente, não tenha dúvida, está quebrando isso cada vez mais. 

O marxismo deixou de ser tema só de seminário acadêmico, ele é tema de mesa de bar, de roda de conversa, em sindicatos, nas ocupações urbanas, em ocupações rurais, no próprio debate eleitoral. O marxismo é cada vez mais a alma viva da luta de classes e de vários setores da juventude da classe trabalhadora. Falta muito trabalho para ser feito? Falta muito. Mas hoje não é mais possível ignorar os comunistas. O que o PCB vem fazendo em São Paulo, com a candidatura do Gabriel Colombo; no Paraná, com a candidatura da Vivi Motta; em Minas Gerais, com a candidatura da Renata Regina; no Brasil inteiro, com a candidatura de Sofia Manzano, e por aí vai, em vários os Estados em que o PCB tem candidato, a gente está criando condições, e não é possível ignorar a nossa atuação, o nosso debate, as nossas propostas, o programa que a gente vem apresentar. Isso por si só diz que a gente tem um longo trabalho pela frente, mas muita coisa já foi feita.

JB

Última pergunta: qual sua música preferida e por quê?

JM

Eu não sei se eu tenho uma música preferida, mas, de longe, eu tenho a música mais marcante da minha vida, que é “Negro drama”, do Racionais MC’s. Lembro como se fosse hoje o dia em que Racionais fez um show em Casa Amarela, uma das maiores comunidades de Recife. Eu vi ao vivo Mano Brown cantando “Negro drama”. Casa Amarela inteira, mais de 50 mil pessoas acompanhando o show, cantando em um só coro; parecia que o bairro, parecia que Recife estava balançando, estava tremendo. 

Tem uma frase que eu gosto muito dessa música que Mano Brown canta, que ele fala assim: “Vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal, o problema tenho mil, mil fita. Inacreditável, mas seu filho nos imita. No meio de vocês, ele é o mais esperto, ginga e fala gíria, gíria não, dialeto.” Em breve, inclusive, pretendo tatuar essa frase, o início dessa construção da música, “Vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal.” Acho que é a música mais marcante da minha vida e é uma música que, inclusive, em algum momento, espero cantar num discurso de posse de algum governo comunista no Brasil.

Sobre os autores

é mestre em serviço social pela UFPE, organiza livros pela editora Autonomia Literária, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow.

Cierre

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Published in América do Sul, Entrevista, História, Perfil and Política

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