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Trabalhador descansa em andaime nas alturas durante a construção do Empire State Building, em Nova York, em 1931.

Trabalhar menos e viver melhor

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Tradução
Everton Lourenço

O dinheiro e o mercado não são instrumentos neutros, como a Econofísica nos ajuda a enxergar. Uma economia verdadeiramente democrática exige que superemos as deficiências de ambos - e os tokens de trabalho podem ser uma alternativa para isso.

Costuma-se dizer que o comunismo aspira a uma sociedade sem classes, sem Estado e sem dinheiro. O primeiro slogan costuma ser compreendido; o segundo, apesar de muitas confusões, também; mas o terceiro continua gerando problemas e desentendimentos. O que significa abolir o dinheiro? Será que almejamos voltar ao escambo? A nossa proposta consiste numa “economia da dádiva”? Responderemos abaixo a essas perguntas e a outras. Em particular, veremos como os tokens de trabalho nos permitem eliminar a troca entre as pessoas como mecanismo de distribuição. [7]

É óbvio que toda sociedade precisa produzir para poder reproduzir a si mesma. Queremos comida, remédios e outros tipos de bens para que possamos ter uma vida plena e satisfatória. Para isso é necessário ampliar e replicar os instrumentos de trabalho. No modo de produção capitalista isso é realizado, mas de uma forma que não só causa injustiça e sofrimento, mas que em última instância pode levar à nossa extinção como espécie.

O modo de produção capitalista apresenta como pilar fundamental a propriedade privada dos meios de produção. Como consequência, as diferentes unidades produtivas devem ir ao mercado, tanto para comprar de outras os insumos de que necessitam, quanto para vender as mercadorias que seus trabalhadores produziram com tais insumos e instrumentos de produção. Evidentemente, o trabalhador recebe uma compensação salarial que, embora seja significativamente inferior ao valor que ele agregou, lhe permite ir ao mercado comprar bens de consumo. Assim, as esferas da produção e da circulação estão inexoravelmente interligadas.

Ainda assim, apesar desta manifesta simbiose, frequentemente a crítica ao capitalismo recai desproporcionalmente sobre a forma de propriedade tomada pelos meios de produção, e portanto deixando o processo de circulação passar incólume, colocando de lado a reflexão sobre possíveis alternativas ao dinheiro como unidade contábil. Um exemplo notório seriam os defensores do socialismo de mercado, como David Schweickart [18].

Este artigo pretende ser uma crítica à aceitação do mercado como entidade econômica neutra, apresentando uma possível alternativa ao dinheiro na forma de tokens de trabalho. Além disso, esboçamos razões porque, ao nosso ver, as críticas habitualmente dirigidas contra os tokens de trabalho são infundadas.

O mercado pelo olhar da Econofísica

Uma das críticas mais sólidas à desigualdade estrutural gerada pelo mercado, estejam concorrendo nele magnatas proeminentes ou cooperativas socialistas, é apresentada por Dragulescu e Yakovenko (2000) nos marcos da Econofísica. [17] A Econofísica é uma disciplina que se propõe a implementar conceitos próprios da Física, principalmente procedentes da Física Estatística, no estudo dos fenômenos econômicos. A utilização dessas técnicas é viável, devido ao fato de que no mercado competem de maneira descoordenada centenas de milhares de compradores e vendedores, gerando grande complexidade e tendência ao caos. Assim, torna-se possível estabelecer analogias entre as ações dos agentes econômicos e o movimento também caótico das partículas de um gás [2] [13][14][15].

O modelo de Dragulescu e Yakovenko parte de uma economia simplificada, com um número constante de pessoas e uma quantia constante de dinheiro, onde cada ator é caracterizado pela quantia de dinheiro que possui. Considerando que nosso objetivo é avaliar a tendência econômica imposta pelo mercado, assumimos que cada pessoa começa com a mesma quantidade inicial de dinheiro. Desta forma, são excluídos os efeitos que possam ser atribuídos às desigualdades de origem que poderiam mascarar a ação do mercado.

Resumidamente, a forma pela qual se propõe que esses agentes econômicos interagem é a seguinte: são escolhidos aleatoriamente dois atores (um comprador e um vendedor) e um preço p para a transação, e em seguida se reduz em p unidades o dinheiro que possui o comprador, com o vendedor recebendo essa mesma quantia. Mutatis mutandis, essa interação é análoga à de um gás ideal, cujas partículas trocam energia ao invés de dinheiro.

A Econofísica prevê que a distribuição do dinheiro será altamente desigual, com uma distribuição exponencialmente decrescente. Nesta simulação, com uma gama de valores possíveis de £ 0 a £ 100.000, podemos observar que a metade mais pobre da população acabará tendo menos de 2% de todo o dinheiro disponível na economia, enquanto cerca de 35% de todo o dinheiro acabará nas mãos do 1% mais rico.

Na prática, verifica-se que as simulações sempre convergem para uma distribuição de dinheiro tremendamente desigual, onde a maioria das pessoas acaba tendo bem pouco dinheiro e uma pequena minoria acumula o restante. Especificamente, a distribuição de dinheiro para a qual evolui o sistema é uma distribuição exponencialmente decrescente, conhecida na Física como distribuição de Boltzmann. Quando o sistema atinge a distribuição exponencial, se diz que o sistema atingiu seu Equilíbrio Estatístico [2].

Mas o que é esse Equilíbrio Estatístico? Para elucidar essa questão, comecemos relembrando o conceito de Equilíbrio Mecânico. Na Física, dizemos que há equilíbrio mecânico quando “a soma das forças e momentos sobre cada partícula do sistema é zero”. Um exemplo paradigmático disso é uma balança de pratos com pesos: uma vez alcançado o equilíbrio, a não ser que uma força externa atue sobre a balança, o sistema (e cada um de seus constituintes) permanece estático. Metaforicamente falando, a sociedade do Antigo Regime poderia assemelhar-se a um castelo de cartas em equilíbrio mecânico: uma sociedade onde encontramos estamentos bem diferenciados (nobreza, clero e Terceiro Estado), aos quais se pertencia por nascimento, e onde não era possível a mobilidade social sem provocar o colapso de todo o sistema – ou seja, sem provocar uma saída do equilíbrio, o que daria origem a outra estrutura diferente após um período de evolução.

Pelo contrário, o equilíbrio estatístico próprio do mercado é dinâmico. Observe que o equilíbrio estatístico do mercado permite que os atores do modelo mudem sua posição na estrutura social. Isso porque as regras impostas permitem que os indivíduos continuem realizando trocas livremente, variando seu poder aquisitivo. Por que falamos de equilíbrio, então? A razão é que, ainda que os elementos individuais estejam continuamente mudando de posição, a distribuição desigual de dinheiro que descrevemos é estável. Dessa maneira, a mobilidade social das partes disfarça uma dura verdade sobre o Todo: a desigualdade econômica é uma condição intrínseca do mercado. O mercado revela-se assim como um sistema de alocação extremamente flexível, para o qual as crises econômicas não são necessariamente prelúdios da sua abolição mas sim reajustes de seus componentes individuais dispensáveis ​​que, longe de comprometer a sua estrutura, criam as condições propícias a um novo crescimento. [9]

As deficiências do mercado não seriam devido ao papel coercitivo do Estado, ou a uma falha no elevador social, mas apareceriam mesmo na versão mais abstrata do mercado. Contudo, não podemos perder de vista que sua aplicação real também se sobrepõe a desigualdades de outros tipos. Por exemplo, a desigualdade evidente pela qual alguns indivíduos acabam possuindo os meios de produção enquanto outros podem apenas vender sua força de trabalho.

Sem pretender aprofundar isso neste artigo, cabe mencionar a existência de modelos mais complexos onde se diferencia o papel de capitalistas, trabalhadores e desempregados, obtendo curvas de desigualdade ligeiramente diferentes (e mais próximas das distribuições de riqueza observadas empiricamente em sociedades capitalistas), mas que ratificam nossa posição crítica em relação ao mercado [2] [8] [14].

Dito isso, acreditamos que um sistema socialista de mercado também tenderá inevitavelmente a reproduzir os problemas endêmicos do capitalismo. Apesar de ter passado a propriedade das empresas para os trabalhadores, se a alocação de recursos entre as unidades produtivas continuar sendo por meio do mercado, nada nos impede de pensar que a distribuição entre os atores econômicos (interpretados agora como cooperativas de outra natureza) deixará de seguir a necessidade capitalista de valorização. A produção no socialismo de mercado, embora cooperativa, continua a ser validada no mercado. Portanto, aquelas cooperativas que se afastarem do tempo socialmente necessário em sua produção serão deslocadas da economia, provocando os mesmos desequilíbrios do capitalismo (desemprego, desigualdades salariais, superprodução, crises recorrentes, etc.).

Agora, por prudência e realismo político, aceitamos o fato de que o socialismo do mercado pode reverter em certas vantagens para os trabalhadores em comparação com o capitalismo liberal ou, até mesmo, ser uma via de transição para formas mais eficientes de organização. Apesar disso, não podemos deixar de alertar que o mercado é um elemento difícil de ser retificado na projeção para estágios socialistas superiores. [7]

Por que os tokens de trabalho na nossa proposta?

É evidente que qualquer unidade produtiva em uma economia deve ter ao seu dispor as informações sobre os bens e as pessoas de que necessita para produzir uma quantidade desejada de produtos. O que não parece tão claro é o motivo pelo qual é necessário reduzir todos os bens reproduzíveis de uma economia a alguma unidade comum (unidade contábil universal). Em uma economia capitalista, esse papel é desempenhado pelo dinheiro. Nós aspiramos a uma sociedade capaz de exercer um controle consciente sobre a economia, ao invés do controle ser exercido pela economia sobre a sociedade por meio dos mecanismos cegos e automáticos do mercado. Consequentemente, devemos analisar as seguintes questões: a) é realmente necessário, fora de uma economia de mercado, ter uma unidade contábil universal – seja ela monetária ou não? b) Em caso afirmativo, qual deveria ser essa unidade contábil universal? Seria desejável e possível se livrar do dinheiro?

Vamos nos concentrar na primeira pergunta. Nas economias modernas, onde as diferentes unidades produtivas precisam de insumos fabricados por outras unidades e onde existe excedente suficiente para reproduzir a economia em escala ampliada, é necessário que haja 1) uma certa coordenação entre os diferentes ramos produtivos e 2) mecanismos de retroalimentação entre as diferentes unidades produtivas e o resto da sociedade. Para enxergar com mais clareza, nos fazemos o seguinte questionamento: como poderíamos comparar, de maneira objetiva, a produtividade de diferentes ramos industriais – por exemplo, uma fábrica de açúcar e uma fábrica de diamantes? O fato de que o açúcar e o diamante representam objetos heterogêneos e de que exigem como insumos bens de tipos diferentes pareceria uma questão fútil, a menos que consideremos uma “substância” comum a todos os tipos de bens reprodutíveis, por exemplo, a quantidade de petróleo direto ou indireto que cada tipo de bem necessita para ser produzido, ou as emissões acumuladas de CO2 que cada tipo de bem requer para sua produção. No primeiro caso, ao medir os custos reais de todos os bens de uma economia pelo seu consumo de petróleo, estaríamos considerando o petróleo como um bem ulterior. Assim, maximizar a produtividade seria minimizar a quantidade de petróleo por unidade do produto. No entanto, não deveríamos necessariamente excluir do plano outras restrições reais sobre a economia. No segundo caso, ao medir os custos reais de cada tipo de bem pela sua “pegada ecológica”, de maneira análoga, a produtividade seria sinônimo de redução das emissões de CO₂ por unidade do produto.

Adicionalmente, os trabalhadores, seus filhos e os aposentados devem consumir parte do produto social. Portanto, é necessário proporcionar uma “cesta de compras” a cada núcleo familiar/individual. Por essas e outras razões, é virtualmente impossível coordenar uma economia moderna sem “homogeneizar” os diferentes tipos de produtos, ou seja, sem definir seu valor em alguma unidade comum a todos eles.

Qual achamos que deveria ser essa unidade? O trabalho, medido em horas. Por falta de espaço, não poderemos argumentar por quê necessariamente essa deveria ser a unidade, mas o leitor interessado em alguns dos argumentos e questões relacionadas pode consultar um abundante material sobre o assunto [3][4][5][6][7], [13] e [16]. Aqui nos contentamos em dizer que o trabalho é um recurso finito muito valioso numa economia, cuja atribuição aos diferentes ramos e tarefas é fundamental e que, além disso, queremos minimizar – pelo tempo de trabalho ser algo indesejável para a maioria enquanto o tempo livre, ao contrário, é algo desejável para todos. Ao definir o valor de todos os bens reprodutíveis com as horas de trabalho social direto e indireto necessárias para sua produção, obtemos uma unidade contábil universal. Em Matemática para planificar uma economia [1] explicamos duas maneiras precisas de fazer isso.

Agora, o produto social passa a ser uma certa quantidade de horas de trabalho cristalizadas em um conglomerado de objetos e serviços que permitem satisfazer alguma necessidade. É óbvio que uma porção relativamente grande dos trabalhadores não pode consumir persistentemente mais horas de trabalho do que as que contribui para esse produto social e também que os trabalhadores não podem consumir todo o produto social – pois tem que haver um caixa comum para lidar com catástrofes imprevistas, expandir e manter os meios de produção, fornecer serviços públicos como educação, saúde e transporte, prover àqueles que não podem trabalhar… etc. É necessário também que haja mecanismos de retroalimentação entre a produção e o consumo. Adicionalmente, consideramos fundamental não só por ser do interesse da maioria, mas também para eliminar a fonte dos principais conflitos sociais, que o tempo de todas as pessoas seja considerado igualmente importante e que todas as pessoas com possibilidade de trabalhar contribuam para o fundo comum com a mesma quantidade de trabalho.

Tal como propunha Marx:

“A jornada social de trabalho é constituída pela soma das horas de trabalho individuais; o tempo de trabalho individual de cada produtor em separado é a parte da jornada de trabalho social que ele contribui, sua participação nela. A sociedade lhe fornece um bilhete comprovando que ele realizou tal e qual quantidade de trabalho (depois de descontar o que tiver trabalhado para o fundo comum), e com esse certificado ele retira dos depósitos sociais de meios de consumo a parte equivalente à quantidade de trabalho que tiver realizado. A mesma quantidade de trabalho que ele tiver fornecido à sociedade sob uma forma, ele recebe dela sob uma forma diferente.” [11]

E, portanto: “o certificado de trabalho representa apenas a parte individual do produtor no trabalho coletivo e seu direito individual à parte do produto coletivo destinada ao consumo” [12].

 DinheiroTokens de trabalho
AcumulaçãoAcumulável infinitamente e de maneira imperecível, exceto pela inflação.Não transferíveis, expiram e não são acumuláveis. Portanto, não circulam.
Cálculo econômicoCálculo de custos de forma indireta. Mais dinheiro implica em maior poder de decisão no mercado. Os interesses de uma minoria orientam a produção e o investimento do trabalho social.Cálculo de custos de forma direta em unidades físicas. Sistema de retroalimentação baseado em mecanismos tecnológicos e democracia direta. Uma pessoa, um voto.
EmpregoDe acordo com as necessidades do capital: otimização do lucro, ainda que isso ocasione cargas de trabalho excessivas e/ou subaproveitamento do trabalho.De acordo com a vontade individual e com as necessidades sociais. O trabalho humano é um recurso valioso, que deve ser minimizado.
ObtençãoMúltiplas origens: especulação financeira, jogos de azar, exploração, heranças, aluguel de terrenos, etc.Só podem ser obtidos por meio do trabalho. Abolição das rendas não derivadas do próprio trabalho. (Exceto para pessoas que não podem trabalhar).
Capacidade de usoA aquisição de um bem que pode ser comprado ou vendido no mercado – ou seja, potencialmente, tudo. Por exemplo: corpos e órgãos humanos, levando-se em conta legislações nacionais frouxas e/ou mercados negros.Unicamente a aquisição dos artigos que a sociedade tiver disponibilizado nos estabelecimentos e lojas públicas para consumo.

Esta proposta, consistente com a escolha da unidade contábil, resolve muitas dificuldades de uma só vez; permite ajustar os objetivos de produção em tempo real sem a necessidade de “adivinhar” os padrões de consumo de todos os indivíduos de forma exata, pois o dispêndio dos tokens de trabalho permite o conhecimento da demanda efetiva da população, e adequar o plano às mudanças de preferência que possam ocorrer. Também restringe o consumo das pessoas de maneira compatível com os objetivos democraticamente fixados, priorizando a satisfação das necessidades consideradas básicas para todos os membros da sociedade. Além do mais, é também um sistema desejável para os bens considerados luxuosos, pois quem quiser consumi-los deverá contribuir ao produto coletivo com o equivalente, em quantidade do seu próprio tempo de trabalho.

À medida em que o fundo comum for crescendo em relação ao produto social, diminuirá a importância dos tokens de trabalho na distribuição do produto coletivo. Somente com um grande fundo comum poderemos transformar o famoso slogan comunista “a cada um segundo suas necessidades” em realidade.

Objeções comuns aos tokens de trabalho

Às vezes os tokens de trabalho são criticados por meio da equiparação deles ao dinheiro, com a argumentação de que abolir este último ao mesmo tempo em que se reintroduz “pela porta dos fundos” os tokens de trabalho seria uma simples mudança de nome. Essa crítica tem sido repetida algumas vezes tanto pela esquerda quanto pela direita, com esta última aproveitando-se dessa crítica para concluir que o dinheiro seria insubstituível.

A crítica liberal sustenta que não há alternativa ao capitalismo, enquanto que a crítica de alguns comunistas se baseia em equiparar o comunismo à implantação mágica do Céu na Terra, de maneira indescritível e inimaginável. Consequentemente, para estes últimos seria fútil tratar de descrever o funcionamento de um modo de produção capaz de substituir os mecanismos do mercado e onde a sociedade controle o metabolismo social. Ambas as críticas coincidem em aceitar que não há proposta inteligível que possa superar o atual estado de coisas.

Para nós, pelo contrário, os tokens de trabalho fazem parte de uma proposta mais ampla, que tenta viabilizar a superação do capitalismo. Para contestar adequadamente às críticas liberais, devem ser demonstradas a viabilidade e superioridade do nosso modelo. Já para responder aos segundos devemos mostrar, adicionalmente, que nosso sistema elimina de fato a exploração do homem pelo homem, a produção de mercadorias e, além disso, é capaz de tornar realidade o slogan “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Tal réplica seria muito mais ambiciosa do que o que pretende este artigo. Nos contentamos, no que resta, em enfrentar a crítica de que os tokens de trabalho seriam um equivalente universal que funcionaria como compensação salarial.

Este ceticismo se baseia no fato do trabalhador “receber” alguns tickets (tokens de trabalho) que trocaria por certos bens na loja pública, qualidade que os torna superficialmente e supostamente semelhantes a um salário. Os certificados de trabalho seriam, portanto, um simples “dinheiro laboral” que seria cobrado pelo trabalho realizado em cada produto.

Vamos começar desmentindo que os tokens de trabalho sejam um equivalente universal. Os tokens de trabalho, ao contrário do “dinheiro-laboral” proposto por Proudhon, pressupõem que todos os meios de produção pertencem à sociedade como um todo – não existe propriedade privada dos meios de produção. Em particular, não há sujeitos independentes que possam trocar mercadorias entre si ou comprar força de trabalho – a capacidade de trabalhar. Como comentamos anteriormente, os certificados de trabalho não podem circular, estão associados a pessoas específicas, somente são obtidos por meio do trabalho e são recebidos na proporção das horas de trabalho contribuídas para o produto social (exceto deduções para o fundo comum). Depois de adquirir bens de consumo com um “trabalho cristalizado” equivalente ao trabalho contribuído, os tokens de trabalho são “cancelados”. Assim, os tokens de trabalho funcionariam de forma semelhante a uma passagem aérea: uma atribuição de assentos a pessoas com nomes e sobrenomes para uma determinada viagem concreta. Portanto, os certificados de trabalho poderiam adquirir apenas bens de consumo – e não qualquer bem de consumo, mas apenas aqueles que o plano social se compromete a produzir e disponibilizar aos cidadãos via certificados de trabalho.

Agora prosseguimos para desmentir que os tokens de trabalho sejam uma compensação salarial. Para isso, é preciso em primeiro lugar compreender o que é uma compensação salarial. Por mais que os liberais argumentem pelo contrário, um salário não é o pagamento pelo trabalho ou pelo serviço realizado. É a remuneração pelo aluguel da capacidade de trabalho por um determinado número de horas. Os salários são, portanto, uma cobrança pela venda de uma mercadoria especial, a força de trabalho e, consequentemente, estão sujeitos às leis da oferta e da demanda. Em particular, duas pessoas podem (e isso acontece sistematicamente) receber salários muito diferentes pelo mesmo número de horas de trabalho, inclusive quando possuem qualificações semelhantes e ocupações no mesmo setor. Além disso, quando existem salários e certas condições tecnológicas determinadas, o comprador de força de trabalho consegue obter mais dinheiro do que tiver gasto em insumos, instrumentos e força de trabalho. Assim, ele obtém um lucro que lhe permite repetir o processo, inclusive de forma ampliada e/ou consumir mercadorias. Com a nossa proposta, pelo contrário, todos os membros da sociedade receberiam o mesmo número de “tickets” pelo mesmo número de horas de trabalho e obteriam de volta, em uma forma diferente, aquilo que tiverem contribuído à sociedade, exceto aquilo que se destina ao fundo comum. Assim, os trabalhadores em seu conjunto adquirem todos os bens de consumo que tiverem produzido, exceto os destinados aos doentes, crianças e aposentados.

Na nossa proposta a distribuição da riqueza não seria, portanto, uma distribuição de Boltzmann – como comentamos anteriormente, a distribuição da riqueza em uma sociedade de mercado sem a produção de novas mercadorias. Haveria, contudo, uma certa desigualdade (mesmo que decrescente), derivada de diferentes necessidades objetivas (que deveriam ser corrigidas pelo uso do fundo comum) e da preferência por trabalhar mais para poder consumir mais.

É fundamental garantir que o planejamento da economia seja democrático e que nosso trabalho seja canalizado de forma racional e consciente, decidindo coletivamente no quê ele será empregado e em quais proporções – em outras palavras, que o trabalho seja diretamente social. Para isso, são cruciais as propostas de participação democrática no cibercomunismo, como as de Nicolas D. Villareal. [8] Quando a sociedade tomar as rédeas do seu destino e a pluralidade de vozes dos seus componentes puder falar, dialogar e decidir como um todo – seja com tokens de trabalho ou sem eles, a exploração do homem pelo homem terá sido abolida.


Notas

[1] Cibcom. Matemáticas para planificar una economía (2022).

[2] Cottrell, Allin F. ; Cockshott, Paul ; Michaelson, Gregory John ; Wright, Ian P. & Yakovenko, Victor. Classical Econophysics (2009). Routledge.

[3] Cottrell, Allin F. ; Cockshott, Paul. Why Labour Time Should Be the Basis of Economic Calculation (2006).

[4] Cottrell, Allin F. ; Cockshott, Paul. Labour value and socialist economic calculation (1989).

[5] Cottrell, Allin F. ; Cockshott, Paul. Economic Planning Computers and Labour values (1999).

[6] Cockshott, P. ;  Renaud, K. Humans, robots and values. Technology in Society, 45, pp. 19-28 (2016).

[7]  Cockshott, P ; Zachariah, David. Classical labour values-properties of economic reproduction (2018).

[8] Nicolas D. Villareal. The Social Architecture Model, now with fixed capital: my research in agent based models and classical econophysics (2022).

[9] Nieto, Maxi ; Cockshott, Paul. (2017). Ciber-comunismo. Planificación económica, computadoras y democracia.

[10] Martínez Marzoa, Felipe (1983), La filosofía de El capital, Abada.

[11] Marx, Karl. Crítica del Programa de Gotha (1875).

[12] Marx, Karl. El Capital I (1867).

[13] Farjoun, Emmanuel D. ; Machover, Moshé ; Zachariah, David. How Labor Powers the Global Economy (2022). Springer.

[14] Wright, I.: The social architecture of capitalism (2005). Physica A 346, 589-620. Physica A: Statistical Mechanics and its Applications. 346. 589-620. 10.1016/j.physa.2004.08.006.

[15] Wright, Ian P., Implicit Microfoundations for Macroeconomics (2008). Economics Discussion Paper No. 2008-41.

[16] Wright, Ian P., Why Machines Don’t Create Value (2021). Cosmonaut.

[17] Dragulescu, A.; Yakovenko, V. Statistical mechanics of money. Eur. Phys. J. B 17, 723–729 (2000).

[18] Schweickart, David ; Ollman, Bertell ; Ticktin, Hillel & Lawler, James M. (1998). Market Socialism: The Debate Among Socialists. New York, NY, USA: Routledge.

Sobre os autores

CibCom

é um grupo de pesquisa interdisciplinar dedicado a explorar as possibilidades da planificação socialista da economia nas condições tecnológicas atuais. Seu objetivo é estabelecer os fundamentos institucionais, econômicos e computacionales necessários para construir un modelo de economia socialista democraticamente planificada, viável e eficiente, inspirado nas ideas de Marx.

Cierre

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Published in Análise, Economia, Tecnologia and Trabalho

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