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Por isso, Mark Zuckerberg nos convida a sermos arquitetos de novos mundos, novas realidades… desde que nosso acesso a elas seja mediado por suas empresas. Albert Gea / Reuters

Multiversos, metaversos e o espetáculo do realismo capitalista

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Incapaz de criar novos universos, a industria cultural tem apostado em monetizar nossas nostalgias. Mas a obsessão contemporânea com universos paralelos e franquias do passado talvez seja, paradoxalmente, mais um sintoma de nossa incapacidade de pensar novos futuros.

No dia 28 de outubro de 2021, durante o Facebook Connect, evento anual da empresa de Mark Zuckerberg sobre realidade virtual, ocorreu o anúncio do Metaverso. O ambicioso projeto representa a visão da Meta (novo nome da empresa-mãe do Facebook) para o futuro da internet: uma rede de mundos virtuais a serem vivenciados de forma imersiva através de ferramentas de realidade virtual e aumentada.

No ano seguinte, em 23 de julho, depois de um ano de ausência, a Marvel Studios retornou a San Diego Comic-con, mega evento de cultura pop que ocorre há décadas na Califórnia. Se a San Diego Comic-con alcançou tamanha magnitude, muito é em virtude da hegemonia cultural obtida pela Disney nos últimos anos. Há tempos que a convenção deixou de ser focada no universo das histórias em quadrinhos para se tornar uma espécie de Meca geek, sobretudo após o ingresso da Marvel Studios no evento.

O showman Kevin Feige, presidente da Marvel Studios e seguramente um dos homens mais influentes do mundo, subiu ao palco principal da convenção para anunciar o calendário de produções do chamado MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Entre os infinitos anúncios dos produtos que pautarão o monotemático ecossistema hollywoodiano, destacou-se a revelação da Saga do Multiverso, novo mega-acontecimento que interliga todas as produções da fase 6 da Marvel. 

O conceito de multiverso já havia sido apresentado, contudo, no recente Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa. Em mais um ato que confirmou meses de expectativas dos fãs, a Marvel reuniu as três recentes e mais populares encarnações cinematográficas do Homem-Aranha em um mesmo filme. Representando franquias antigas – e universos diferentes – os ex intérpretes do super-herói se juntaram ao Homem-Aranha de Tom Holland para enfrentar os mesmos antagonistas dos antigos filmes do personagem.

“Para Marx, as sociedades em que domina o modo de produção capitalista são caracterizadas por uma especialização da divisão social do trabalho como jamais vista.”

Diante do evidente esgotamento de ideias presente nos filmes de super-heróis, a apresentação de um universo infinito de realidades alternativas mostrou-se uma das decisões mais perspicazes da Marvel. Capitalizando na nostalgia – que parece cada vez mais breve – dos fãs, a Marvel renova o interesse pela franquia ao trazer antigas estrelas de seus produtos. O mais recente Homem-Aranha realiza uma celebração apoteótica do regresso de atores para os exatos papéis que eles haviam interpretado alguns anos antes. O estúdio busca solucionar, assim, a contradição essencial de qualquer franquia cinematográfica: como produzir filmes que possam, simultaneamente, ter similaridade e continuidade com aquilo já aprovado pelo público e, ainda assim, mantenham a aparência de novidade?

Uma obsessão pelo tropo narrativo e mesmo pela experiência de universos paralelos parece crescer dentro dos grandes monopólios de mídia estadunidenses. O que ela pode nos dizer sobre as novas formas da ideologia em nossos tempos?

A separação consolidada

Em 1967, Guy Debord lançou A sociedade do espetáculo, livro em que sintetizou em bombásticos aforismos anos de reflexão e militância junto à Internacional Situacionista (IS). Com forte influência da obra de Karl Marx e do recém redescoberto História e consciência de classe, do jovem György Lukács, o livro apresenta de forma desdobrada o conceito de Espetáculo, que já havia aparecido nos jornais da IS, buscando dar conta das mais recentes consequências da subsunção real do trabalho ao capital e da sociabilidade humana à forma-mercadoria.

Ao contrário do que leituras apressadas ou certa vulgarização do conceito podem fazer crer, o conceito de Espetáculo não se trata de um movimento de denúncia de uma “realidade falsa” degradada, feita em nome de alguma noção de autenticidade. O Espetáculo é, na verdade, uma consequência da alienação da atividade prática humana pelo Capital e da equivalência abstrata entre todas as coisas provocado pelo caráter fetichista da produção de mercadorias.

“’O Espetáculo’, frisa Debord, ‘não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens’.”

Para Marx, as sociedades em que domina o modo de produção capitalista são caracterizadas por uma especialização da divisão social do trabalho como jamais vista. E aqui pouco importa se o trabalho em questão é de um imigrante ilegal chinês trabalhando como operário em uma obra em Cingapura ou de um animador 3D britânico trabalhando 100 horas por semana em condições precárias no novo blockbuster dos estúdios Marvel. Mas, embora esta divisão do trabalho altamente especializada traga consigo enormes ganhos de produtividade, ela está submetida e determinada por uma esfera de circulação impessoal e homogeneizadora (20 varas de linho = 1 casaco = 1 quarter de trigo = 2 Libras Esterlinas, para retomarmos o infame exemplo de Marx no primeiro capítulo de O Capital). Ao nível da totalidade social, o trabalho humano e seus frutos tornam-se parciais e abstratamente intercambiáveis. A marcha da forma-mercadoria arrasa o terreno das diferenças, singularidades e qualidades e usa-o para erigir o reino da produção extensiva e quantitativa.

Neste mundo realmente invertido, objetos criados pelas mãos e mentes humanas ganham vida própria e, pouco a pouco, as imagens passam também a conquistar autonomia. “O Espetáculo”, frisa Debord, “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. E se a produção extensiva e a equivalência geral são características da sociedade capitalista e o Espetáculo é seu desdobramento natural, talvez conceitos como Multiverso e Metaverso sejam a forma ideal para o Espetáculo assumir em nossos tempos de expectativas decrescentes. Um tempo em que nossa imaginação política pouco consegue fazer além de conceber infinitas variações do mundo em que já vivemos.

Por isso, não importa quantos portais para universos paralelos os heróis do MCU atravessem, tudo que encontrarão serão sutis variações de si mesmos, talvez interpretados por outros atores, talvez com uniformes ligeiramente diferentes (a desculpa perfeita para novas coleções de action figures e produtos licenciados). Por isso, Mark Zuckerberg nos convida a sermos arquitetos de novos mundos, novas realidades… desde que nosso acesso a elas seja mediado por marcas e empresas com as quais já estamos mais que familiarizados no mundo real.

O Eterno Agora como sintoma do Lento Cancelamento do Futuro

“Quando, em 1977, ano de uma mudança radical, um grupo de músicos ingleses gritou ‘No future’, parecia um paradoxo a que não se deveria dar muita importância. Na realidade, tratava-se de um anúncio muito sério. A percepção do futuro começava a mudar. 

Porque o futuro não é uma dimensão natural da mente humana, é uma modalidade de percepção e de imaginação, de espera e de avanço. E essa modalidade se forma e se transforma no curso da história.”

Depois do Futuro – Franco “Bifo” Berardi

A noção de que não há alternativas e que a população não possui soberania sobre as decisões políticas e econômicas, restando se adequar a um cenário de restrição e expectativas decrescentes, pauta o imaginário neoliberal. Talvez nada tenha materializado de forma tão cristalina essa realidade do que a doutrina There is no Alternative (TINA), de Margaret Thachert. Mark Fisher nomeou este cenário de “Realismo Capitalista”. Para o filósofo e crítico cultural britânico, o Realismo Capitalista é uma atmosfera ideológica pervasiva, que ensina as pessoas a rebaixarem suas expectativas e acreditarem que qualquer esperança em vislumbrar uma alternativa ao capitalismo consiste em pura ilusão. 

O Realismo Capitalista, contudo, parece colonizar as realidades outras possíveis dos multiversos e metaversos da cultura pop. Em Doutor Estranho: No Multiverso da Loucura, recente blockbuster da Marvel Studios, os personagens viajam por dezenas de realidades variantes às que pertencemos. As mudanças dos infinitos multiversos, contudo, são meramente cosméticas e suas potencialidades criativas são domesticadas. O conceito de multiverso da Marvel é a concreção da sistemática repetição, um eterno retorno aos mesmos personagens, mitos e narrativas.

O multiverso opera de maneira profundamente autofágica, guiado por um mosaico de possibilidades paradoxalmente restrito. Nesse sentido, as “infinitas” oportunidades trazidas pelo multiverso parecem estar circunscritas a ordinária duplicação. O Dr. Estranho atravessa realidades paralelas e surge em uma Nova York em que os sinais de trânsito são ligeiramente diferentes. Os super-heróis ganham rostos novos, porém familiares. Esses novos rostos, contudo, seguem sugestões de casting feitas pelos próprios fãs, o que é sintomático do modus operandi responsivo de Hollywood. 

Em um contexto que reboots, remakes e franquias se apresentam como a saída mais segura – e lucrativa – para os grandes estúdios, a Marvel entrega ao público exatamente o que é pedido. Esse cenário de miséria imaginativa também parece colonizar o imaginário do público. Ao reproduzir um macrocosmo regidos pelas relações de produção capitalistas, Hollywood parece determinar que o capitalismo não é somente desejável, mas inabalável. Se sonhar com novos futuros está interditado, tudo o que podemos fazer é experimentar variações do “agora”.

Twin Peaks e a Espectrologia

Em sua prolífica produção como crítico cultural, Mark Fisher constantemente retorna ao conceito de Espectrologia (hauntology, por vezes também traduzido como Fantologia, Rondologia e Assombrologia). Cunhado por Jacques Derrida em Espectros de Marx, o termo buscava designar um estudo geral dos Espectros, objetos em uma posição ambígua entre a presença e ausência.

Os Espectros derridianos podem ser entendidos como virtualidades que possuem agência sem necessariamente possuírem existência. Podem ser vestígios daquilo que já foi e não mais é (como, por exemplo, a sombra que a então recém-extinta União Soviética ainda projetava sobre o movimento operário da época) ou daquilo que ainda não é, mas pode vir a ser (o “espectro do Comunismo” da abertura do Manifesto Comunista, que assombrava “os poderes da velha Europa” justamente pela possibilidade de sua efetivação).

Nos textos de Fisher, no entanto, o conceito de Espectrologia ganha um sentido ligeiramente diferente. Ele designa artistas e obras de pathos melancólico, que utilizam certos procedimentos estéticos que ressaltam ausências e incompletudes como forma de produzir fissuras na fachada homogeneizada da cultura de massas. 

Em nossa era de remakes e reboots, poucas obras audiovisuais exemplificam o conceito fisheriano de espectrologia melhor do que a série Twin Peaks – O Retorno, de David Lynch e Mark Frost. Lançados em 2017, os 18 episódios de Twin Peaks poderiam ter sido apenas mais um exemplo de reboot de prestígio para uma série clássica dos anos 90. As escolhas narrativas tomadas pelos roteiristas e os procedimentos estéticos da direção de Lynch, no entanto, buscam minar qualquer apelo simplório à nostalgia do público, utilizando justamente os conceitos de realidades paralelas e personagens duplicados.

Em uma trama desenhada para simultaneamente entreter e testar a paciência dos espectadores, Dale Cooper, protagonista da série original, é transformado em Dougie Jones. Como Dougie, Cooper passa boa parte da temporada em um estado semi-catátônico, vivendo uma comédia de erros em um subúrbio de Las Vegas, longe dos mistérios da cidade de Twin Peaks. A série passa, então, a girar em torno da expectativa do retorno de Cooper e com ele, quem sabe talvez, dos elementos familiares das temporadas originais da série (tortas de cereja, romance adolescente, traições novelescas, assassinatos macabros…). Lynch e Frost utilizam a transformação de Cooper como forma de negar a possibilidade de Twin Peaks – O Retorno ser apenas um reboot reconfortante e nostálgico da série original. Os atores e personagens que conhecemos estão ali, mas o que torna-se visível é justamente uma ausência de familiaridade do espectador com aquele universo. Um espaço para o novo se abre em meio à repetição, e os episódios mais marcantes de Twin Peaks – O Retorno são justamente aqueles que parecem mais distantes das fórmulas consagradas por Lynch e Frost nos anos 90.

“O conceito de multiverso em Twin Peaks não funciona como forma de apresentar diferentes variações da mesma realidade ou dos mesmos personagens, mas como forma de desestabilizar qualquer identidade.”

Se esta escolha de Lynch e Frost já parece bastante ousada no atual cenário de produção audiovisual, o clímax da série dobra essa aposta. Cooper atravessa um portal para outra realidade tentando resgatar Laura Palmer, personagem cujo assassinato foi o gatilho das primeiras temporadas da série. Nesta nova travessia de portais, no entanto, Cooper mais uma vez assume uma nova identidade. Para seu choque, Laura Palmer também possui outro nome e nenhuma lembrança de sua vida em Twin Peaks. O conceito de multiverso em Twin Peaks – O Retorno, não funciona como forma de apresentar diferentes variações da mesma realidade ou dos mesmos personagens, mas como forma de desestabilizar qualquer identidade. Twin Peaks – O Retorno torna-se, paradoxalmente, uma série sobre a impossibilidade do retorno de Twin Peaks.

A ideia de Espectrologia, então, parece ser uma das figuras do papel criador da negatividade (também uma aposta das produções artísticas dos Situacionistas) na época do Realismo Capitalista. Contra a nostalgia generalizada e a experiência da novidade como mera variação do atual estado das coisas, uma aposta na decomposição dos objetos culturais cultuados parece nos abrir a possibilidade que algo novo, enfim, volte a surgir.

Sobre os autores

é realizador audiovisual e mestrando na Internationale Filmschule Köln, na Alemanha.

é doutorando em Governo e Política pela University of Maryland e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Cultura, Filme e TV and Tecnologia

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