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Dado que os aplicativos de entrega estão mudando a economia dos restaurantes, há um impulso crescente para criar “dark kitchens”: lugares para preparar comida para entrega que não oferecem opção de assento ou mesmo para os clientes entrarem e fazerem um pedido. (Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Gigantes da tecnologia estão construindo uma distopia para trabalhadores desesperados

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Tradução
Sofia Schurig

Empresas de tecnologia como Amazon, Fast Food e Uber estão criando uma sociedade dividida entre os servidos e seus servidores, onde o “atrito” da interação pessoal é eliminado. Esse atrito é o material da conexão social - e um mundo sem ele é um pesadelo ainda maior.

Extraído do novo livro de Paris Marx, Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong About the Future of Transportation (Verso, 2022). Entrevistamos o autor recentemente para falar de seu livro, podcast e da distopia criada pelas gigantes da tecnologia.


Em 2015, cinco anos antes dos lockdowns da COVID-19 forçarem as pessoas a ficarem em casa o máximo possível, a jornalista Lauren Smiley já escrevia sobre como uma nova onda de empresas estava criando uma “economia sufocante”.

Esse isolamento não envolvia pessoas involuntariamente presas dentro de suas casas ou se protegendo de uma crise sanitária sem precedentes; eram trabalhadores da indústria de tecnologia que por passarem tanto tempo trabalhando, sentiam terem pouco tempo para qualquer coisa.

Ao invés de encerrar esse ciclo de trabalho e encontrar um equilíbrio mais saudável entre trabalho e vida pessoal, eles começaram a usar serviços sob demanda para quase tudo. Suas refeições eram entregues para que não tivessem que cozinhar para eles mesmos.

Eles conseguiam que as pessoas fossem buscar suas compras no mercado, e às vezes até mesmo estocar a dispensa. Eles contavam com a Amazon e uma seleção de aplicativos, em vez de correrem para fazerem suas tarefas domésticas. A maioria desses serviços contratados veio da mão de obra de pessoas na indústria de tecnologia, aproveitando uma força de trabalho cada vez mais precária.

Mas os capitalistas e investidores de risco que financiam empresas de serviços terceirizados nunca se contentariam em servir apenas esse nicho de mercado: as empresas também tinham que lutar pelo monopólio, e alcançar um público muito mais amplo.

As cinco gigantes de tecnologia dos EUA — Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft — obtiveram uma receita combinada de US$1,2 trilhão no primeiro ano de pandemia — 25% maior do que no ano anterior. A pandemia também pressionou muitas pessoas a experimentar serviços sob demanda, tornando-se tornar mais dependentes da Amazon. Ao observarmos o período pandêmico, provavelmente veremos a pandemia como um momento chave para acelerar a mudança em direção a uma economia por demanda: uma economia que terá consequências sobre como vivemos, como trabalhamos e como nossas comunidades funcionam.

O nascimento da economia por demanda

A economia por demanda se tornou possível graças à convergência de novas tecnologias e às consequências da crise financeira de 2007 e 2008. Em 2002, a Amazon criou a Amazon Web Services, uma plataforma de computação em nuvem para fornecer acesso barato por demanda a recursos de servidores, tornando muito mais fácil para pessoas e empresas lançar novos serviços online.

No final da década, outras empresas como Google e Microsoft estavam lançando suas próprias soluções de nuvem, mudando drasticamente a maneira como as pessoas interagiam com a Internet e os serviços construídos a partir dela.

Em 2007, meses antes da crise econômica mundial, a Apple lançou o iPhone. O dispositivo tirou uma internet mais funcional da mesa e a colocou na palma das mãos das pessoas. Inicialmente, os desenvolvedores foram constrangidos pelo que usuários podiam fazer com o iPhone, até a Apple lançar a sua loja de aplicativos no ano seguinte.

Isso, assim como os países ocidentais estavam saindo da recessão e procurando novas maneiras de impulsionar o crescimento econômico, desencadeou um frenesi para criar empresas que apostassem suas reivindicações na economia de aplicativos em rápido crescimento.

A chamada economia compartilhada surgiu a partir desse momento; beneficiou-se imensamente não apenas das novas tecnologias, mas de outros fatores criados pelas condições pós-recessão. As empresas recém-formadas tiveram acesso muito mais fácil ao capital de investimento devido às baixas taxas de juros, o que criou a possibilidade de não perder dinheiro enquanto subvalorizavam seus serviços em busca de monopólio de mercado.

Enquanto os fundadores podiam obter financiamento com relativa facilidade, e os trabalhadores da tecnologia estavam em alta demanda, a maioria dos trabalhadores havia perdido na recessão. As empresas que se aglomeravam na economia solidária criaram uma mensagem dirigida a essas pessoas: elas poderiam ganhar a vida mantendo o controle sobre suas horas de trabalho.

A empresa que definiu esse novo espaço “flexível” foi a Uber. Ela começou como um meio de contratar um motorista particular em 2009, mas rapidamente se movimentou para assumir a indústria de táxi, deixando praticamente qualquer um se inscrever para se tornar um motorista — ao mesmo tempo, evadia os regulamentos que se aplicavam à indústria.

Essas empresas se cercaram de linguagem sobre compartilhamento e comunidade, mas a realidade era que eram empresas como qualquer outra, embora com uma importante exceção: tinham a liberdade de queimar dinheiro durante anos, desde que pudessem mostrar estarem trazendo mais clientes.

Em busca desse crescimento e criação de monopólio, eles se aproveitavam de qualquer um — tanto dos trabalhadores que prestavam o serviço, quanto das outras empresas em que dependiam.

Exploração disfarçada de conveniência

Os serviços que fortificariam a economia por demanda pareciam ótimos do lado do consumidor: eram relativamente acessíveis, incrivelmente convenientes, e podiam ser acessados diretamente de seu telefone. Mas através de seu marketing e design, eles também abstraíam como o serviço era oferecido e o que isso significava para os trabalhadores e para a comunidade em geral.

Logo, a economia por demanda se desenvolveu muito além dos serviços baseados em aplicativos. A Amazon se tornou uma parte chave, oferecendo entrega rápida para os membros Prime enquanto construía sua própria rede de entrega. Mas sua infra-estrutura depende da exploração dos trabalhadores.

Funcionários em armazéns da Amazon nos Estados Unidos sofrem ferimentos graves a uma taxa quase o dobro da média da indústria, enquanto seu salário é muito menor do que os concorrentes oferecem. Há reclamações sobre a impossibilidade de fazer intervalos para banheiros: os trabalhadores de entrega da empresa relataram ter que mijar em garrafas e até mesmo defecar em sacos, porque os objetivos de entrega são tão altos. Isso é apenas um custo de conveniência dos usuários.

Serviços de delivery de comida como Uber Eats e Deliveroo (um aplicativo popular europeu) dependem não apenas da mão de obra má-remunerada de trabalhadores, mas também de restaurantes para preparar os alimentos que eles entregam. O resultado: à medida que mais clientes se voltaram para serviços baseados em aplicativos, especialmente durante a pandemia, os restaurantes tiveram que oferecer seus cardápios online.

No entanto, como os serviços de entrega ganharam mais clientes, eles também ganharam mais poder para extrair taxas de entrega mais altas, às vezes até 40% do custo total. Com o aumento das taxas, muitos restaurantes tiveram que aumentar seus preços ou fechar totalmente.

Embora a economia por demanda tenha sido vendida ao público como servindo o bem comum, esse nunca foi realmente o caso. Os serviços terceirizados foram projetados para atender às necessidades de profissionais com excesso de trabalho, e assim sempre serviram a um grupo de pessoas desproporcionalmente abastado.

Nisso, essas empresas se aproveitam do trabalho de trabalhadores precários com pouco controle sobre seu trabalho, eram pagos muito mal e eram geralmente negados os direitos e benefícios da condição oficial de funcionário.

Em 2015, Smiley também viu isso. “No novo mundo de tudo sob demanda”, observou a jornalista, “ou você é mimado, realeza isolada — ou você é um servo do século XXI”. Os ricos sempre tiveram uma série de funcionários para fazer as tarefas que não queriam fazer, mas os serviços on-demand prometeram permitir que um grupo um pouco maior de pessoas abastadas também pudesse cultivar mais facilmente suas tarefas, tirando vantagem de uma classe crescente de trabalhadores em dificuldades.

Mas ao longo desse processo, as empresas de tecnologia também começaram a transformar o mundo ao nosso redor.

Removendo o “atrito” da interação

Durante os estágios iniciais da pandemia, muitas pessoas se “isolaram”, pois foram instruídas a ficar em casa para minimizar a propagação da COVID-19. Mas nem todos tinham esse luxo. Saúde, transporte e trabalhadores de supermercados eram reconhecidos como essenciais, mas enquanto os trabalhadores de entregas cumpriam uma função necessária, eles nem sempre obtinham o mesmo reconhecimento.

Como muitos perderam seus empregos quando a economia desacelerou, mais pessoas inundaram os aplicativos em busca do dinheiro que precisavam para manter um teto sobre suas cabeças e alimentos na mesa. A dinâmica sobre a qual Smiley escrevia em 2015 foi ainda mais cimentada, e os serviços por demanda que permitiam isso foram ainda mais entrincheirados em nossas vidas.

Nos primeiros três meses de 2021, as vendas da Amazon haviam crescido 44% em comparação com o mesmo período em 2020, pois as pessoas se voltaram para as compras online em vez de irem às lojas locais, onde poderiam arriscar pegar COVID. Mas mesmo quando essa ameaça se dissipou, mais pessoas se acostumaram a fazer compras online e provavelmente continuarão fazendo isso no futuro.

O caos da cadeia de suprimentos que impulsiona a inflação em nossa economia hoje está intimamente ligado ao processo de reordenamento da forma como os bens e serviços são fornecidos. E só agora começou.

Após anos de testes de compras sem caixa nas lojas Amazon Go e Fresh, a empresa também começou a implantar seu sistema “Just Walk Out” em algumas lojas Whole Foods nos Estados Unidos. O objetivo é substituir o caixa humano ou autocheckout por um sistema de vigilância que rastreia cada item que você pega e, em seguida, cobra na sua conta da Amazon quando você sai da loja.

Mais uma vez, isto pode parecer atraente e conveniente, se você optar por ignorar a variedade de câmeras que rastreiam tudo o que você faz na loja e a capacidade da Amazon de manter o controle de suas compras. Mas também é excludente.

Para conseguir usar a tecnologia, é preciso um smartphone com conexão à Internet e uma conta Amazon com um método de pagamento vinculado — geralmente um cartão de crédito. Quando a empresa abriu uma de suas lojas autônomas no oeste de Londres, em março de 2021, o Independent observou um homem idoso tentando entrar, mas após ser informado dos passos necessários, ele respondeu: “Oh f***-se isso”.

O desejo de eliminar a interação humana — considerada uma forma de “atrito” entre humanos inaceitável pelas Big Techs — está no centro de muitas dessas inovações, mesmo quando os seres humanos ainda estão trabalhando nos bastidores para estocar prateleiras, atender pedidos online, ou entregar alimentos.

Durante a pandemia, muitas empresas até introduziram a entrega sem contato para que os clientes evitassem a interação com o funcionário humano. Dado que aplicativos de entrega estão mudando toda a dinâmica e economia dos restaurantes, há um impulso crescente para criar “cozinhas escuras” também: lugares para preparar alimentos para entrega que não oferecem opção para assentos ou mesmo para os clientes entrarem e fazerem um pedido.

Essas cozinhas são puramente projetadas para servir a aplicativos de entrega e apresentam o potencial de garantir que as pessoas passem menos tempo comendo fora de casa, em favor de fazer um pedido e comerem nas suas casas.

É altamente provável que este processo acabará levando muitas pessoas a abandonarem os locais das lojas, transformando ainda mais nossas ruas altas e nossa conexão com os lugares que produzem nossos alimentos.

Quem decide o futuro?

Pessoas a direita do espectro político frequentemente criticam o investimento público como desperdício e corrupto, mas a realidade é que a retirada do Estado não resultou em algum mercado “livre” idílico — apenas deixou pessoas ricas, poderosas e, em muitos casos, irresponsáveis encarregadas de moldar a economia.

A economia por demanda representa um esforço conjunto para refazer aspectos importantes de como vivemos, de modo que eles se alinhem com as ideias dos agentes de poder da indústria tecnológica — independentemente de serem economicamente racionais ou socialmente justos.

Enquanto isso, esses agentes e empresas possuem a feliz coincidência de transferir quantidades crescentes de poder para suas mãos. No caso das cozinhas escuras, por exemplo, não é uma surpresa que um dos percursores da ideia é o co-fundador e ex-CEO da Uber, Travis Kalanick.

Nos próximos anos, teremos uma escolha importante a fazer: ou continuamos a permitir que capitalistas poderosos moldem nossas vidas em benefício deles, ou retomamos o poder para determinar nosso futuro coletivo.

O sonho econômico da indústria de tecnologia está construindo um pesadelo para o resto de nós: uma sociedade mais firmemente dividida entre os servidos e seus servidores, onde o “atrito” da interação humana é substituído por interfaces digitais. É um futuro anti-social — mas é um futuro que ainda temos tempo de parar.

Sobre os autores

é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won't Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).

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Published in Análise, Livros, Tecnologia and Trabalho

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