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O teórico inglês Mark Fisher. Foto: Getty Images

Mark Fisher nos ajudou a pensar para além do realismo capitalista

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O critico cultural socialista Mark Fisher produziu um dos melhores diagnósticos dos impasses do capitalismo tardio. Seu pequeno livro de estreia se tornou um dos mais influentes no pensamento de esquerda internacional - e uma arma na mão de uma nova geração de militantes.

Trecho extraído do livro Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, de Mark Fisher (Autonomia Literária, 2020).


Mais de uma década depois de seu lançamento, Realismo capitalista, a primeira e mais importante obra de Mark Fisher, escrita em um Reino Unido pré-austeridade e pré-Brexit, ganha finalmente uma edição brasileira. Primeira publicação de um pequeno selo editorial independente (Zer0 Books, fundado com o envolvimento do próprio Fisher), flui, como bem disse o jornalista Amauri Gonzo, feito um bom álbum de rock, daqueles que deve ser ouvido na primeira vez de cabo a rabo, retornando depois para saborear, avulsamente, as faixas favoritas. Rápido e sem muita estrutura, a ordem é menos importante do que a densidade conceitual expressa, muitas vezes, em slogans: ideias compactadas que subitamente oferecem uma nova inteligibilidade a fenômenos familiares.

Movendo-se despudoradamente entre alta teoria e cultura pop — filmes hollywoodianos, programas de tv, ficção científica e o mundo da música na MTV — o texto espelha o formato de um blog. Não é um acaso. Foi como blogueiro que Fisher ganhou inicialmente certa notoriedade. As páginas do blog K-Punk serviram como um laboratório informal no qual testou pela primeira vez alguns conceitos, incluindo o de “realismo capitalista”, que recebem no livro formas mais bem acabadas. O ritmo ligeiro e o estilo relaxado, típicos do blog, são transpostos para o formato impresso sem cerimônias.

O resultado se assemelha a um libelo antiacadêmico: aproximadamente 80 páginas (na versão original) e nenhuma nota de rodapé ou bibliografia, nem sequer as referências dos textos citados são indicadas. Fisher passa da análise de Kafka à descrição da sua experiência pessoal de professor precarizado — ou de Supernanny a Espinosa — com naturalidade descontraída, até desleixada. Em capítulos rápidos e autocontidos, cada um com sua fauna conceitual própria, as reflexões de Gilles Deleuze e Michel Foucault sobre a sociedade de controle encontram uma crítica da ideologia de inspiração lacano-žižekiana, tudo ilustrado por apelos cinematográficos a Filhos da Esperança, Brilho Eterno de uma mente sem lembrança, Fogo contra fogo e Identidade Bourn.

Foi um sucesso inesperado. Não tanto pela tiragem (embora suas dez mil cópias iniciais não tenham sido nada mal para uma pequena editora estreante), mas sobretudo porque marcou uma geração de militantes e incidiu no debate político. Como lembra Alex Niven no obituário de Fisher publicado na Jacobin, era o Realismo capitalista que estava no “bolso de inúmeros manifestantes nos protestos estudantis de 2010”, convertendo-se em uma espécie de manifesto não-oficial do ressurgimento da esquerda socialista britânica. O impacto do livro alça Fisher à condição de intelectual público, requisitado a intervir em conferências, debates e eventos políticos.

A partir de então, além de discutido e mobilizado por acadêmicos como Slavoj Žižek, Jodi Dean e Angela Nagle, Fisher exercerá influência direta no novo ecossistema comunicacional de esquerda formado por iniciativas como a Novara Media e a revista Tribune. Serve de fonte para o “aceleracionismo de esquerda”, torna-se um marco nas discussões sobre pós-capitalismo, entra em diálogo com parlamentares do Partido Trabalhista e participa ativamente na formulação de estratégias políticas anti-neoliberais quando, a partir de 2015, os movimentos de anti-austeridade passam a ensaiar tentativas de ocupação institucional. As ideias de Fisher acabam cruzando o Atlântico para inspirar também o nascente movimento socialista democrático nos Estados Unidos, sendo debatidas nas páginas da Jacobin, em programas do YouTube de grande audiência como o Michael Brooks Show ou em podcasts como o Chapo Trap House.

Passados onze anos da publicação do livro, e três da morte de seu autor, talvez coubesse a pergunta: por que ler Mark Fisher hoje? Porque, para ir direto ao ponto, sua teorização nos dá a chave para compreender como a vitória crucial do capitalismo foi colonizar não apenas as consciências, mas o próprio inconsciente – triunfo que permitiu à ordem constituída se apresentar, ao menos por algum tempo, como uma realidade fora de disputa, um fato bruto da natureza. Não se contentando com a denúncia crítica, Fisher nos convida a abandonar a resignação melancólica e a construir coletivamente saídas à catástrofe anunciada pelo real da crise climática e da atomização social, a assumir o desafio de reabrir o futuro.

E por que ler Fisher hoje no Brasil? Porque, como o leitor brasileiro pode agora atestar, seu diagnóstico das patologias do neoliberalismo tem muito a dizer sobre nosso próprio mal-estar. Apesar das idiossincrasias caracteristicamente britânicas, que por vezes chegam a dar a algumas formulações um ar quase provincial, seu objeto é o capitalismo neoliberal globalizado — os bloqueios e sofrimentos de uma sociedade de classes em que a consciência de classes se encontra largamente adormecida.

O diretor Bong Joon-ho declarou recentemente ter se surpreendido com a reação global ao seu filme Parasita, curiosamente parecida em vários lugares distintos do mundo: “talvez porque hoje vivemos todos em um mesmo país, chamado capitalismo”. Nesse país chamado capitalismo, que se impõe sob o
título de única realidade possível, ainda há divisão – e ressentimento – de classe, mas sem a experiência coletiva de classe. Como consequência, a classe trabalhadora vive em um estado permanente de ansiedade, angústia e insegurança, que torna impossível planejar o futuro. Esse é o país de Realismo capitalista, e Fisher foi um dos mais sensíveis cartógrafos a esboçar um “mapeamento cognitivo” de seu “terreno afetivo”.

O objetivo deste posfácio é, pois, também oferecer um mapa ao leitor que se depara com as ideias de Fisher pela primeira vez, traçando suas influências e consequências. A aposta é que acompanhar a trajetória do pensamento de Fisher, entender de onde veio e para onde foi, nos ajuda a navegar e agir no nosso tempo. Da decomposição do movimento operário às patologias do fim da história, chegando enfim à ascensão de um populismo “niiliberal” libidinalmente impulsionado por fantasias nostálgicas (em Trump ou Bolsonaro), lidamos aqui com uma prática teórica que é conscientemente, em obediência à tese 11 de Marx, não apenas um exercício de representação do mundo, mas um esforço para transformá-lo.

A construção de Fisher

Fisher nasceu em 1968, na região inglesa conhecida como East Midlands, de histórica presença do movimento operário. Sua origem na classe trabalhadora, e sua conexão com o ambiente das lutas sindicais fordistas, transparecem marcadamente nos textos, entrevistas e relatos pessoais. Por exemplo, na lembrança vívida e dolorosa da derrota do Partido Trabalhista em 1983, que deixara no jovem Fisher um “sentimento amargo de derrota existencial total” frente à perspectiva de mais cinco anos do governo conservador de Margareth Thatcher. Ou ao evocar o dia no qual os mineiros retornaram ao trabalho em 1985, após uma greve de mais de um ano, com seu outrora poderoso sindicato vencido e desmoralizado – um dia que trinta anos depois Fisher dizia não conseguir recordar “sem lágrimas nos olhos”.

Esse período, o meio dos anos 1980, que coincide com a adolescência de Fisher, é precisamente o momento da destruição de uma identidade de classe, o crepúsculo de todo um mundo e de uma forma de vida comunitária. A partir daí, inicia-se o recuo dos sindicatos da vida pública britânica, a “marcha para atrás” do trabalho organizado, e a depressão permanente das antigas regiões industriais. Foram anos, comentaria Fisher décadas depois, que qualquer pessoa de esquerda na Inglaterra recordaria com uma “tristeza visceral, sufocante e devastadora”.

O Fisher dessa época ainda iria aproveitar os últimos anos de uma atmosfera que batizaria mais tarde de “modernismo popular” – uma ecologia cultural formada por uma vibrante imprensa musical independente, a radiodifusão pública da bbc, o experimentalismo arquitetônico e o pós-punk. O Estado
de bem-estar social, com seus benefícios aos desempregados, bolsas estudantis, programas de moradia social, contribuia para financiar indiretamente a experimentação na cultura popular e a inovação artística a partir da própria classe trabalhadora. É essa “modernidade popular” – um ambiente de democratização da teoria e da alta cultura, que longe de ser indulgente ou promover uma complacência acomodada, nutria a experimentação e a inovação – que, segundo o próprio Fisher, o formou e moldou suas expectativas.

Fisher sempre destacou que seus primeiros encontros com filósofos como Jacques Derrida e Jean Baudrillard foram nas páginas do New Musical Express – uma revista de crítica musical que para ele funcionou, junto com a radiodifusão pública, como uma espécie de “sistema educacional suplementar”. É a desaparição, como efeito da ascensão do neoliberalismo, de um ambiente cultural ao mesmo tempo popular e instigante – esquisito, surpreendente, não inteiramente capturado pela lógica de mercado – que Fisher lamentará tanto em Realismo capitalista quanto em Fantasmas da minha vida, de 2012 (a edição brasileira dessa obra está prevista para 2021).

Entre 1986 e 1989, Fisher estuda literatura e filosofia na Universidade de Hull. Em seguida, muda-se para Manchester, onde passa alguns anos pulando entre bicos e tocando em bandas. Seu retorno à Universidade, um ambiente no qual jamais chegou a se sentir plenamente à vontade, foi motivado por um encontro aleatório com a filósofa ciberfeminista Sadie Plant. Plant havia concluído poucos anos antes seu doutorado na Universidade de Manchester, com uma tese sobre a Internacional Situacionista (que resultou no livro The most radical gesture: the Situationist International in a postmodern age [O gesto mais radical: a Internacional Situacionista na era pós-moderna]), sendo, logo em seguida, contratada pela Universidade de Birmingham, onde passou a ensinar no mesmo “Departamento de Estudos Culturais” fundado e liderado por Stuart Hall na década de 1970.

Fisher inicia o mestrado em Birmingham sob orientação de Plant mas, em 1995, quando ela aceita uma posição de pesquisadora sênior na Universidade de Warwick, a acompanha junto com a maioria dos outros orientandos. É em Warwick que transcorre um dos capítulos mais bizarros, intensos, e definidores do desenvolvimento intelectual de Fisher: sua participação como co-fundador do Cybernetic Culture Research Unit [Unidade de Pesquisa em Cultura Cibernética] (ccru).

Oficialmente, o ccru nunca existiu. Plant deveria ter dado entrada na papelada burocrática para inaugurar formalmente o novo departamento, mas nunca se deu ao trabalho. Em 1997 Plant abandona Warwick, e a carreira acadêmica, para escrever como freelancer em tempo integral. Até 97, o ccru ainda
funcionava em uma sala da universidade, onde estudantes de pós-graduação se reuniam para apresentar trabalhos e debater.

O Instituto de Filosofia de Warwick já era então reconhecido como um dos mais destacados no Reino Unido em filosofia continental contemporânea (francesa, em especial), com Keith Ansell-Pearson, um acadêmico especializado em Nietzsche, oferecendo cursos pioneiros sobre as obras de Deleuze. O interesse em Deleuze era compartilhado por outro professor de Warwick, considerado, junto com Plant, a figura central do ccru: Nick Land.

Land era professor de filosofia continental em Warwick desde 1987. Em 1992, havia publicado seu primeiro, e por muito tempo, único livro – The thirst for annihilation: Georges Bataille and virulent nihilism [A sede por aniquilação: Georges Bataille e niilismo virulento]. Além do interesse pela filosofia contemporânea francesa e pela ficção científica ciberfuturista, Land parecia fascinado pelo oculto e pelas “artes mágicas” – da parapsicologia à Telema de Aleister Crowley, passando por numerologia cabalista e a cosmologia escatológica, e psicodélica, de Terence McKenna. É a figura carismática e hipnótica de Land que, após a partida de Plant, se torna a principal referência da mixagem que o grupo realiza a partir do pós-estruturalismo francês, das teorias cibernéticas da informação e controle, da cultura de rave e jungle3, e da ficção de William Burroughs, J.G. Ballard, William Gibson, e H. P. Lovecraft.

A importância da ficção aqui não é lateral. É possível ver o ccru mais como um coletivo de arte do que propriamente uma unidade padrão de pesquisa acadêmica. A experimentação com a forma era uma marca distintiva do grupo, o que se expressava seja em modos não-textuais de intervenção, seja em uma escrita que fugisse das normas estabelecidas do discurso acadêmico. Daí a centralidade do que chamavam de “teoria-ficção”, relacionada não apenas à forma narrativa ficcional que a teorização do ccru frequentemente assumia, mas principalmente com a própria importância teórica que atribuíam à ficção – ao dever real da ficção.

O conceito crucial desse período – virtualmente ativo sobre toda a obra madura de Fisher, mesmo quando não explicitamente nomeado – é o de “hiperstição”: um neologismo que combina o termo “superstição” com o prefixo “hiper” para se referir a uma “tecnociência experimental de profecias auto-realizáveis”. Na formulação canônica do grupo, trata-se de circuitos de retro-alimentação positiva em que o futuro é causalmente funcional sobre o presente.

Em 1995, Plant e Land escrevem juntos o artigo Cyberpositive, combinando elementos da teoria de sistemas cibernéticos de Norbert Wiener com conceitos de Gilles Deleuze e Felix Guattari (esquizoanálise, desejo maquínico etc.), para se contrapor à preferência de Wiener por alças de retroalimentação negativa. Nesse sentido, uma “cibernética” negativa estaria focada em circuitos que promovem o equilíbrio e a homeostase, sistemas de controle que compensam desvios. Já Plant e Land estavam mais interessados em uma cibernética de etroalimentação positiva, de runaway processes [processos de fuga] – explosiva, disruptiva, apocalíptica. A hiperstição é precisamente onde a teoria-ficção se encontra com o ciberpositivo: trata-se de arrativas capazes de efetuar sua própria realidade por meio de alças de retroalimentação positiva, fazendo emergir novos atores sociopolíticos e explodindo arranjos vigentes – transmutando ficções em verdades. Se entendermos por “superstições” meramente crenças falsas, sem eficácia, as hiperstições funcionam causalmente para produzir sua própria realidade.

Uma das imagens favoritas do ccru para ilustrar a hiperstição é a de um aparelho que viaja no tempo para desencadear a própria existência – um “tentáculo emitido do futuro”, uma visão do porvir que retorna para desenhar a própria história. Pense, por exemplo, na Skynet de Exterminador do futuro, enviando seus agentes para o passado para acelerar o apocalipse das máquinas, retroativamente estabelecendo sua própria condição de emergência. Outra imagem é a de uma infecção viral – um processo que se apropria de um hospedeiro e o manipula para a sua própria proliferação exponencial.

O paralelo com a magia agora também se torna evidente: quando a crença de que determinado símbolo tem poder viraliza, contaminando mentes em massa, o símbolo de fato passa a exercer um poder bastante real. Mesmo que seu poder tenha uma origem ficcional (no sentido de não corresponder à realidade), uma vez que o símbolo ganha um carga libidinal intersubjetiva seus efeitos têm eficácia material, às vezes dramática, sobre o corpo social. Segundo a fórmula da “espiral hipersticional”: quanto mais se acredita na magia, mais ela funciona, e quanto mais funciona, mais se acredita. Por isso a hiperstição atua também como um “intensificador de coincidências” (ou de “sincronicidades”, como diria o escritor de ficção científica Philip K. Dick); na medida em que um processo hipersticional tem efeito catalisador, conecta e dá coerência a eventos díspares e heterogêneos em uma mesma narrativa, que se torna assim cada vez mais eficaz.

Retrospectivamente, a vitória desse processo aparece como inevitável, um destino inexorável, como se o universo estivesse conspirando a favor. A inseparabilidade entre realidade e ficção, para o ccru, não tinha portanto um sentido pós-moderno, de ceticismo com o mundo objetivo ou antirrealismo. Bem ao contrário, o interesse estava na investigação dos “poderes mágicos” do encantamento semiótico, isto é, a realização, em diferenciados graus, de virtualidades já ativas, em outras palavras: a passagem da ficção para a realidade, que pode ser compreendida como um processo de apoderamento da realidade pela ficção. Nessa perspectiva, a teoria não opera como uma representação passiva, mas como um agente ativo de transformação. Ou, em linguagem mágica, “um portal pelo qual entidades podem emergir”.

O ccru se dedicou a teorizar (e ficcionalizar) o que chamaram de “k-táticas” (k de cibernética em grego, κυβερνητική), que “acelerassem as coisas” e desmantelassem o passado, engendrando mudança e subversão. Steve Goodman (aka Kode9), amigo de Fisher no ccru, nota uma profusão de K ́s naquele momento: “Josef K, do Kafka, K da ortografia alemã da cibernética, K das ondas K na teoria de Kondratieff em economia, Ko do I Ching, etc. K estava no ar”. O próprio Fisher se apropriaria do K para batizar seu blog eventualmente: K-punk (kyber-punk).

A tese de doutorado de Fisher, Flatline constructs: gothic materialism and cybernetic theory-fiction [Constructos de linha-plana: materialismo gótico e teoria-ficção cibernética], defendida em 1999, mas publicada em livro apenas 20 anos depois (postumamente), traduz bem os interesses do ccru pelo cyberpunk e por filosofias anti-humanistas. Aí os conceitos fundamentais são “materialismo gótico”, “realismo cibernético” e “hipernaturalismo”. Sob forte influência de Donna Haraway, Deleuze, Baudrillard, Lyotard e Espinosa, Fisher constrói sua tese a partir de comentários sobre obras ficcionais (literatura pulp ou filmes) passando de Toy Story a J. G. Ballard, mas com especial dedicação ao horror de Mary Shelley, H. P. Lovecraft, David Cronenberg e John Carpenter.

Sua postura frente ao marxismo é, para dizer o mínimo, ambígua: se o Marx que desvenda os “poderes necromânticos” do capital é uma espécie de precursor do materialismo gótico, Fisher desdenha de um “antropo-marxismo” cuja metafísica humanista postula uma “agência humana transcendente e autêntica” que poderia superar o capital. “Tudo o que é sólido”, Fisher parafraseia a famosa frase do manifesto, “se desmancha no virtual e no abstrato” — não há nenhuma essência humana prístina a qual retornar. “Alienados e gostando”, era um dos slogans do ccru.

Em 1998, Nick Land também se desliga da Universidade de Warwick e abandona a carreira acadêmica, como Plant havia feito antes. Por um período some do mapa, reaparecendo anos depois em Xangai. Mesmo com a partida dos tutores originais, o ccru persiste existindo informalmente, ainda que sem nenhum vínculo com a Universidade de Warwick, até por volta de 2003. Foi no ambiente do ccru que Fisher conheceu figuras como Ray Brassier, Iain Hamilton Grant, Jake Chapman, Kodwo Eshun, Steve Goodman (Kode9), Anna Greenspan, Luciana Parisi e Robin Mackay. Integrantes do grupo se tornaram conhecidos nos anos seguintes por suas contribuições para o Realismo Especulativo, o Aceleracionismo, o Ciberfeminismo, o Afrofuturismo, na criação do The New Centre for Research & Practice de Reza Negarestani, e pela influência em um fértil ecossistemas de blogs que experimentava nas fronteiras entre teoria, crítica cultural e política radical.

Nenhum desses blogs foi tão lido e replicado quanto o K-punk. Descrito pelo crítico musical Simon Reynolds como “uma revista de um homem só melhor que a maioria das revistas no Reino Unido”, o blog se tornou algo como uma “sensação cult”. Reynolds, que havia começado seu próprio blog poucos meses antes, recorda no prefácio do livro K-Punk que foi como se um equivalente da antiga imprensa musical britânica tivesse se reconstituído online. Nos posts, análises de filmes, televisão, música, conviviam com reflexões ácidas sobre política, ativismo e modernismo popular. “Mark era um dínamo”, comenta Reynolds, um catalisador, “atirando provocações e ideias que exigiam engajamento”, seus posts marcados por “máximas memoráveis e aforismos agudos”, fazendo justiça ao antigo lema do ccru de “máxima densidade em slogans”.

Fisher, trabalhando agora fora da universidade como professor de Educação Continuada, dando aula para estudantes de classe trabalhadora entre dezesseis e dezenove anos, atravessava mais um de seus debilitantes episódios depressivos quando começou a blogar. O blog, vai dizer, era tanto uma forma de reestabelecer alguma conexão com o mundo exterior, como uma maneira de se forçar voltar a escrever, em um espaço mais informal e sem pressão, depois da experiência traumática do doutorado. A atividade se mostrou intensamente positiva, revigorando seu entusiasmo. O que emergia nos âmbitos “mais desestratificantes da blogosfera”, comenta Fisher animado, era uma “rede despersonalizante e dessubjetivizante, que produz encontros mais alegres em um processo de retroalimentação positiva”. Essa linguagem que mistura Deleuze e Espinosa com teoria cibernética, em continuidade com a experiência do ccru, era dominante nas postagens iniciais.

Progressivamente, no entanto, a partir do diálogo com outros participantes dessa rede de blogs — os amigos Nina Power e Alberto Toscano, Owen Hartherley, Alex Williams — Fisher vai se afastando cada vez da retórica agressivamente anti-humanista e da postura antipolítica do ccru, movendo-se em direção a uma compreensão da modernidade mais próxima dos termos clássicos da esquerda socialista. Fisher confessa, parafraseando Kant, que foi a leitura de Slavoj Žižek que o despertou por fim de seu “sono pós-político”.

Quatro fases fisherianas

Poderíamos dividir, grosso modo, a atuação intelectual de Fisher em quatro fases. Na primeira, que vai do início do blog (em 2003) até 2005, predomina um vocabulário e um estilo tributário do ccru, embora a ênfase na busca por experiências-limite, típica da prática filosófica de Nick Land, dê espaço a uma abordagem mais conceitual — o “materialismo gótico” cyberpunk, de inspiração deleuziana, convive com um “racionalismo frio”, de base espinozista. A crítica musical está em primeira plano, e a crítica política ocupa um lugar secundário, na maioria das vezes limitado a um profundo desprezo pelo Novo Trabalhismo de Tony Blair e uma postura em larga medida abstencionista. A partir de 2005, no entanto, as preocupações políticas vão ganhando maior destaque, e Fisher se mostra atraído pela “ideia comunista”, engajando-se com a produção de Žižek e Alain Badiou.

Nessa segunda fase, a psicanálise de Jacques Lacan, assim como a crítica da ideologia de inspiração lacaniana, e a análise da pós-modernidade como lógica cultural do capitalismo tardio em Fredric Jameson, tornam-se elementos-chave de reflexão. Nesse momento, inicia-se também um diálogo com a corrente pós-operaísta do marxismo italiano, da qual Fisher toma emprestado a ideia de uma etapa “pós-fordista” do capitalismo (as principais referências aqui são Christian Marazzi, Antonio Negri e Bifo Berardi).

Data dessa fase a elaboração dos conceitos de “realismo capitalista”, “ontologia empresarial”, “impotência reflexiva”, “stalinismo de mercado”. Fisher está então focado em: 1) nos efeitos deletérios do capitalismo neoliberal sobre a saúde mental, politizando a questão ao chamar atenção para a causalidade social do sofrimento psíquico; e 2) no mal-estar do “fim da história”, expresso no encurtamento da imaginação cultural e do horizonte político de expectativas. Trata-se precisamente da fase que culmina com o lançamento do primeiro livro, em 2009, e desemboca na preocupação cada vez mais central com a questão da agência política e das possibilidades de construção de um novo sujeito coletivo que possa atacar a raiz dessas patologias.

A fase seguinte, de 2010 a 2014, mostra assim um Fisher mais preocupado com a ação política concreta, interessado em questões organizacionais e no problema da hegemonia. É quando se filia ao Partido Trabalhista e escreve, em parceria como Jeremy Gilbert, um artigo dedicado a pensar políticas públicas para um possível próximo governo de esquerda. Gilbert, cuja própria teoria política é uma tentativa de articular Espinosa com Gramsci, torna-se não só um interlocutor privilegiado como um amigo pessoal para Fisher, e ambos passam a se esforçar conjuntamente para pensar o que poderia ser uma esquerda eficaz em condições pós-fordistas, capaz de reivindicar uma modernidade antineoliberal. Esse período gramsciano de Fisher chama atenção pela aproximação com os trabalhos de Stuart Hall e Chantal Mouffe, pela insistência na necessidade de conjugar movimentos extra-parlamentares com uma ação de esquerda institucional, pela ânsia em contribuir para catalisar a composição de novas formas de ação coletiva de classe.

O objetivo explícito passa a ser avançar em um projeto de poder que pudesse efetivamente se colocar como alternativa realista a um neoliberalismo cada vez mais decrépito. O artigo “Como matar um zumbi: elaborando estratégias para o fim do neoliberalismo”, é uma produção típica desse período, seja pela ênfase na necessidade de pensamento estratégico, seja pelo chamado à construção de formas de “ação indireta” (que Fisher formula como uma crítica às sensibilidades “neoanarquistas” dominantes nos movimentos de rua anticapitalistas).

Por último, em uma fase mais curta, cuja obra inacabada receberia o título de Acid Communism [Comunismo ácido], Fisher estava às voltas com a tentativa de herdar as experiências dos anos da contracultura, como às práticas coletivas de “elevação de consciência” e, em uma manobra de contra-exorcismo, invocar o “espectro de um mundo que poderia ser livre”. Para esse Fisher, o neoliberalismo foi fundamentalmente uma operação de deflação de consciência, desenhado para eliminar os diversos impulsos de “socialismo democrático” (ou “comunismo libertário”) que borbulhavam nas décadas de 1960 e 1970. Relendo Herbert Marcuse, e reforçando seus vínculos com o coletivo autonomista Plan C, Fisher proclama um comunismo libidinal, desejante, que afirme nossa capacidade coletiva de produzir, cuidar e desfrutar em comum.

Entre esses vários Fishers há continuidades e descontinuidades. A influência de Espinosa e o modelo da cibernética estão sempre presentes, enquanto outras referências são mais temporalmente definidas (Lacan na fase 2, Gramsci na fase 3, Marcuse na fase 4). A teorização sobre o realismo capitalista acompanhará Fisher até o fim de sua vida, assim como seu reconhecimento da influência formativa de seus colegas de ccru (e até mesmo de Nick Land, no que pese a divergência radical de suas posições políticas). E, no entanto, o Fisher que conclama em seu blog a “não votar”, em 2005, é bem diferente do Fisher que se filia ao Partido Trabalhista em 2011, e acompanha com interesse e expectativa a eleição geral de 2015.

Assim como o Fisher anti-hippie de 2004, praguejando contra a letargia dos maconheiros e hostil ao legado de 68, pouco tem a ver com o Fisher de 2016 em sua celebração à contracultura e às diversas formas de consciência que se expandiam no final dos anos 1960. O Fisher dogmático, obstinadamente antiempiricista, do começo dos anos 2000 talvez torcesse o nariz para o Fisher da fase 4, que via na troca de experiências e vivências dos grupos subalternos, e no processo de politização do pessoal daí decorrente, uma ferramenta fundamental para a construção de novas formas de agência coletiva.

Talvez o que sempre tenha acompanhado Fisher, e guiado seu trabalho, seja a convicção de que a leitura mais produtiva da frase “o pessoal é político” – popularizada pelos novos movimentos sociais dos anos 1960, e em especial pelo feminismo – é “o pessoal é impessoal”. Ao escrever de forma pessoal, e abordar sua própria experiência pessoal (como quando fala de sua própria depressão no curto artigo “Não prestar para nada”, incluído neste volume), Fisher nunca perdia o olhar sobre as condições estruturais de formação da subjetividade. Seu anti-individualismo militante e filosófico o levou à conclusão de que para inventar novos futuros, e escapar do eterno presente do realismo capitalista, seria necessário construir coletivamente, em comum, um novo sujeito político.

O lento cancelamento do futuro

Em Realismo capitalista, Fisher se dedica a investigar o sentimento ubíquo de “declínio da historicidade”. Com a colonização capitalista do “inconsciente cultural”, se torna difícil imaginar qualquer alternativa coerente, uma vez que o capitalismo ocupa, incontestável, todo o “horizonte do pensável”. Pela sua própria natureza difusa, Fisher insiste, é mais fácil apontar para o realismo capitalista do que descrevê-lo precisamente: um campo ideológico transpessoal, uma atmosfera pervasiva, uma “estrutura de sentimento” (citando Raymond Williams) – “impessoal, abrangente, inconsciente e insidiosa”. Trata-se da naturalização do neoliberalismo como um fato inerradicável da vida, acompanhada por uma espécie de “mal-estar temporal”: o fim já aconteceu, nada novo é possível.

No nível da psicologia individual, o realismo capitalista se expressa como a crença não de que o capitalismo neoliberal seja “bom”, mas de que é a única coisa realista – tudo mais seria ilusório, utópico, inviável. Uma vez que a maioria das pessoas não costuma passar muito tempo pensando sobre o capitalismo, esse realismo opera no dia a dia de maneira muito mais banal e prosaica: uma atitude de “resignação fatalista”, de expectativas decrescentes, de que não há nada que possa ser feito, de que é
assim que as coisas são e só cabe a cada um se ajustar, individualmente, ao estado de coisas. Essa impotência depressiva não é experimentada coletivamente porque no realismo capitalista nada é experimentado coletivamente, mas atua, enquanto campo transpessoal, como uma barreira invisível, limitando nossa capacidade de pensar, imaginar e agir.

Mais especificamente, o realismo capitalista é, diria Fisher, uma “patologia da esquerda”. Como Žižek já havia alertado, embora seja fácil ridicularizar Francis Fukuyama e sua tese do “fim da História”, na prática, é como se fossemos “todos fukuyamistas agora”, inclusive os que se dizem de esquerda: o capitalismo liberal é pressuposto, ao menos no nível do inconsciente, como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, cabendo apenas aprimorá-la nas margens e administrá-la da maneira mais técnica e eficiente.

Fisher desenvolveu o conceito de realismo capitalista a partir da sua vivência como professor de Educação Continuada sob os governos do Novo Trabalhismo, então empenhados no aprofundamento das reformas neoliberais na educação pública. O livro é, portanto, uma crítica aberta e ácida ao blairismo e à política da Terceira Via. O Novo Trabalhismo de Tony Blair é a expressão, por excelência, do realismo capitalista como patologia da esquerda. A estratégia política avançada pelo Novo Trabalhismo partia do princípio de que os ventos da história sopravam, inelutavelmente, a favor do neoliberalismo – e que as opções eram ou se adequar a essa nova realidade ou se tornar irrelevante.

A política de massas, a força do trabalho organizado, o horizonte socialista, faziam parte de uma época que havia se encerrado, que o próprio desenvolvimento do capitalismo havia tratado de tornar obsoleta. Essa capitulação foi dolorosa, difícil e longa, e se seu ápice é o blairismo, seu início pode ser datado no famigerado discurso de 1976, de James Callaghan, o primeiro-ministro trabalhista no crepúsculo do fordismo, sobre o “necessário” abandono das políticas keynesianas, social-democratas, do pós-guerra: “digo com toda sinceridade que essa opção não existe mais” – antecipando o “não há alternativa” de Thatcher.

Nos anos 1980, o realismo capitalista era ainda apenas um projeto – que Thatcher e seus “novos conservadores” se esforçavam para transformar em realidade. O famoso slogan thatcherista de que “não há alternativa”, ou de que não existe sociedade ou classes,6 apenas indivíduos, pode ser entendido como hipersticional: uma ficção com efeitos reais. É apenas com a chegada dos anos 1990 que o neoliberalismo é naturalizado, e a falta de alternativas ao capitalismo não precisa mais ser argumentada ou defendida – a partir de então, é simplesmente assumida, como um consenso de fundo. A própria frase deixa de soar como uma afirmação de preferência – de que o capitalismo neoliberal seria a melhor opção, a mais desejável – para ganhar algo como um peso ontológico: não se trata do melhor sistema, mas do único possível, do destino inexorável da história.

Foi precisamente a emergência do Novo Trabalhismo que assegurou a vitória do realismo capitalista no Reino Unido e a consolidação do projeto thatcherista como um novo padrão de normalidade, como um “sistema de realidade” consolidado. Com Blair, “modernização” se torna enfim sinônimo de neoliberalização – quem resiste é porque perdeu o bonde da história.

Não à toa em 2002, doze anos depois de deixar o poder, Thatcher não teve dúvidas ao ser perguntada sobre sua maior realização: “Tony Blair e o Novo Trabalhismo. Forçamos nossos oponentes a mudar de mentalidade”. No interior da atmosfera do realismo capitalista, aceitar a eternidade do capitalismo é “cair na real” – abrir mão das fantasias utópicas, despir o mundo das ilusões sentimentais, abandonar as “ideologias do passado” e aceitar a “realidade como ela é”: cão comendo cão, cada um por si.

Enquanto atitude prática, para além da crença individual, o realismo capitalista significa a submissão resignada aos imperativos do mundo dos negócios e a internalização do que Fisher chama de “ontologia empresarial”: a expectativa compartilhada de que todos os aspectos da vida social, inclusive a administração pública, e mesmo a saúde e a educação, devem ser geridos como empresas. Se no setor privado a tendência é de precarização e “casualização” do trabalho, no setor público essa mesma tendência se expressa como importação das estratégias de disciplina da mão de obra típicas das empresas capitalistas. A consequência é uma espécie de “stalinismo de mercado” (outra expressão cunhada por Fisher): a imposição de sistemas de metas e métricas de avaliação permanente, a intensificação de uma autovigilância constante, a proliferação de procedimentos burocráticos, que
precisam ser agora realizados pelos próprios trabalhadores, obrigando-os a uma constante performance de autocrítica.

A vitória do realismo capitalista não foi fazer com que as pessoas gostassem ativamente da “ontologia empresarial” ou do “stalinismo de mercado” – cujos efeitos são sentidos como degradantes e exaustivos, desmoralizando os trabalhadores sem melhorar em nada a qualidade dos serviços. Isso nunca chegou a acontecer, as reformas neoliberais continuam impopulares. O que se conseguiu foi convencer as pessoas de que o mundo é assim, e que não há nada que possa ser feito. A fórmula da “solidariedade negativa” vigente passa a ser: “é ruim para todo mundo, você tem que se adaptar também” – quem não está sofrendo o bastante é privilegiado. Numa atmosfera de expectativas decrescentes, não há nada que possamos fazer em comum para mudar o rumo da história. A vontade política é impotente: não somos o tipo de pessoas que podem mudar o mundo, ou o mundo não é o tipo de coisa que possa ser mudado. Talvez nunca tenha sido, e finalmente nos conciliamos com essa dura realidade depois de uma série de ilusões frustradas.

O realismo capitalista se aproxima daquilo que Frederic Jameson teorizou como “pós-modernismo” ainda na década de 1980. A perda da dimensão de futuro não é apenas um fenômeno político, mas da cultura como um todo. Para Fisher, Jameson viu adiante. Uma geração mais tarde, e após o colapso do socialismo real no leste europeu, a sensação de exaustão política e esterilidade cultural é não só muito mais aprofundada, mas também mais normalizada, parte da paisagem com a qual nos habituamos. O fenômeno identificado por Jameson naturalizou-se a ponto de se tornar invisível, ao mesmo tempo mais intenso e mais difícil de ser percebido.

A “lógica cultural do capitalismo tardio” conduz a uma espécie de imaginação empacada, um bloqueio que converte a produção cultural num eterno pastiche, marcado pela rememoração, revisitação e repetição. O realismo capitalista promove uma infertilidade imaginativa em todos os âmbitos. A orientação para frente da modernidade dá lugar a uma sensação de esgotamento, um tempo travado. Essa estagnação na cultura não é sentida abruptamente, se expressa em um “lento cancelamento do futuro”, expressão que Fisher toma de Bifo Berardi para nomear uma situação apocalíptica que não é repentina ou explosiva, mas que se arrasta morosamente. Como no filme Filhos da Esperança, “o mundo não termina com um estrondo, ele desaparece, se desfaz, desmorona gradualmente”.

Caímos assim em uma situação aparentemente paradoxal na qual enquanto a vida aumentou de velocidade – com a aceleração dos fluxos e circuitos de uma capitalismo cognitivo hiperconectado – a cultura ficou mais devagar, estagnada na repetição kitsch e em formas zumbis. Fisher identifica pontos de encontros entre a estagnação cultural e política. Por um lado, a emergência de um “capitalismo comunicativo” (Jodi Dean), ou “semiocapitalismo” (Bifo Berardi), promove uma “dispersão da economia atencional” e faz com que a vida cotidiana seja tomada por uma urgência frenética, absorvida pelo ritmo do que Fisher chama de “ciberespaço capitalista”. Em especial com a massificação dos celulares, convertidos em ferramentas praticamente indispensáveis para a permanência no mercado de trabalho, estamos continuamente imersos – plugados – nesse ciberespaço com sua “compulsão idiota”, instados a uma “pressa perpétua”, os sistemas nervosos estressados por uma corrente incessante de comandos mercadológicos.

Fisher aponta, sobretudo, para como o desmantelamento dos resquícios de social-democracia contribui para a estagnação da cultura. Longe de ter, conforme prometido, um efeito dinamizador, desbloqueando a criatividade e a imaginação humana ao atacar um Estado centralizador, vertical e paternalista, o neoliberalismo conduziu a uma “deterioração massiva da imaginação social”. É que a inovação, nota Fisher, requer certas formas de estabilidade. A produção cultural inovadora exige tempo livre – um tempo não dominado pelas urgências imediatas do mercado capitalista. Com o desmantelamento das condições materiais de um tempo livre de urgências, um tempo experimental, esse espaço de autonomia se fechou. A politização do tempo é, portanto, uma pré-condição para sair do mal-estar cultural.

Há aí um antagonismo político a ser explorado, pois, para Fisher essa temporalidade bloqueada, na qual se corre cada vez mais rápido para ficar exatamente no mesmo lugar, é funcional para a manutenção de estruturas de poder: há forças políticas que nos querem “permanentemente ansiosos”, esgotados, com uma capacidade atencional fragmentada e dispersa – e essas são precisamente as forças que estão ganhando. De modo geral, a percepção de que vivemos no fim da história nada mais é do que um “projeto de classe altamente bem-sucedido”. O próprio realismo capitalista é consequência do sucesso da direita neoliberal em transformar as atitudes da população, em impregnar de “ontologia empresarial” a infra-estrutura psíquica coletiva, encurtando assim o horizonte da imaginação política.

Essa não é, no entanto, a primeira vez que a narrativa do “fim da história” aparece. O próprio Marx inicia o Manifesto comunista polemizando contra a noção de que com a vitória do liberalismo – e a eventual universalização da igualdade formal e da liberdade jurídica – a história havia chegado ao fim. O argumento de Marx é que mesmo que o capitalismo seja um sistema baseado em contratos voluntários, continua sendo uma sociedade de dominação de classe – enquanto houver luta de classes haverá história. Ou seja, a tese da luta de classes como o motor da história é a tese de que a história não acaba no capitalismo.

Nos livros d ́O Capital, Marx castigará com sarcasmo aqueles economistas vulgares, apologistas da ordem, que acreditavam que as instituições de todas as outras sociedades eram artificiais, supersticiosas, mas que as da sociedade burguesa, essas sim, são naturais, portanto eternas – que “houve história, mas já não há”. A célebre análise do fetichismo da mercadoria é ela mesma uma crítica ao modo naturalizado como a produção capitalista aparece. Na medida em que os indivíduos participam do capitalismo, e o reproduzem sem saber que o fazem, esse automatismo é confundido com um fato da natureza. Assim, o capitalismo não é visto como um sistema social particular, historicamente definido e contingente, que teve um começo e pode ter um fim. Desvelar a historicidade dessa estrutura, com seus impasses, efeitos colaterais e pontos de antagonismo, é expô-la como algo que pode ser alvo da ação humana consciente.

Se a ideia de fim da história já experimentou certa popularidade antes mesmo de Marx entrar em cena, o que aconteceu para que ela operasse um retorno triunfante ao final dos anos 1980? Entre um fim da história e outro, aconteceu a ascensão e o declínio do movimento revolucionário internacional, a com-
posição – e subsequente decomposição – de um sujeito político coletivo que foi capaz de ameaçar a continuidade dessa ordem. Em certo ponto, a “marcha para frente do trabalho”, e com ela o mito da revolução proletária, perdeu força como atrator político, dissipando assim também sua eficácia na construção do futuro. O avanço do neoliberalismo é tanto um efeito quanto uma causa dessa decomposição. Sua superação, e esse é o ponto fundamental de Fisher, exigirá uma recomposição, a conformação de um novo tipo de agência coletiva.

Privatização do estresse e impotência reflexiva

O realismo capitalista veio acompanhado não apenas de maior precarização e insegurança no trabalho, mas também de uma epidemia de sofrimento psíquico. Na medida em que antigas formas de solidariedade institucional e amparo comunitário são desfeitas, o resultado é a privatização do sofrimento e a individualização da angústia. No final do seu célebre artigo, Fukuyama já conseguia antever que “o fim da história” – com a dissolução dos grandes projetos coletivos, o apagar das luzes do palco da história mundial onde se travavam grandiosas batalhas ideológicas, mobilizando “ousadia, coragem e imaginação” – seria “um tempo muito triste”. Não fazia ideia do quanto.

Orientado por uma psicanálise lacano-žižekiana, mas do mesmo modo, profundamente ambientado com as errâncias esquizoanalíticas experimentais de Deleuze e Guattari, Fisher aborda o sofrimento psíquico e o mal-estar de nossos tempos. O campo dos afetos, dos corpos, das patologias, do sofrimento, dos sintomas, das modalidades paradoxais do desejo, torna-se para Fisher um campo investigativo dos impasses do realismo capitalista. Suas indagações traduzem a tensão dos dilemas e
contradições locais experimentadas por ele mesmo, tanto em sua experiência militante quanto em sua atividade docente, no contato com jovens estudantes em sala de aula.

Diante da epidemia de patologias, patologizações e transtornos mentais, Fisher ao invés de tomá-las como simples retrato neutro e estático da sociedade as problematiza enquanto um sintoma singular próprio do capitalismo tardio neoliberal. Ao se deparar com seus alunos, majoritariamente rotulados por alguma categoria psiquiátrica e administrados sob alguma narrativa de sofrimento pré-determinada, Fisher se interroga acerca da “causa social sistêmica” por trás da proliferação dos transtornos psíquicos. Por que um número tão grande de adolescentes com os quais trabalha tem problemas de saúde mental ou dificuldades de aprendizado? Por que a depressão é a condição mais tratada no sistema de saúde britânico?

A atenção de Fisher está focada na privatização dos problemas psíquicos, na despolitização, na individualização do sofrimento e na “condenação” genética, ou estritamente biologizante, dessas condições – abordando-as como se, de fato, não houvesse sociedade, apenas indivíduos (ou no máximo suas famílias). Cada qual sofrendo silenciosamente em seu corpo, em seu cubículo profissional, em seu lar, abraçando sua parcela de mal-estar e estresse como experiências de sofrimento privadas, postas como estritamente de cada um.

Fisher destaca um sintoma social crucial para os tempos atuais, que difere do cinismo ou da apatia: a impotência reflexiva, que teria a estrutura de uma profecia autorrealizável. Na impotência reflexiva, sabemos que as coisas estão piorando, e “sabemos” que não podemos fazer nada a respeito, mas esse saber não é uma mera representação passiva de uma realidade objetiva. Na verdade, contribui ativamente para reforçá-la em uma espiral hipersticional implosiva, produzindo, em parte, o imobilismo que reproduz a condição. Esta experiência é estetizada em termos kafkianos, cada um em seu aprisionamento burocrático.

A pulverização do controle gera efeitos em como se experimenta subjetivamente o tempo. Fisher elabora uma perspectiva crítica acerca dos afetos que reflete a passagem das sociedades disciplinares esquadrinhadas por Foucault para as sociedades de controle de Deleuze, atualizada para dar conta da evolução do ciberespaço capitalista em tempos de YouTube, Playstation e smartphones. O estresse, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, ansiedade, depressão, entre tantas outras tipologias normativas de manuais como o dsm-v ou cid x ganham um outro tensionamento ao serem concebidas como sofrimentos anversos à “impotência reflexiva” experimentado pelos sujeitos capturados nas dinâmicas hedônicas e imobilizantes, frenéticas e repetitivas, do capitalismo comunicativo pós-fordista.

A reflexão de Fisher é uma recusa a reduzir a proliferação de sofrimento psíquico corrente a uma coleção de micro-problemas puramente individuais, parte da normalidade com a qual cada um tem que lidar por si. Deixando de lado a ânsia diagnóstica e de patologização, sugere compreender sintomas enquanto manifestações de um campo transpessoal abrangente. São os paradoxos e imperativos do realismo capitalista que geram uma gramática de impotência social, correlata à atomização individualista. Para atacá-los na raiz, seria necessário confrontar o próprio neoliberalismo. A questão crucial torna-se então como construir uma contra-força socialmente efetiva, capaz de produzir instituições que revitalizem o espaço público e politizem questões que a governança neoliberal invisibiliza ao empurrar para o terreno do privado, do puramente pessoal.

Decomposição e recomposição

A pergunta que Fisher passa a levantar com insistência nos últimos cincos anos de sua vida é: por que a esquerda não foi capaz de avançar desde a crise financeira de 2008? De certo modo, a crise tem o feito de quebrar o encanto: enquanto projeto político, o neoliberalismo tecnocrático foi de fato desacreditado, perdendo sua legitimidade e seu impulso para frente. Daí resultou, contudo, mais uma crise de representação do sistema político como um todo do que um sucesso de uma política de esquerda. Por quê? O realismo capitalista é parte da resposta: como essa atmosfera limita nossa imaginação, afinal “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, não temos nada para pôr no lugar. O neoliberalismo persiste por inércia – em pé mesmo morto, como um zumbi.

Imaginar o fim do capitalismo nem sempre foi tido como um esforço particularmente difícil. Até a década de 1970, na verdade, parecia bastante fácil para qualquer um – até mesmos os conservadores temiam que esse fosse o caminho fatal que o mundo estava tomando: quer se gostasse disso ou não, os ventos da modernidade sopravam no sentido da socialização crescente. Em poucas décadas, a direção inevitável da história inverte. O argumento de Fisher é que o que aparece do ponto de vista da psicologia individual como uma crença (na inevitabilidade do capitalismo) ou como uma atitude (de resignação derrotista frente a uma realidade implacável) é o resultado de uma “decomposição social” – expressão da fragmentação da classe como sujeito político coletivo, e da desintegração das formas de consciência e de solidariedade ligadas à participação na classe. Fundamentalmente, o próprio neoliberalismo deve ser visto como um projeto orientado a essa finalidade política específica: decompor.

Após a publicação de Realismo capitalista, Fisher passa a fornecer em outros escritos uma narrativa sobre o declínio do tipo de solidariedade, e de segurança material, que caracterizava o compacto social-democrata inglês do pós-guerra. Inspirando-se na análise dos pós-operaístas italianos, argumenta que, no fordismo, foi oferecida à classe trabalhadora (cuja figura hegemônica era o operário-massa da grande indústria) segurança em troca de tédio: o mesmo trabalho maçante na mesma fábrica ao longo de toda a vida, mas representados por poderosos sindicatos, que negociavam os termos da conciliação de classe. A classe proprietária, por sua vez, aceitou a seguridade social como um seguro contra a revolução. A globalização, a liberação dos fluxos internacionais de capital, a realocação geográfica e terceirização, a reconfiguração produtiva promovida pela automação e pela logística just-in-time e a formação das cadeias globais de valor, minaram as bases materiais dessa trégua.

A década de 1980 foi o derradeiro campo de uma batalha do que hoje, retrospectivamente, só podemos ver como a vitória “inevitável” do neoliberalismo. O Fisher de 2004, ainda com os maneirismos do ccru, comenta: “1984 foi uma zona de guerra de classes na qual a polícia paramilitar do Kapital multinacional esmagou os restos do operaismo orgânico”. 1984, título da famosa distopia corporativa-totalitária de George Orwell, foi, na verdade, o ano do assalto thatcherista contra os mineiros em nome da liberdade de mercado. A greve dos mineiros, repete Fisher uma e outra vez, foi uma “poderosa imagem simbólica” da derrota do operário-massa fordista e de suas formas de organização. Quando a greve terminou em 1985, “a própria existência desse nós, sujeito proletário coletivo, estava em questão”.

Em mais de um artigo, Fisher cita uma passagem de Antonio Negri, retirada do livro Arte e multitudo. Sette lettere dal dicembre 1988 [Arte e multidão: sete cartas de dezembro de 1988], que reúne cartas escritas do exílio, na França. Nela Negri descreve a transição dolorosa das esperanças revolucionárias da década de 1970 para o declínio do movimento operário e o avanço neoliberal:

“Temos que viver essa realidade morta, essa transição louca, do mesmo modo em que vivíamos na prisão, como uma maneira estranha e feroz de reafirmar a vida. […] Fomos constrangidos a sofrer alucinações românticas sombrias. Não havia mais alternativa. Temos que viver e sofrer a derrota da verdade, da nossa verdade. Temos que destruir sua representação, sua continuidade, sua memória, seu traço. Todos os subterfúgios para evitar o reconhecimento de que a realidade mudou e, com ela, a verdade, devem ser rejeitados. O próprio sangue em nossas veias foi substituído”.

Se nas décadas de 1960 e 1970 houve um período de abertura para a desnaturalização do capitalismo – expressa na proliferação de formas coletivas de consciência, nas greves gerais de massas ou selvagens, nos novos movimentos sociais – o neoliberalismo pode ser visto como uma resposta, um contra-ataque, a essas ameaças bastante reais. Fisher encara a contra-ofensiva neoliberal seguindo a análise de David Harvey, como uma estratégia de poder, como um projeto de classe; mais especificamente, de reafirmação do poder de classe. Um projeto político cuja finalidade orientadora é a decomposição da solidariedade e a desintegração da capacidade de ação coletiva das classes subalternas.

Esse objetivo estratégico foi perseguido com um método de “cenoura e porrete”. Parte do processo envolveu a perseguição de lideranças, o acosso policial sobre as organizações socialistas, o esmagamento dos sindicatos por meio da força do Estado. Como nota Fisher, nada mais simbólico desse caráter sangrento e autoritário do neoliberalismo do que o golpe militar de Augusto Pinochet (com suas torturas, desaparecimentos, campos de prisioneiros políticos) que derruba um governo socialista democrático no Chile. O golpe neoliberal interrompe um processo efervescente da auto-organização popular para abrir caminho a um regime abertamente pró-negócios. Thatcher, que sempre admirou e apoiou Pinochet, não poderia copiar todo seu modus operandi, mas mobilizou também o peso do poder coercitivo do Estado para quebrar a coluna vertebral dos sindicatos, impor fim a greves e golpear por todos os meios o “inimigo interno” (como se referia ao sindicalismo combativo em tempos de guerra das Malvinas).

O outro lado da estratégia de decomposição foi a sedução libidinal pelo individualismo consumista: a “reprogramação neurolinguística” do neoliberalismo, que atrai os trabalhadores a não se verem como membros de uma classe, mas como indivíduos autônomos cujos potenciais de realização são bloqueados por uma elite política burocrática no controle de estruturas verticais esclerosadas – como os partidos, os sindicatos e o próprio governo. Esse neoliberalismo “heroico”, populista, ao mesmo tempo que se utiliza do poder do Estado de modo autoritário para destruir formas institucionais de ação coletiva e reafirmar a disciplina do capital, mobiliza e busca capturar os desejos autênticos dos trabalhadores por liberdade, autonomia, flexibilidade e experimentação para utilizá-los como armas a fim de catalisar o processo de decomposição de classe.

A recusa do trabalhador ao tédio da fábrica fordista e às hierarquias centralizadas das organizações que floresceram sob o fordismo é metabolizada e redirecionada contra as organizações de classe, ou até contra a política de classe em geral. O realismo capitalista garantiu sua hegemonia, diz Fisher, ao desativar as pessoas como “agentes políticos” e reinterpelá-las como “indivíduos empreendedores”.

O que Fisher quer é chamar a atenção para o fato de que a passagem do fordismo ao pós-fordismo não foi imposta apenas pelo capital, mas impulsionada também pelo desejo dos trabalhadores – desejos que a esquerda tradicional não conseguiu sintetizar em um novo projeto emancipatório. Ao cavalgar esses desejos e absorvê-los para seus próprios fins, o neoliberalismo colocou o socialismo tradicional, apegado ao modelo fordista, em situação defensiva, empurrando-o para uma posição objetivamente conservadora. Thatcher foi bem sucedida em caracterizar o projeto social-democrata do pós-guerra como ultrapassado, obsoleto, burocrático, vertical, aglutinando assim o descontentamento contra uma ordem em vias de se desfazer. Seu trunfo foi apresentar-se com um vigor modernizante, como uma porta-voz de um futuro que iria entregar liberdade (e propriedade) aos indivíduos, liberando-os das restrições e regulações de um Estado distante, letárgico, aborrecido.

Há, óbvio, uma enorme discrepância entre o que os trabalhadores desejavam e o que de fato receberam. No final das contas, não era amor – era cilada. O neoliberalismo promete desburocratização, mas não pode entregá-a. Ao contrário, expande o tempo de trabalho, que tende a absorver todo o tempo de vida, e nos enreda em um constante esforço de autopromoção e autoavaliação, que nunca tem hora para acabar. Na tentativa vã de fazer tudo funcionar “como uma empresa” – incluindo serviços públicos e até pessoas – novas formas de burocracias estatais e privadas ganham vida, dos labirintos do telemarketing à avalanche de controles, métricas e sistemas de pontuação.

A eterna corrida pelo desenvolvimento de nosso “capital humano” nos empurra a trabalhar de graça, a perder de vista a diferença entre tempo livre e tempo de trabalho. Se essa vida de trabalho é exaustiva e arriscada, não há ninguém para reclamar. Se você está esgotado ou ao ponto de colapso nervoso, isso é um problema entre você e sua química cerebral. Com a dissolução das conexões sociais e comunitárias, a decomposição da consciência de classe e das organizações de classes, estamos cada um por si.

Não se trata de efeitos acidentais, se lembrarmos que o objetivo do neoliberalismo era desde o princípio a reafirmação do poder de classe. Não se tratou de liberar o mercado do Estado, mas de subordinar o Estado ao capital. O mito fundador do neoliberalismo é a contraposição entre livre mercado e Estado. Na realidade, o neoliberalismo está muito mais interessado em mobilizar o mito dos mercados para decompor as classes do que no mercado, ou nas liberdades. A ênfase no individualismo, na competição, na mercadorização da vida são, na verdade, armas, meios para um fim, a saber, a destruição da solidariedade social.

Os ideólogos neoliberais mais vulgares podem até acreditar que os seres humanos são, “por essência”, naturalmente competitivos. Já o neoliberalismo realmente existente nunca confiou nas pessoas, e se dedicou na prática à “engenharia afetiva” para disseminar competitividade, desenhando instituições que forcem a competição em todas as esferas da vida social. A “atomização generalizada” é um projeto. Do mesmo modo, a produção de ansiedade por meio de mecanismo administrativos é funcional à estratégia de subordinação de classe.

No entanto, traçar uma relação linear de causa e efeito entre o “espírito de 68” – os impulsos antiautoritárias e antiburocráticos liberados pelos grandes movimentos de massas que antagonizaram o modelo do capitalismo fordista – e o neoliberalismo seria conceder demais ao inimigo. Não havia nada na história que obrigasse a esse desfecho. Articular tais desejos em cadeia com um programa econômico pró-capital foi um feito político, vitória conquistada por uma direita neoliberal que transformou o campo conservador, e em seguida redefiniu a própria localização estrutural do centro. Sobretudo, foi a consequência do fracasso da esquerda em absorver e hegemonizar esses desejos por transformação.

Fisher se remete a Stuart Hall e suas análises de conjuntura no momento da emergência do thatcherismo, recordando os debates promovidos pelo grupo New Times na revista Marxism Today durante os anos 1980. Para Hall, a obsolescência da esquerda foi uma decorrência de seu apego a um fordismo em decadência. A pergunta deveria ser, então: como a esquerda poderia produzir sua própria versão do pós-fordismo?

Para Fisher, essa foi a pergunta que a esquerda não foi capaz de responder. Na medida em que o Novo Trabalhismo tenta endereçá-la, a resposta que encontra é “não é possível uma esquerda pós-fordista”: o máximo a que se pode aspirar é uma versão mitigada do arranjo neoliberal. A ilusão do blairismo, nota Fisher, foi se imaginar como a superação das derrotas dos anos 1980, quando na verdade não passou de ser a consequência final dessas mesmas derrotas – “a normalização pós-traumática da catástrofe”, contribuindo para destruir o que restava da própria base.

A partir de 2010, Fisher começa a ver sinais de um “descontentamento generalizado” com o realismo capitalista. É como se a crise financeira de 2008 tivesse retirado do neoliberalismo seu frenético impulso. O crash econômico e as políticas de austeridade profundamente impopulares que se seguiram, serviram para desacreditar a narrativa neoliberal. A implicação, contudo, não é que o neoliberalismo estaria fadado a desaparecer espontaneamente, ao contrário: ao longo das últimas décadas se institucionalizou, incrustou-se como parâmetro default que guia, mesmo que por inércia, o funcionamento dos governos, das empresas, das instituições multilaterais globais, assim como as expectativas e hábitos das pessoas comuns.

O neoliberalismo não precisa de legitimidade porque se tornou o modo como as coisas operam normalmente e, portanto, mesmo morto pode continuar dominando nossas vidas. Por isso um zumbi: em decomposição, apodrecendo a olhos vistos, desprovido de vitalidade, mas ainda assim em pé. É preciso mirar na cabeça. O neoliberalismo, argumenta Fisher, não cairá por si só: precisa ser desmantelado por um agente político alternativo. A questão é: onde está esse agente?

Fisher identifica que conforme a segunda década do milênio avança, emerge uma “efervescência de atividade oposicional”: protestos massivos, ocupações, confrontos com a polícia, tumultos de rua, saques. Cada vez mais fica evidente que “não há retorno para o mundo pré-2008”, registra em uma postagem de 2015. É agora aquela centro-esquerda que adotou o realismo capitalista que parece obsoleta e perdida. O centro político está confuso, atordoado, e sem novas ideias, vendo seu “sistema de realidade” desintegrar. Algo no jogo mudou. Saímos do “fim da história” para entrar em “terra incognita”. Para Fisher, a crise generalizada de confiança no sistema político significa que se
desfaz, enfim, o conforto previsível do eterno presente: a partir de agora, ou afundamos em uma “distopia niiliberal” (um jogo de palavras com niilista, iliberal e neoliberal) ou terá que emergir um novo socialismo popular.

Em um post de 2006, que antecipa temáticas cruciais do Realismo capitalista, Fisher já se perguntava: “Existe uma maneira de desafiar ou reverter a proliferação lenta, implacável e voraz da burocracia?” Sua resposta à época é tateante, incerta, pessimista a ponto de quase desesperada: “Só por uma ação coletiva que agora parece inconcebível… Só por uma mudança no clima ideológico… Só por uma mudança no clima cultural… Por onde começar?” É Fisher ensaiando seu diagnóstico de que a consolidação do “realismo capitalista” foi resultado de um “fracasso da ação política coletiva”, e da vitória de um projeto de ressubordinação de classe baseado na “decomposição da coletividade”.

Em 2015, um Fisher muito mais confiante vê a construção dessa ação coletiva não apenas como concebível mas como já em marcha: o realismo capitalista não é capaz de sobreviver quando “alternativas começam a florescer”. Com o fim do fim da história abre-se a possibilidade de reinventar o futuro: “cabe a nós construir este futuro, ainda que – em outro nível – ele já esteja nos construindo: um novo tipo de agente coletivo, uma nova possibilidade de falar na primeira pessoa do plural”. Uma espiral hipersticional, onde o aumento de nossa potência em comum retroage reforçando nossa autoconfiança coletiva, e vice-versa.

Aceleracionismos

A “orientação ao futuro” é uma característica marcante da política de Fisher e é o que o conecta diretamente com as discussões sobre o que se convencionou chamar de “aceleracionismo”, cujas raízes remetem ao ccru e, em especial, aos trabalhos de Nick Land. O termo, cunhado por Benjamin Noys em The persistence of the negative [A persistência do negativo], de 2010, originou-se de uma crítica ao tom celebratório às tendências desterritorializantes do capitalismo. Mas o termo logo encontrará seus adeptos, para os quais o aceleracionismo fala aos desejos de dobrar a aposta nas tendências “abstratas, desenraizadoras, alienantes, decodificadoras” da modernidade (como formulam Robin Mackay Robin e Armen Avanessian na introdução de #Accelerate, de 2014).

Uma das principais inspirações originais do aceleracionismo encontra-se em uma passagem de Deleuze e Guattari em O anti-Édipo na qual se perguntam sobre qual seria a verdadeira “via revolucionária”. Seria retirar-se do mercado mundial, como Samir Amin aconselhava aos países dos Terceiro Mundo? Ou talvez ir no sentido contrário: “ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodificação e da desterritorialização”? Deleuze e Guattari parecem inclinados à segunda opção: “não retirar-se do processo, mas ir mais longe, ‘acelerar o processo’, como dizia Nietzsche”. Essa conclusão, na verdade, não está muito distante do próprio Marx, que em seu Discurso sobre o livre comércio de 1848 afirma: “em geral, o sistema de proteção de nossos dias é conservador, enquanto o sistema de livre comércio é destrutivo. Rompe velhas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo do proletariado e da burguesia. Em uma palavra, o sistema de livre comércio acelera a revolução social”;

O Manifesto comunista desenha nitidamente como a sociedade burguesa articula um circuito de retroalimentação positiva: o nascimento da grande indústria, argumenta Marx, cria o mercado mundial, que acelera enormemente o desenvolvimento do comércio e dos meios de comunicação e de transporte, o que por sua vez retroage sobre a expansão da indústria. O resultado é precisamente um “processo de fuga” [runaway process]. É isso que permite à burguesia desempenhar um papel revolucionário na história, criando “maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas”. Marx insiste que o capitalismo não pode existir “sem revolucionar incessantemente os meios de produção”; o efeito dissolvente, ácido, desterritorializante do capital é tal que “tudo que é sólido e estável se desmancha no ar”. No célebre “Fragmento das máquinas” (outra peça inspiradora do aceleracionismo), dos Grundrisse, Marx chega a especular sobre um futuro no qual a tendência interna do capital de pressionar em direção ao aumento de produtividade do trabalho e à substituição do trabalho vivo por trabalho morto leva à automação total da produção.

Se tanto para Marx quanto para Deleuze a aceleração das tendências do capital conduz à sua superação, em Nick Land o capitalismo é o fim do jogo. Não é o capitalismo que se torna um limite para o autodesenvolvimento dos seres humanos, tal como na narrativa tradicional marxista, é a humanidade que eventualmente se torna um limite para o desenvolvimento do tecno-capital. Citando a injunção de Deleuze de ir “mais rápido na direção da desterritorialização”, Land já expressava sua orientação antissocialista em artigos como Machinic desire [Desejo maquínico], de 1993: “a revolução maquínica deve, portanto, ir na direção oposta à regulamentação socialista, pressionando por uma mercadorização cada vez mais desinibida dos processos que estão destruindo o campo social”. Em outro artigo, da época de sua parceria com Sadie Plant no ccru, Meltdown [Fusão], Land afirmava: “o homem é algo a ser superado: um problema, um entrave”; enquanto Plant, por sua vez, resgatava as ideias de Marx sobre o capitalismo “varrendo o passado” para declarar que “tudo o que é ciberpositivo é contra a humanidade”.

Em certo sentido, Land não está aí tão distante da ideia de Marx do capital como um “sujeito automático”, com sua própria lógica inconsciente, com sua pulsão teleológica expansiva completamente indiferente aos anseios e necessidades humanas – inerentemente niilista, o capital cresce para crescer. Há duas diferenças cruciais, no entanto: 1) Land não acredita que a “síntese dialética” final desse processo seja a reapropriação da produtividade das máquinas por uma humanidade redimida; 2) ao conceitualizar, à moda da teoria econômica neoliberal, os processos de mercado como uma atividade cognitiva, Land identifica desenvolvimento do capitalismo com a emergência da Inteligência Artificial.

O que parece para a humanidade como a história do capitalismo, diz Land, é “uma invasão do futuro por um espaço inteligente artificial que deve se montar inteiramente a partir dos recursos de seu inimigo”. O que está se constituindo em escala planetária por meio das alças de retroalimentação positiva do circuito tecno-capital é um devir in-humano da inteligência, uma hiper-inteligência com a sua própria agenda e trajetória autônoma, com a qual não é possível barganhar, “que não sente pena ou remorso ou medo e absolutamente não vai parar, nunca”. Land toma o lado desse processo imanente (uma entidade “teleopléxica” monstruosa), contra sua própria espécie, e abraça alegremente o prospecto da aniquilação humana.

No aceleracionismo landiano, os humanos são apenas “fantoches de carne” do capital,8 um mero substrato, um “obstáculo temporário”, cuja pretensão de agência é crescentemente irrelevante. Na prática, a posição de Land não difere do que Noys eventualmente chamaria de um “deleuzianismo thatcheriano”, uma celebração do fim da agência humana com o desmantelar de qualquer bloqueio na dinâmica capitalista em sua trajetória para além do humano, na explosão exponencial descontrolada das finanças e da Inteligência Artificial.

A aceleração das tendências em direção ao caos e à dissolução, à liquefação, por meio da invocação de forças monstruosas é a marca de Land enquanto um mago ensandecido, que goza do feitiço – fausticamente – escapando de qualquer possibilidade de controle. Se em Marx a crítica ao capitalismo é por vezes ilustrada com a imagem do “feitiço que se volta contra o feiticeiro”, para Land esse feiticeiro, isto é, a própria humanidade, é só um meio que a entidade se utilizou para se fazer realizar no mundo, um “fantoche de carne” de forças maiores e implacáveis. O mito landiano parece saído diretamente de um filme de horror cósmico.

Para Land, o capitalismo encarna uma “dinâmica hipersticional” em uma intensidade sem precedentes, convertendo a “especulação” em uma força eficaz na história mundial. Já a esquerda, por sua vez, seria inerentemente “desaceleradora”. “O capital se revoluciona mais completamente do que qualquer re- volução extrínseca poderia”, diz Land em A quick and dirty introduction to accelerationism [Uma introdução rápida e suja ao aceleracionismo], de 2017, “não há distinção entre a destruição do capitalismo e sua intensificação”. À esse processo acelerado de autodestruição não caberia crítica – ele é a própria crítica em ação, retroalimentando-se em sua espiral descontrolada e dissolvedora. Qualquer resistência, diria Land ao estilo borg de Star Trek, é inútil.

Se o Fisher da década de 1990 foi, de fato, influenciado por Land, chegando a pensar que a cibernética havia tornado Marx obsoleto, a partir dos anos 2000 os dois entram em uma trajetória de acentuada divergência política e filosófica (resultando no fim do ccru em 2003). O relato de Fisher é que trabalhar no setor público na Grã-Bretanha, sob o governo blairista, o fez ver que o capitalismo neoliberal “não se encaixava no modelo aceleracionista”, e que estava, ao contrário, produzindo sua própria forma de burocracia, “difusa e descentralizada”. A experiência como professor e como sindicalista, combinada com o encontro teórico com Žižek e Badiou, o empurrou para outras posições políticas, em direção à renovação da prática socialista. Fisher passa a se dedicar, em suas próprias palavras, a “sintetizar alguns dos interesses e métodos do ccru” com novas formas de política de classe. É esse movimento que está na base do que ficou conhecido por “aceleracionismo de esquerda”.

A partir de 2008 já é possível encontrar posts de Fisher e Alex Williams experimentando com a ideia de resgatar certos elementos da abordagem do ccru para reativar a esquerda socialista. Essa disposição ganha novo fôlego com a realização, em 2010, do Simpósio sobre Aceleracionismo, com a participação de Ray Brassier, Alex Andrews, Benjamin Noys, Nick Srnicek e Alex Williams. Na sua exposição, Fisher reivindica ironicamente o termo pejorativo de Noys com a provocação: “todo mundo é aceleracionista”. Reconhece a influência de Land e, simultaneamente, marca sua distância: “Land foi o nosso Nietzsche”, a mesma “bizarra mistura do reacionário com o futurista”.

Esse aceleracionismo de direita, postula Fisher, pode ser o antagonista que a esquerda precisa para sair do seu marasmo complacente. Por um lado, o realismo capitalista não é capaz de oferecer mais do que “uma simulação de inovação e novidade que disfarça a inércia” – uma “estagnação frenética” – mas, por outro, uma esquerda derrotista e nostálgica, presa numa retórica de “resistência e obstrução”, acaba irreflexivamente trabalhando a favor da anti-metanarrativa do capital como a única opção que para em pé.

“O marxismo não é nada se não for aceleracionista”, é a provocação de Fisher. Retroceder a uma crítica moral e romântica do capitalismo é trair a orientação ao futuro que animou o pensamento-prática de Marx. O que diferencia a esquerda da direita, diz Fisher, é que para a esquerda a “libertação está no futuro, não no passado”, ecoando o Marx do 18 de Brumário, para o qual a revolução social “não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro”. Ser aceleracionista nesse sentido é, seguindo a máxima de Bertolt Brecht, “não começar das coisas boas e velhas, mas das coisas novas e ruins”. Não seria então, se pergunta Fisher, para frente a única direção? Mesmo que “através da merda do capital”? “Recuar para frente” (Roland Barthes) talvez seja o único caminho.

A diferença do aceleracionismo prometeico de Fisher para o aceleracionismo fáustico de Land é que o segundo é estridentemente anti-humanista, enquanto o primeiro se reencontra com uma forma de humanismo. Para Land o tecno-capital é o verdadeiro sujeito da história, “a humanidade é seu hospedeiro temporário, não seu mestre”. Para Fisher, o capital é um parasita – ele precisa de nós, nós não precisamos dele. Por hora, o ser humano pode até ser o “fantoche de carne” do capital, mas tem potencial para se tornar seu próprio mestre.

É uma certa ternura pela carne humana (dilacerada no “moedor de carne implacável do capital”) que faz Fisher reconsiderar seu entusiasmo nos anos 1990 pela aceleração das tecnologias digitais. Ao citar Bifo Berardi sobre a “aceleração das trocas de informação”, Fisher nota a “tensão entre o infinito do ciberespaço e a finitude vulnerável do corpo e do sistema nervoso”. É organicamente impossível processar a imensa e crescente massa de informação que entra em nossas cabeças por meio dos aparelhos eletrônicos, mas ao mesmo tempo sentimos como um imperativo absorver toda essa informação a fim de nos mantermos competitivos e eficientes.

O resultado, diz Fisher, é a “sensação difusa de pânico” à medida que os indivíduos são submetidos a uma enxurrada de dados humanamente inadministrável. Não se trata, no entanto, de adotar uma postura reacionária antitecnológica, mas de avaliar que tipo de inovações técnicas podem ser apropriadas, e refuncionalizadas, a serviço da emancipação humana. A máquina de lavar, mais do que o celular, serve de modelo para o tipo de desenvolvimento maquínico que reduz a labuta.

O aceleracionismo de esquerda é movido, portanto, por um imaginário de fim do trabalho. A ideia é reforçada pela publicação do Manifesto aceleracionista, de Alex Williams e Nick Srnicek, em 2013. O manifesto procura organizar em forma de um diagnóstico e programa sumários, em tom confiante e dogmático, o tipo de política que Fisher estava tateando: a reivindicação da modernidade e de um certo prometeanismo, o capitalismo neoliberal como uma trava que bloqueia as possibilidades de progresso humano, a ênfase de que a “plataforma material” do capital (suas inovações técnicas e infraestruturas) não precisa ser destruída, mas refuncionalizada para “fins comuns”, subvertida e reapropriada. O mesmo impulso prometeico está presente no Manifesto xenofeminista do coletivo Laboria Cuboniks (do qual Helen Hester é uma das figuras centrais), aliado a uma política emancipatória futurista de abolição de gênero.

Srnicek e Williams logo abandonam o termo “aceleracionismo” e a referência à terminologia de Nick Land, quando pu- blicam em 2015 o livro Inventing the future: postcapitalism and a world without work [Inventando o futuro: pós-capitalismo e um mundo sem trabalho], mas curiosamente retomam o conceito de hiperstição, ao reivindicar um espaço para a utopia na prática política transformadora: “Utopias são a personificação das hiperstições do progresso. Exigem que o futuro seja realizado, constituem um objeto de desejo impossível, mas necessá- rio, e nos dão uma linguagem de esperança e aspiração por um mundo melhor”. A influência desse clima teórico catalisado por Fisher também transparece em outros livros britânicos da mesma época, que apontam para um política de esquerda orientada ao futuro, como Pós-capitalismo: um guia para o nosso futuro, de Paul Mason, e Comunismo de luxo totalmente automatizado, de Aaron Bastani.

Mais até do que a orientação do futuro, no entanto, o que Fisher vê de potente na posição aceleracionista é sua carga libidinal, e a possibilidade de uma política acoplada ao nível do desejo. A questão que ele se coloca é de como “instrumentalizar a libido para propósitos políticos”. Visto desse ângulo, não causa surpresa que Fisher tenha se interessado pelo populismo de esquerda, ao passo que Land se aproximou do populismo de direita.

Para Land, que considera Steve Bannon “um político excepcionalmente interessante”, a alt-right “marca o fim da governança global com base no evangelho do universalismo igualitário”. Seu ódio pelas instituições liberais e pela esquerda acadêmica, seu desprezo pelo “politicamente correto” e pela linguagem direitos humanos e valores universais, e até seu fascínio por Lovecraft e por “mágica memética”, o torna um parceiro de cama ideal para essa direita alternativa. Não à toa, é fácil encontrar hoje tuítes de Land comentando positivamente sobre Trump e mesmo Bolsonaro. Seu Iluminismo Sombrio, baseado no neorreacionarismo de Mencius Moldbug, o aproxima da deriva autoritária da “ideologia californiana” dos magnatas do Vale do Silício (Peter Thiel e Elon Musk são os nomes mais característicos).

Fisher, por sua vez, acompanhou de perto o aparecimento de fenômenos políticos como o Syriza na Grécia, o Podemos e as plataformas municipais na Espanha, o corbynismo na Inglaterra e a campanha de Bernie Sanders nos Estados Unidos. Encarava-os como experimentos, etapa necessária de um processo longo e conturbado, de tentativa e erro, no difícil caminho de reorganização de uma esquerda anticapitalista com desejo de ganhar. Esses experimentos poderiam fracassar, ou ser esmagados, mas não há vergonha em perder se você tentou vencer. O crucial, diz Fisher, é adotar uma postura estratégica, aprender com os erros e aumentar nossa “inteligência coletiva”, a fim de potencializar as chances de vitória no futuro.

No último post de blog que escreveu, e que nunca chegou a publicar, Fisher analisa a ascensão da direita populista, expressa na eleição de Trump e no Brexit. Observa que a campanha de Trump estava possuída por um “sentimento de excitação efervescente”, de “imprevisibilidade anárquica”, impulsionada pelo sensação de “pertencer a um movimento em construção”, ao passo que a campanha da Hillary Clinton oferecia apenas mais do mesmo. A irrupção desses fenômenos ocorre sobre o pano de fundo de uma insatisfação subterrânea com o realismo capitalista, embora o que é rejeitado nessas “revoltas rudimentares” seja sobretudo a parte do realismo. O populismo de direita fala às fantasias, aos desejos nostálgicos de restauração. Trata-se, para Fisher, de um projeto de parte da própria elite para substituir um establishment por outro, agitando um fervor missionário político que o realismo capitalista tendia a diluir e deprimir. E marca o fim da distopia banal e maçante dos longos anos 1990, dominados pela tecnocracia neoliberal pós-política – agora estamos em outro tipo de distopia, e se quisermos fazer frente a ela, teremos que inventar novas formas de articulação desejantes.

Desejos pós-capitalistas

Os últimos anos de Fisher foram dedicados a pensar em alternativas positivas ao realismo capitalista. Esses esforços se desdobraram em várias direções, sem resultar em uma obra finalizada: realismo comunista, comunismo luxuriante, comunismo lisérgico.

Por um lado, um Fisher cada vez mais pragmático e programático estava preocupado em pensar uma política que disputasse o centro do tabuleiro, o mainstream, que pudesse ter efeitos práticos institucionais e avançasse concretamente na direção de consolidar uma base de poder. Esse tipo particular de orientação, diz Fisher, não aposta todas as suas fichas numa transformação repentina e definitiva, e nem concede o terreno do que é “realista” ao inimigo. Trata-se de avaliar sobriamente os recursos que estão disponíveis para nós aqui e agora, e pensar sobre como podemos melhor usá-los e ampliá-los, para nos movermos – “talvez devagar, mas certamente com propósito” – de onde estamos para onde desejamos chegar.

Por outro lado, o mesmo Fisher inspira-se na contracultura dos anos 1960 e 1970 para avançar o “princípio psicodélico-pro-meteico” da consciência lisérgica: qualquer realidade é provisória, plástica, sujeita a transformação por meio do desejo coletivo.

É um Fisher que reivindica Stuart Hall, no seu sonho de articular a “modernidade libidinal” (que encontrara na música popular) com o “projeto político progressista” da esquerda organizada. De Hall, Fisher herda a propensão de ver os vários estratos da vida social, em especial a cultura, como “terrenos de luta” e não “domínios do capital”, essencializados e monolíticos.

No fim das contas, a posição de Fisher é que não precisamos escolher entre uma “abordagem hegemônica” e uma “política do desejo”. A tarefa é justamente renovar a política de classe por meio do desejo – construir coletivamente uma política que possa competir com o capitalismo no nível libidinal… e vencer! Práticas moleculares de expansão da consciência, por exemplo, não são opostas à “ação indireta”, necessária para produzir transições ideológicas persistentes. É preciso levar as instituições a sério, mas compreendendo que elas não serão renovadas por dentro, só pela ação de massas de movimentos oposicionais. É a combinação do utópico com o pragmático que tanto se faz necessária hoje: pragmatismo sem utopia leva à resignação rebaixada do neoliberalismo progressista, enquanto utopia sem pragmatismo nos deixa “na posição da bela alma: com as mãos limpas, mas inúteis”.

A tarefa perene da esquerda passa por criar uma visão positiva que possa galvanizar apoio amplo o bastante para ganhar vida própria. Em um diálogo com Judy Thorne (do coletivo Plan C) sobre comunismo luxuriante, Fisher argumenta: “Muito do capitalismo funciona por meio de processos hipersticionais, […] precisamos pensar sobre como seria uma prática hipersticional comunista”. Ou seja, precisamos inventar ficções sobre o futuro, para que elas possam se tornar reais.

A filosofia de Fisher sempre almejou ir “além do princípio do prazer” – o processo de dessubjetivação, de sair de si mesmo, de abandonar o familiar, pode às vezes ser doloroso, mas é o único caminho pra frente. A intervenção pública de Fisher buscou chacoalhar uma esquerda complacente e esgotada, assombrada pelo seu passado e refém dos próprios fracassos. O propósito era empurrá-la para fora de seu imobilismo confortável, de seus circuitos impotentes de culpa e ressentimento.

Essa não é tarefa para um indivíduo: “nenhum indivíduo pode mudar nada, nem mesmo a si mesmo”. A ideologia individualista da auto-ajuda é puro “voluntarismo mágico”, invocado para nublar as causas estruturais da miséria real. O desejo pelo futuro, que poderia exercer mais atração libidinal do que a “revolta na ordem” “niiliberal”, precisa ainda se encarnar em um “novo tipo de agente coletivo”. Fisher, fiel que era de um “destino secular”, via sinais de que essa recomposição já estaria em curso: uma onda ascendente de política experimental, com as pessoas comuns redescobrindo a consciência de grupo e a potência do coletivo.

De todo modo, gostemos ou não, a política está de volta. A história começou a se mover novamente. A desintegração é uma abertura perigosa, e nada está garantido – mas, como diz Fisher, “a vitória da direita só é inevitável se nós pensarmos que é”.

Sobre os autores

é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

Rodrigo Gonsalves

é psicanalista, professor, tradutor e escritor. Mestre e Doutor em Filosofia pela European Graduate School (EGS/Suíça). Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (IPUSP/Brasil). Editor Associado da Jacobin Brasil, Membro do Latesfip (USP), Membro do Gpol/Laboratório de Psicanálise e Sociedade (PSOPOL/IPUSP), Membro e coordenador do Centro de Formação, Membro do comitê editorial da CT&T: Continental Thought and Theory (Nova Zelândia) e Editor-Membro da Editora Lavra Palavra.   

Cierre

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Published in Análise, Capital, Europa, Livros and Política

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