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Fiéis durante celebração de culto na igreja Sara Nossa Terra. Foto Divulgação.

Quando a classe também é evangélica

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Os EUA se especializaram em nos catequizar não apenas com coca-cola, mas com versões capitalistas e neoliberais de Teologia. Um bom exemplo foi a exportação da Teologia da Prosperidade e do Fundamentalismo cristão. Mas os evangélicos também fazem parte da classe trabalhadora e não podem ser estigmatizados, mas disputados - conhecer a tradição radical do cristianismo dos pobres pode nos ajudar nisso.

As últimas eleições têm levado o chamado campo progressista a eleger os evangélicos como uma ameaça concreta. Não deixa de ser impressionante o tanto de análises, muitas delas desconhecendo a complexidade desse segmento religioso, empurrando-os para o colo da extrema direita. 

O crescimento evangélico talvez seja o maior fenômeno social dos últimos 30 anos. Ao ler e ouvir tais vaticínios sobre esses, parece que a esquerda concluiu que ante ao crescimento dos evangélicos, a sua derrota está logo ali na esquina. Frequentemente esse tipo de assombração tende a nos paralisar, o que torna nossa motivação na luta política uma luta inglória, posto que a derrota seria certa. Contudo, até onde a “culpa” de nosso fracasso é dos evangélicos?

Inicialmente, é preciso considerar que o crescimento dessa matriz religiosa se configura notadamente pelo fato das igrejas pentecostais se tornaram para os pobres uma espécie de porto seguro frente a um mundo hostil. Assim sendo, há dois fenômenos correntes em tempos de maior esgarçamento do tecido social produzido pelo neoliberalismo. Um deles é o sofrimento psíquico que leva nossa geração a ser a maior consumidora de remédios contra a depressão. O outro é o da religião como espaço de refúgio ante as incertezas, medos e sofrimentos que a massa de excluídos padece no seu dia a dia. 

“Para Gramsci, a formação de uma consciência de classe não nasce espontaneamente, mas parte de um processo de disputa por mentes e corações.”

Não só no Brasil, mas também em vários países do Sul Global o pentecostalismo está virando a nova religião dos pobres. Parece que o nosso velho Marx é ainda atual quando declarou que “a religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito”.

Hegemonia e estratégia socialista

O teórico italiano Antônio Gramsci nos legou contribuições fundamentais para compreender o tema da hegemonia. Para Gramsci, a formação de uma consciência de classe não nasce espontaneamente, mas parte de um processo de disputa por mentes e corações.

Laclau e Mouffe, no livro Hegemonia e estratégia socialista, indicam que para trazer a sociedade para uma posição socialista significa permear a sociedade com nossos valores até que esses se tornem orgânicos e ecoem na mente do povo. Ainda conforme esses autores, a priori nenhuma identidade é cristalizada ou pode ser esencializada, mas se constitui como um “significante vazio” que pode ser mobilizado por diversas demandas e interesses. Ou seja, toda identidade é instável, inclusive dos evangélicos.

“O Brasil, inclusive a periferia, está sendo seduzido pelo discurso neoliberal individualista do empreendedorismo e da negação de saídas coletivas.”

Precisamos retomar o debate sobre hegemonia política e repudiar de vez uma posição vulgar. Embora reconheçamos que participar do processo eleitoral não possa ser desprezado, é importante afirmar que hegemonia não é a mesma coisa que ganhar eleição. Se a esquerda ganha eleição baixando suas bandeiras (algo recorrente na tática conciliatória predominante), então não foi exatamente uma hegemonia de esquerda que se constituiu na sociedade. E o resultado desta tática  está sendo colhido.

Ou alguém acha que a sociedade brasileira se tornou mais de esquerda nos anos de sucesso eleitoral do lulismo? Óbvio que não. O Brasil, inclusive a periferia, está sendo seduzido pelo discurso neoliberal individualista do empreendedorismo e da negação de saídas coletivas. Não há nada mais contraproducente em médio prazo do que o rebaixamento de nosso horizonte político.

Os evangélicos também são trabalhadores

Outro fator importante de saber é quanto essa relação entre hegemonia se espraia para o campo da religião. A esquerda costuma culpar os evangélicos por tudo. Contudo, parece que nesses tempos estranhos, certas verdades óbvias precisam ser repetidas: os evangélicos, ou pelo menos sua imensa maioria, são trabalhadores. Em primeiro lugar, é necessário dizer que odiar expressões da vida desses trabalhadores é jogar contra si mesmo. Não sejamos esse tipo de gente. Ofender a fé do povo é jogá-lo no colo dos nossos inimigos.

Em segundo lugar, é preciso tentar compreender honestamente porque esses trabalhadores pentecostais optam atualmente por Jair Bolsonaro. Um erro comum em certas análises sobre os evangélicos, especialmente sobre os pentecostais, é avaliá-los descolados do resto das questões que envolvem seu contexto, e isso inclui a dimensão da luta de classes e da imposição do realismo capitalista na vida cotidiana. Quando a esquerda abre mão de disputar a consciência desses trabalhadores, privilegiando a aposta na conciliação, deixa um flanco aberto para o ideário neoliberal. E esses religiosos trabalhadores vão raciocinar teologicamente a partir das lentes do neoliberalismo.

“Se mente vazia é a oficina do diabo, os espaços que a esquerda não se preocupou em ocupar viraram verdadeiras fábricas de bolsonarismo.”

Os evangélicos não são imunes à hegemonia produzida pelo aparato de disseminação neoliberal. Se há um vácuo ou ausência por parte da esquerda, o capital e seus espadachins mercenários trataram de ocupá-lo. Os religiosos lêem seus textos de fé a partir do caldo sociocultural presente no senso comum. Se nós socialistas, e nossas bandeiras, estão ausentes na vida do povo trabalhador religioso, o que resta é uma gradual e crescente hegemonia conservadora, que tem agora no bolsonarismo o seu produto mais bem acabado. Em suma, se mente vazia é a oficina do diabo, os espaços que a esquerda não se preocupou em ocupar viraram verdadeiras fábricas de bolsonarismo.

Isso não significa que os evangélicos são inexoravelmente de direita ou refratários às lutas dos movimentos sociais. Em nossa recente pesquisa sobre os pentecostais no movimento de moradia em Belo Horizonte, o que salta aos olhos é justamente como esses evangélicos sem teto conseguiam articular sua fé com as ações contenciosas na luta pelo direito à cidade. No caso dos pentecostais da Ocupação Rosa Leão, participar do movimento de moradia era parte de obedecer a “Palavra de Deus” e “buscar o Reino de Deus e sua Justiça”. 

A direita não é boba

Finalmente, é preciso considerar que a direita não tem sido nada boba. Um erro crasso da esquerda é subestimar seus adversários, tratando-os como uma bando de celerados. A direita simplesmente entendeu que o uso dessa “cultura no superlativo” é uma forma de se validar no espaço público. 

Se a religião é igualmente uma cultura no superlativo, como diria Pierre Sanchis, também é uma linguagem potente que tem considerável plasticidade. Mas do que apenas isso, por outro lado, significa também que a religiosidade é um ativo político importante. Enquanto uma “esquerda weberiana” tenta higienizar do espaço público a presença da religião, o capitalismo busca incessantemente capturar as matrizes e signos de fé para fortalecer sua posição na sociedade. Embora a única divindade que o capitalismo adore seja Mammon (o deus Mercado), esse se pinta como defensora dos valores cristãos. E como um diabo que se transforma em anjo de luz para enganar o mundo, o fundamentalismo cristão (financiado pela alta burguesia) redesenhou Cristo com cores ultraliberais e imperialistas. 

Ainda nos tempos de ditadura, a classe dominante brasileira se esforçou para importar as teologias reacionárias do evangelismo dos Estados Unidos como forma de enfraquecer a teologia da libertação. O fenômeno histórico do fundamentalismo cristão estadunidense, mais recentemente exportado para cá via movimentos como L’abri e Dunamis, teve amplo investimento de multimilionários como os irmãos Lyman e Milton Stewart (ver, por exemplo, a pesquisa de Wanda Deifelt). O objetivo era claro: combater na disputa do intracampo religioso as expressões do protestantismo progressista (caso do Social Gospel) e promover o discurso de pânico anticomunista. 

“O capitalismo busca incessantemente capturar as matrizes e signos de fé para fortalecer sua posição na sociedade.”

Ao longo dos anos, os EUA não se especializaram em nos catequizar apenas com coca-cola e sanduíches, mas de suas versões capitalistas e neoliberais de Teologia. Um bom exemplo foi a exportação do fundamentalismo cristão e da Teologia da Prosperidade. Essas abordagens teológicas conservadoreas serviram para sacralizar o estilo de vida norte-americano e induzir outros povos a crer que o cristão deve ser inexoravelmente de direita.  Isso está bem indicado no Livro “Exporting the American Gospel – Global Christian Fundamentalism”, escrito por Steve Brouwer, Paul Gifford, Susan Rose, que enumeram como a exportação desses valores liberais e conservadores travestidos de religiosidade foram parte da política imperialista de dominação geopolítica em diversos países.

O legado do socialismo cristão

Como confrontar essa tática capitalista? Uma boa forma talvez seja recuperando o rico legado do socialismo cristão e radical e fortalecendo coletivos de cristãos progressistas na sua jornada de enfrentamento dentro das comunidades de fé. Frederich Engels, em seu livro As guerras camponesas na Alemanha e Ernst Bloch, autor de Thomas Muntzer, Teólogo da Revolução, resgatam o caráter revolucionário da reforma radical, mostrando como um cristianismo popular pode ser veículo para a ação coletiva das classes subalternas.

Se Weber tenta colar o capitalismo ao protestantismo, movimentos da Reforma Radical (caso de hutteristas, por exemplo) estão na genealogia do nascimento do comunismo moderno. Poderíamos recuperar também a memória da Liga dos Justos, antecessora direta da Liga dos Comunistas, para a qual Marx e Engels escrevem o manifesto de 1848, cujo lema, de evidente inspiração cristã, era “todos os seres humanos são irmãos” e que tinha no comunismo primitivo das primeiras igrejas sua inspiração política principal. Para não falar do catolicismo vermelho latino-americano, que inspirou o padre e combatente Camilo Torres, ou a teologia do presbiteriano Sérgio Arce, amigo da Revolução Cubana.

“Marx e Engels escrevem o manifesto de 1848, cujo lema, de evidente inspiração cristã, era ‘todos os seres humanos são irmãos’ e que tinha no comunismo primitivo das primeiras igrejas sua inspiração política principal.”

Ou talvez devamos fazer como Marx, que não teve dúvidas de comparar o capitalismo com os cultos idolátricos que cobram os corpos de seres humanos para satisfazer seus desejos mais mórbidos de Moloch. Para resgatar a demonologia da crítica de Marx à monstruosidade anti-humana do capital, talvez precisemos dizer aos pentecostais que o capitalismo merece sim ser chamado de “Capetalismo”.

Embora alguns analistas tentem pintar os evangélicos brasileiros como pessoas inexoravelmente de direita, é importante reconhecer o legado da Conferência do Nordeste, evento realizado em 1962 pelo setor de Responsabilidade Social da Igreja antiga da Confederação Evangélica do Brasil e cujo o tema foi “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”. Igualmente, é necessário valorizar a história de organizações como o Movimento Evangélicos Progressista e de organizações como a Rede Fale (movimento que mobiliza através de campanhas e de encontros de oração atos e manifestos em favor de justiça social), de movimentos como a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Vozes Marias (primeiro coletivo feminista evangélico), Evangelicas Pela Igualdade de Gênero (EIG) e o Movimento Negro Evangélico (MNE), além de produtores de conteúdo como a Revista Zelota

Essas iniciativas precisam ser apoiadas e fortalecidas para a disputa intracampo desse segmento religioso. Contudo, uma tarefa necessária dos crentes de esquerda deve se empenhar em sensibilizar e conscientizar os seus irmãos de fé pobres da quebrada o seu lugar como classe social oprimida pelas elites que tentam nos dividir. Para que isso aconteça, os protestantes de esquerda precisam retirar das mãos da extrema direita os significantes da fé evangélica, criando matrizes discursivas em prol da luta política emancipatória. O que isso significa? Significa que há pontos de contato entre a fé religiosa e a luta socialista. Como bem afirmava Camilo Torres: 

Os marxistas estão lutando pela nova sociedade e nós cristãos deveríamos estar lutando ao lado deles. O dever de todo cristão é ser um revolucionário. O dever de todo revolucionário é fazer revolução”. 

Mas recentemente surgiu o coletivo de Cristãos Socialistas, que conta com a presença de simpatizantes do PCB e da UP, por exemplo. É um sopro de esperança para cumprir essa tarefa necessária de disputar mentes e corações dos evangélicos. Mas quais seriam, por exemplo, os pontos de nodais entre a luta socialista e a espiritualidade evangélica? Seria possível encontrar elementos da história da tradição cristã com os valores igualitaristas da esquerda?

Em uma perspectiva socioteológica, é preciso considerar que Javé, a Divindade que emana dos textos bíblicos, é um ente espiritual que se move para libertar um povo oprimido das mãos impiedosas do Império Egípcio, por exemplo. E que Javé estabelece uma nova sociedade agropastoril baseada na ética do Jubileu, que são regras de partilha dos meios de produção que eram divididos equitativamente para todo o povo. A lógica do Jubileu é incentivar relações sociais e econômicas baseadas na fraternidade, no direito ao descanso, em ordenanças de cuidado da terra e nas políticas de proteção de grupos em situação de maior vulnerabilidade.

“A vida do Cristo é uma denúncia contra uma religiosidade que se deixou cooptar pelos poderosos e opressores.”

Uma questão essencial nessas medidas é que não há posse perpétua da terra (propriedade privada), bem como que a cada 50 anos, haveria uma reorganização da partilha dos meios de produção, o que evitaria desigualdades ao longo do tempo. Os profetas da bíblia surgem como gente do povo que questiona a não observância do Jubileu. Para esses personagens, buscar a justiça social era algo profundamente espiritual. Para o Profeta Jeremias,  o que testifica o conhecimento de Deus é defender os oprimidos. Para Isaías, o verdadeiro culto a Deus implica em promover a Justiça e libertar os necessitados de seus grilhões. Amós denunciava o acúmulo de bens dos poderosos como uma ruptura contra o próprio Deus.

Desde o início de seu ministério, Jesus reafirmava a ética social do Jubileu, o que enfureceu as lideranças religiosas e políticas de seus tempo mancomunadas com o Império de César. A vida do Cristo é uma denúncia contra uma religiosidade que se deixou cooptar pelos poderosos e opressores. Em suma, percorrer os textos da Bíblia é se encontrar com inúmeros textos igualitaristas. É de se espantar que esse mesmo livro seja hoje uma principais armas contra quem odeia a equidade social. Se os EUA foram capazes de usar os significantes da fé cristã para se capilarizar nas sociedades ao redor do globo, é fundamental que leituras e abordagens anticapitalistas cristãs sejam valorizadas como um antídoto para conter o “Evangelho do Império”.

Não significa, óbvio, que os socialistas precisam ser cristianizados. O que os socialistas com certeza precisam é ter consciência da importância do jogo que estamos inexoravelmente envolvidos, e do papel que a religiosidade popular joga nele. Não duvidem: Bolsonaro só não ganhou a eleição de 2022 ainda porque houve uma pandemia. É preciso compreender isso e jogar o jogo da hegemonia. Trazer os trabalhadores de todas as crenças, cores, gêneros e nações para o nosso lado. É comum ouvir que “evangélicos não podem ser todos iguais”, porém o correto é dizer que esses não podem ser essencializados como bons ou maus. Enquanto parte da classe trabalhadora, os evangélicos não podem ser estigmatizados, mas disputados. E tal disputa terá de mobilizar as suas demandas sociais conectadas com suas crenças. Que assim seja. Amém?

Sobre os autores

é educador popular, cientista social e teólogo. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutorando em Educação na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo, coordenador da Rede Fale e militante do PCB.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Política and Sociologia

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