Ao contrário do que frequentemente se profere, futebol e política entrelaçam seus caminhos na sociedade brasileira há tempos. Enquanto componentes fundamentais da sociabilidade e da cultura coletiva de diferentes segmentos da população, não haveria nenhuma razão para estranharmos estes cruzamentos. Desde que o esporte se consolidou como um amplo campo de interações, anseios e empenhos coletivos, constituindo-se a partir de práticas associativas, sua politização se fez inevitável.
Durante todo o século XX, a expansão do futebol brasileiro se deu em permanente intersecção com os domínios expressamente políticos de nossa sociedade. Aspectos deste cruzamento se fazem presentes nas trajetórias dos diversos clubes, ainda que a ênfase de suas narrativas históricas oficiais procure, muitas vezes, evitá-los. Esta também é, afinal, uma escolha de teor político, que no âmbito futebolístico frequentemente opta por desviar dos dissensos para consolidar unidades identitárias: se na arquibancada as diferenças e suas tensões são sobrepostas pelo referencial comum da torcida pelo time de preferência, muitas vezes acredita-se justamente que o ideal seja não tumultuar a pretensa harmonia deste espaço uno com as divergências que habitam o domínio espinhoso das discussões políticas.
No entanto, diante da escalada de retóricas e atos antidemocráticos nos últimos anos – protagonizados pelo bolsonarismo em suas formas institucionais (ocupando o poder) e militantes (ocupando o espaço público) –, o pretenso distanciamento entre as esferas futebolística e política vem sendo abertamente contestado (e progressivamente dissolvido) pela multiplicação de iniciativas torcedoras de confrontamento a imaginários e práticas de teor golpista.
“A partir das chamadas Jornadas de Junho de 2013 vemos a proliferação de coletivos formados por torcedores antifascistas.”
Nos últimos anos, as atividades realizadas por coletivos de torcedores e torcedoras antifascistas, a presença das cores e símbolos de diversos clubes em manifestações do campo progressista, e o protagonismo das torcidas organizadas em eventos atravessados por significados políticos (como a dissolução de bloqueios golpistas realizados em rodovias), ganharam a atenção de analistas políticos até então desinteressados por futebol, ao mesmo tempo em que estimularam discussões entre torcedores sobre as pertinências possíveis de sua politização.
O surgimento dos coletivos antifascistas
Se a luta política das torcidas se tornou pauta quente no momento, entretanto, cabe pontuar que o surgimento deste campo explicitamente politizado de agrupações torcedoras é anterior aos acontecimentos mais recentes: conforme já mapeado por pesquisadores como o sociólogo Vitor Gomes, pelo menos desde 2013 vislumbra-se a proliferação de coletivos auto intitulados “antifascistas”, formados por torcedores de diversos clubes em várias partes do país. O surgimento de alguns destes coletivos remete, inclusive, a momentos anteriores, como a torcida Ultras Resistência Coral, do Ferroviário Atlético Clube, criada em 2004 em Fortaleza e considerada a primeira torcida antifascista do Brasil.
A multiplicação do fenômeno na década de 2010, em particular, pode ser associada a transformações significativas ocorridas na esfera das formas de organização e militância política: especialmente a partir das chamadas Jornadas de Junho de 2013 vemos a proliferação de coletivos formados por torcedores antifascistas, que inclusive se organizavam e atuavam utilizando as ferramentas digitais (especialmente redes sociais) de forma similar àquela dos militantes envolvidos na organização dos protestos contra o aumento das tarifas de transporte público.
“Simultaneamente, o surgimento em ampla escala destes coletivos não pode ser dissociada pela agressiva investida de modelos de gestão neoliberal expressados no processo de ‘arenização’ dos estádios.”
Conforme assinalado por observadores políticos da época, o uso de redes como Facebook e Twitter vinha se deslocando de um sentido meramente informativo ou descritivo dos eventos políticos ocorridos fora do ambiente virtual, e progressivamente se consolidando enquanto plataformas de debate e construção política. Ao mesmo tempo, o uso dessas tecnologias enquanto espaços de difusão e comunicação ganhava força com a cobertura alternativa das manifestações, cuja narrativa dos acontecimentos diferia radicalmente das mídias tradicionais e alimentava-se de farta documentação audiovisual produzida pelos próprios participantes dos atos. Esta forma de protagonismo político, aliado aos demais elementos inaugurados pela politização dos espaços virtuais, se manifestaria com intensidade na atuação dos primeiros coletivos torcedores antifascistas surgidos neste contexto.
Simultaneamente, o surgimento em ampla escala destes coletivos não pode ser dissociada, também, das condições que se expressavam no campo específico do futebol, então atravessado pela agressiva investida de modelos de gestão neoliberal expressados no processo de “arenização” dos estádios brasileiros (ocorrida, sobretudo, na esteira dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014), na elitização promovida pelos significativos aumentos nos preços de ingressos e nas propostas de transformação dos clubes em “Sociedades Anônimas do Futebol” sob o discurso da eficiência e profissionalismo empresarial.
Não à toa, a máxima traduzida pela atitude “Contra o futebol moderno” – adotada desde fins da década de 90 pelas agrupações torcedoras ultras na Europa – também passava a ser incorporada naquele contexto pela discursividade das torcidas organizadas, cujas ações contra as diversas expressões de um “futebol negócio” se multiplicavam juntando-se às demais formas de protesto já tradicionalmente voltadas aos dirigentes dos clubes. No âmbito dos coletivos antifascistas que surgiam, a luta contra a investida neoliberal se apresentava nos termos próprios de uma disputa classista do futebol, procurando realizar ações de agitação e propaganda articuladas à incidência direta dessa investida no cotidiano torcedor, progressivamente atravessado por exclusões.
Anti-bolsonarismo
Em meu livro No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Autonomia Literária, 2022), discuto de forma mais aprofundada este contexto de formação dos coletivos e torcidas antifascistas, assim como sua multiplicação vinculada ao campo progressista no cenário futebolístico brasileiro. Embora destaque especificamente a trajetória dos coletivos existentes entre torcedores e torcedoras palmeirenses, em minha abordagem procuro demonstrar a relevância do trabalho político realizado por estes coletivos (junto às torcidas de seus clubes) ao insistir na urgência da discussão sobre questões como racismo, sexismo, LGBTfobia e outras formas diversas de discriminação no futebol, bem como a elitização do esporte desde uma perspectiva classista. A essa insistência devemos o fato de que, hoje, parte desses temas atravessem as falas de comentaristas esportivos (ainda que com notável superficialidade), e tornem-se objeto de alguma atenção das diversas esferas institucionais do circuito futebolístico, especialmente na realização de ações e campanhas pelos clubes e entidades.
Ao longo dos anos transcorridos desde o surgimento dos primeiros coletivos, percebe-se que sua existência conjunta se caracterizou por certa irregularidade, visto que existiam agrupações mais mobilizadas que outras e algumas particularmente dedicadas a ações de rua, ao passo que outras se empenhavam quase exclusivamente em uma atuação nas redes sociais. O acúmulo de experiência política ao longo de seus anos de existência, entretanto, resultou em um inventário significativo de ações realizadas por estes coletivos, tanto no âmbito de sua organização e articulação – visível no esforço associativo de iniciativas como a Frente Nacional Futebol Popular (FNFP), as Torcidas Antifascistas Unidas (TAU) e a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) – quanto em sua atuação junto a outras organizações, como movimentos de moradia, partidos políticos, coletivos antifascistas e outras entidades de luta situadas politicamente à esquerda.
“Em 2018, por ocasião do pleito presidencial que elegeria Bolsonaro como presidente da República, verificou-se uma proliferação de coletivos antifascistas de torcida.”
Em 2018, por ocasião do pleito presidencial que elegeria Bolsonaro como presidente da República, verificou-se uma proliferação de coletivos antifascistas de torcida, tanto nas redes sociais quanto nas manifestações que tomaram as ruas em posicionamento contrário à possível eleição de um candidato com pautas extremamente conservadoras. Ainda que parte destes coletivos surgidos na ocasião não tenha mantido uma regularidade em suas atividades políticas após o contexto eleitoral, sua proliferação naquele momento reforçou a intensidade das trocas entre práticas torcedoras e o domínio da política.
No mesmo contexto, torcidas organizadas e movimentos formados por torcedores promoveram ações e campanhas relevantes em oposição à candidatura bolsonarista: são exemplos o texto “Gavião não vota em Bolsonaro”, assinado por Rodrigo Gonzalez Tapia (o “Digão”, então presidente da torcida organizada corintiana Gaviões da Fiel); o manifesto “Palmeirenses contra o fascismo”, assinado por coletivos como Palmeiras Antifascista, Porcomunas e Palmeiras Livre, além de nomes como os dos músicos Simoninha, Maria Gadú e João Gordo, o ator Marco Ricca, o neurocientista Miguel Nicolelis, e conselheiros da agremiação; e notas desaconselhando o voto de seus associados em Bolsonaro, publicadas por torcidas organizadas como Os Imbatíveis (do Vitória), a Torcida Jovem do Sport e a Torcida Jovem do Santos.
Após a eleição de Bolsonaro e ao longo de seu governo, o crescimento de uma discursividade antidemocrática cada vez mais organizada – na forma de uma militância disposta a ocupar as ruas com símbolos tradicionais da extrema direita – deflagrou a urgência de uma disputa em várias frentes, incluindo o espaço público. Se o potencial de mobilização em torno de pautas conservadoras já se expressara anteriormente, com as manifestações pelo golpe do impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e 2016 abrigando uma quantidade alarmante de símbolos e palavras de ordem associadas à extrema direita, um quadro evidente destas forças políticas se explicitou durante a gestão bolsonarista no estado de mobilização permanente de sua militância e base de apoio mais orgânica.
Um momento particularmente crítico da ascensão destas mobilizações se expressou entre abril e maio de 2020, durante o contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil: diante de um cenário de indecisão das forças de esquerda a respeito das formas de agir politicamente no contexto pandêmico, a realização contínua de atos pela militância bolsonarista, carregados de teor antidemocrático (e, na ocasião, negacionismo científico perante a pandemia), foi confrontada com firmeza por mobilizações protagonizadas por torcedores organizados de diversos clubes que saíram às ruas.
A primeira destas manifestações, organizada em São Paulo no dia 9 de maio por torcedores corintianos que se reuniram portando faixas em defesa da democracia, intimidou bolsonaristas que vinham se agrupando com recorrência na Avenida Paulista. Nos finais de semana seguintes, novas mobilizações ganharam força, inclusive em outras cidades: em Porto Alegre, componentes dos coletivos Inter Antifascista e Grêmio Antifascista marcharam lado a lado, assim como em Belo Horizonte, onde integrantes da Cruzeiro Antifa caminharam junto à torcida organizada antifascista Resistência Alvinegra, do Atlético Mineiro.
Em São Paulo, manifestações cada vez mais numerosas e incisivas contaram com a participação de torcedores organizados do Palmeiras e Corinthians (clubes caracterizados por acirrada rivalidade) que, em blocos separados, protagonizaram conjuntamente a ocupação das ruas em defesa da democracia. Entre os membros das organizadas palmeirenses se deu a criação do Movimento Palestra Sinistro, cujo nome procurava referenciar tanto o seu posicionamento político (a palavra “sinistra” significa “esquerda” em italiano) quanto sua disposição ao enfrentamento direto contra as movimentações neofascistas e de extrema direita que vinham ocupando as ruas. Embora os integrantes de coletivos políticos palmeirenses já viessem participando dos atos em defesa da democracia realizados em maio, foi no dia 14 de junho que o Movimento Palestra Sinistro saiu às ruas de forma unificada, passando a protagonizar, desde então, a composição dos blocos de torcedores palmeirenses presentes em manifestações contra o governo Bolsonaro.
“A partir dessas manifestações, ocorridas em momento crítico da pandemia e motivadas pela falta de ação das forças políticas de oposição tradicionais, a entrada em cena das torcidas se consolidou.”
Entre as primeiras manifestações protagonizadas por torcedores corintianos em meados de maio e o início do mês de junho, coordenou-se a criação do movimento “Somos Democracia”, que passou a articular a organização de manifestações cada vez mais amplas junto a outros movimentos sociais e organizações de esquerda – como o movimento negro, à época mobilizado pela urgência da pauta antirracista deflagrada pelo assassinato de George Floyd por forças policiais nos Estados Unidos.
Apresentando-se publicamente como um movimento composto por integrantes das diversas torcidas organizadas, o Somos Democracia contou inicialmente com o numeroso contingente de membros das organizadas corintianas, especialmente à medida em que nasceu como um desdobramento de suas mobilizações iniciais, tendo como um de seus principais coordenadores Danilo Pássaro, membro dos Gaviões da Fiel. Atuando em proximidade à Anatorg na construção de seus atos, o Somos Democracia procurou expandir sua atuação para além da capital paulista, estimulando a realização de manifestações em outros estados e organizando um ato em Brasília em junho.
Reassumindo a linha de frente contra os golpistas
A partir dessas manifestações, ocorridas em momento crítico da pandemia e motivadas pela falta de ação das forças políticas de oposição tradicionais, a entrada em cena das torcidas e coletivos políticos enquanto agentes ativos na disputa política das ruas se consolidou: durante os anos de 2021 e 2022, a presença de blocos de torcedores ostentando faixas e bandeiras carregadas de símbolos referentes a seu posicionamento progressista, junto a outros componentes estéticos da cultura de arquibancada – sinalizadores, rojões, cânticos –, continuou a protagonizar a composição de manifestações convocadas contra o governo Bolsonaro e em defesa da democracia brasileira.
Simultaneamente, os coletivos e movimentos de torcedores também seguiram realizando ações políticas voltadas a seu próprio campo, concebendo a politização do torcedor comum e organizado como uma tarefa fundamental naquele contexto: em última instância, não se tratava meramente de instrumentalizar o futebol no amplo campo das lutas democráticas, mas de enredar genuinamente os domínios destes campos.
“A “tropa dos fura bloqueio”, como se identificaram os torcedores da Galoucura (organizada do Atlético Mineiro) ao inaugurar a dissolução dos fechamentos de estradas, cresceu e se espalhou.”
Após a realização do pleito presidencial em outubro de 2022 e a apertada vitória conquistada por Lula, novas ações ganharam a atenção da opinião pública na imprensa e nas redes sociais, especialmente a partir do momento em que uma disposição mais radicalizada de militantes de extrema direita passou a realizar bloqueios em rodovias protestando contra o resultado eleitoral. Diante de tal cenário, caravanas de torcidas organizadas viajando para acompanhar suas equipes em jogos fora de casa – prática comum na cultura torcedora – passaram a desfazer os bloqueios, assumindo novamente a linha de frente do confronto direto às manifestações golpistas.
A “tropa dos fura bloqueio”, como se identificaram os torcedores da Galoucura (organizada do Atlético Mineiro) ao inaugurar a dissolução dos fechamentos de estradas, cresceu e se espalhou com energia entre as caravanas de outras torcidas organizadas, estimulando também a realização de ações similares por outros movimentos e organizações – como a Ação Antifascista São Paulo, que desmontou um bloqueio que ocorria na Marginal Tietê, em São Paulo, junto a integrantes de torcidas e outros coletivos antifascistas.
De tal modo, se as torcidas mais uma vez estiveram nas ruas no dia 9 de janeiro, em resposta à mobilização golpista ocorrida em Brasília no dia anterior, sua presença é expressão de um largo processo de politização dos ambientes futebolísticos e torcedores. Abraçar abertamente a junção de seus domínios com os debates políticos só tem a enriquecer as práticas torcedoras, hoje capazes de promover algumas das mais significativas mobilizações sociais em nosso país. Ao mesmo tempo, o campo tradicional da militância progressista também tem muito a ganhar com as práticas e saberes próprios da cultura torcedora, na elaboração de formas combativas, autônomas e criativas de consolidar urgentes modos de existência antifascistas.
Sobre os autores
é historiador, professor e torcedor palmeirense. Mestre em História Social, é autor do livro No gramado em que a luta o aguarda: antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (Autonomia Literária, 2022).