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O presidente Ronald Reagan discursa à nação no Salão Oval sobre legislação tributária em julho de 1981. Escritório de fotos da Casa Branca / Wikimedia Commons

Os ricos não merecem ficar com a maior parte do seu dinheiro?

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Tradução
Everton Lourenço

Magnatas da tecnologia, atletas, artistas e empresários ricos sempre surgem em acaloradas discussões demandando a redução de impostos. Mas eles estão errados. A riqueza é criada socialmente e a redistribuição apenas permite que mais pessoas aproveitem os frutos do seu trabalho.

Extraído do livro ABC do Socialismo, escrito pelos colaboradores da Jacobin (Autonomia Literária, 2022)


Magnatas da tecnologia, atletas brilhantes, artistas e apresentadores adorados quase sempre surgem em discussões acaloradas sobre impostos. Você não gosta do seu iPad? E do Harry Potter? Economistas neoliberais defendem que figuras como Steve Jobs, J. K. Rowling ou LeBron James deveriam ganhar mais dinheiro que o resto de nós, afinal de contas, nós – os consumidores – somos quem compramos seus produtos. O pagamento mais alto criaria o incentivo necessário para o trabalho duro e a inovação dos quais mesmo os mais preguiçosos entre nós se beneficiam.

Apesar de intuitiva, essa visão não se sustenta. Defensores de baixos impostos sobre os ricos deliberadamente escolhem exemplos das áreas de tecnologia e entretenimento, sugerindo que os membros da elite seriam grandes inovadores, realmente talhados de alguma madeira diferente do resto de nós. Mas uma olhada de relance na lista dos maiores CEOs nos Estados Unidos nos conta uma história bem diferente: em 2014 o executivo mais bem pago foi David Zaslav, da Discovery Communications, que recebeu mais de 150 milhões de dólares. Sua grande contribuição para o empreendimento humano? Transmitir “Honey Boo Boo”.

A maioria das pessoas entende isso e acredita que os ricos deveriam pagar mais impostos. De acordo com uma pesquisa da Gallup de 2015, 62% acreditam que as pessoas de renda mais alta são “muito pouco” taxadas, enquanto apenas 25% acham que elas pagam a sua “justa parte”. Além disso, 69% acreditam que as corporações não são taxadas o bastante, e só 16% acham que já está o suficiente assim. No entanto, a justificação socialista para os impostos se baseia em uma visão – não usualmente capturada em pesquisas de opinião – sobre como a riqueza capitalista é de fato criada. Para explorar essa visão, precisamos primeiro entender o que são os impostos e o que não-socialistas pensam sobre eles.

Imposto no capitalismo

A política fiscal realiza duas funções em uma sociedade capitalista. Primeiro, ela determina qual parcela do total do “bolo econômico” será gerenciada pelo poder público, na forma de receita governamental, e quanto sobrará para o uso dos atores privados como indivíduos e corporações. Segundo, ela estipula como aquela parcela pública é dividida entre as necessidades e desejos concorrentes dos indivíduos, organizações e corporações. A primeira função diz respeito ao controle de recursos, a segunda é uma questão de alocação.

Mesmo quando um governo tem uma alta receita, não necessariamente a aplica para fins progressistas. Considere, para começar, as enormes somas que fluem para as corporações na forma de subsídios ou de pesquisa e desenvolvimento financiada pelo Estado, e fica fácil de enxergar como os governos podem redistribuir para cima, para baixo ou horizontalmente. Em uma economia capitalista, onde recursos produtivos permanecem como propriedade privada, os socialistas exigem que uma porção significativa do produto social seja controlada publicamente e redistribuída para baixo, de maneira democrática.

Entretanto, nos Estados Unidos hoje, a visão “libertária” de que “imposto é roubo” se infiltrou tão fundo nas concepções cotidianas sobre propriedade que mesmo aqueles que defendem impostos progressivos muitas vezes aceitam a premissa de que existiriam ganhos pré-impostos que as pessoas recebem e que deveriam possuir por completo. Mesmo o credo progressista de que todos precisam contribuir com sua “parte justa” está baseado na ideia implícita de que tanto os trabalhadores quanto o capital pagam impostos, de forma semelhante, devido a uma obrigação cívica de abrir mão de uma parte do que é deles para a melhoria da sociedade.

Pelos mesmos motivos, “libertários” defendem que se os ganhos pré-impostos são o produto direto do próprio esforço de uma pessoa (ou corporação), deveriam poder usá-lo como bem entenderem. Nessa visão, mesmo se o governo tivesse decidido democraticamente cobrar dos ricos uma taxa mais alta, a cobrança de impostos permaneceria como algo fundamentalmente injusto. Na formulação extrema do filósofo político Robert Nozick, “a taxação de ganhos do trabalho é comparável a trabalho forçado.”

Esse ponto de vista tem sido corretamente criticado pelos progressistas. Mas os socialistas não deveriam retroceder ao critério comum progressista para a taxação: de que a capacidade de pagar de uma pessoa, ou corporação, deveria determinar a quantidade que deveriam pagar. Essa justificativa familiar circula mesmo entre pessoas de esquerda, que ouvem nela um eco do slogan “de cada um segundo suas habilidades, a cada um segundo suas necessidades.”

“A taxação fornece um remédio parcial para a desigualdade estrutural e essencial da sociedade capitalista.”

Essa perspectiva liberal-progressista sugere uma de duas coisas, ambas incorretas. Primeiro, que os impostos seriam um tipo de “mal necessário” para aqueles que estão sendo taxados: mesmo se os ganhos pré-impostos de uma pessoa ou corporação forem o resultado de seu próprio trabalho, seria mais prático para a sociedade taxar parte desses ganhos para propósitos públicos do que deixá-los sob controle privado. Ou, então, que taxar mais os ricos seria só uma questão de sermos justos, uma questão de equidade. Ambas visões nos deixam presos de volta no pântano “libertário” – a política fiscal não estaria invadindo os direitos do indivíduo? Então a equidade deveria atravessar os direitos individuais? E, em última instância, o argumento socialista para alta taxação progressiva não violaria os direitos do indivíduo também? Por que os socialistas odeiam tanto a liberdade?

O mercado precisa do Estado

A visão socialista de redistribuição dentro de uma sociedade capitalista precisa rejeitar uma premissa importante presente em quase todos os debates sobre impostos: que a renda pré-impostos seria algo recebido unicamente pelo esforço individual e possuído de maneira privada antes do Estado intervir e tomar, artificialmente, parte dela. Uma vez que deixemos para trás essa fantasia “libertária”, fica fácil perceber que as rendas individuais e corporativas são possibilitadas apenas através da ação estatal financiada pelos impostos.

A economia capitalista não é autorregulável. A primeira pré-condição para que as empresas possam lucrar são os direitos de propriedade garantidos pelo Estado, que dão a algumas pessoas a posse e o controle sobre recursos produtivos, enquanto exclui outras. A segunda é que os governos precisam gerenciar os mercados de trabalho para garantir que as necessidades das empresas em termos de habilidades e capacidades sejam supridas. Os Estados fazem isso estabelecendo políticas educacionais e de imigração. Todo Estado capitalista também tenta mitigar os riscos do mercado de trabalho, seja o risco de escassez de trabalhadores para as empresas ou de desemprego para os trabalhadores.

“A maioria dos assim chamados “libertários” aceitam que o controle estatal sobre o suprimento de dinheiro e taxas de juros são necessários para estimular ou desacelerar o crescimento.”

Terceiro, a maioria dos capitalistas querem que os Estados façam cumprir leis antimonopólio, contratuais, criminais, de propriedade e de direito penal, pois isso torna as interações no mercado mais previsíveis e confiáveis. E, finalmente, a economia capitalista precisa de uma infraestrutura funcionando.  Mesmo a maioria dos assim chamados “libertários” aceitam que o controle estatal sobre o suprimento de dinheiro e taxas de juros são necessários para estimular ou desacelerar o crescimento quando a economia precisa.

Tudo isso é feito com impostos. Resumindo, a própria noção de renda ou lucros pré-impostos é um truque de contabilidade. A renda de uma pessoa ou os lucros de uma corporação são em parte o resultado do governo coletando impostos e criando ativamente as condições sob as quais eles foram capazes de ganhar dinheiro, em primeiro lugar. Nesta estrutura, “taxar os ricos” não é meramente um grito de rancor ou uma exigência por aquilo que é justo.

A visão socialista

O argumento socialista para a taxação e redistribuição progressiva é construído a partir de três fatores básicos sobre como o capitalismo funciona. Primeiro, como acabamos de ver, a renda pessoal e os lucros corporativos não são simplesmente o resultado de trabalho individual e competição entre as empresas – são parte de um produto social mais abrangente. A renda total gerada em uma sociedade capitalista é o resultado de um esforço social coletivo, tornado possível por uma arquitetura social e legal específica, e canalizado por meio de instituições tanto privadas quanto públicas.

Segundo, a desigualdade de classes que resulta da geração desse produto social é relativa. Os capitalistas são capazes de acumular enormes quantias de riqueza apenas por que os trabalhadores não podem fazer o mesmo: as empresas podem subir seus lucros na proporção inversa aos custos de trabalho que pagam. A condição para essa relação é, novamente, política – e mantida através da receita dos impostos. As empresas confiam nos Estados para fazer cumprir os direitos de propriedade e os contratos que mantém a sua posse sobre os recursos produtivos da sociedade – seus “meios de produção” – nas mãos de bem poucos. Como resultado, no capitalismo, a maioria das pessoas trabalha para outras, não contratam outras pessoas para trabalhar para elas. Além disso, os capitalistas empregam os trabalhadores apenas quando acreditam que os esforços desses trabalhadores farão a empresa ganhar mais dinheiro do que receberão de volta na forma de salário – o contrário seria suicídio no mercado.

“A redistribuição através da taxação é uma forma de estender a liberdade individual – e não de reduzi-la, como afirmam os ‘libertários’.”

É claro, trabalho duro, astúcia e sorte podem dar a alguns trabalhadores a possibilidade de se tornarem capitalistas. Mas a estrutura básica do capitalismo, em que um pequeno número de pessoas possui a maior parte dos ativos produtivos, garante que a vasta maioria das pessoas (na melhor das hipóteses) passará sua vida recebendo salários, não lucros. A taxação fornece um remédio parcial para a desigualdade estrutural e essencial da sociedade capitalista.

Terceiro, a redistribuição através da taxação é uma forma de estender a liberdade individual – e não de reduzi-la, como afirmam os “libertários”. A liberdade, de acordo com o teórico Isaiah Berlin, tem uma composição dupla. Por um lado, existe a liberdade negativa, a ausência de coerção ou o “livre de” que é a marca da maioria das concepções comuns de liberdade hoje. No que diz respeito à coerção, impostos financiam uma variedade de provisões públicas que oferecem aos cidadãos alguma medida de liberdade da tirania privada das empresas. Elas formam a base inteira do aparato estatal que, em uma sociedade capitalista, é a única força cujo poder excede o da classe capitalista como um todo.

Sem leis proibindo a escravidão, escritas por legislaturas e aplicadas em cortes jurídicas sustentadas pelos cofres públicos, as pessoas seriam compelidas pela ameaça de violência ou da fome a trabalhar em troca de dinheiro nenhum. Sem regulações, como aquelas que demandam pelo menos uma segurança mínima no ambiente de trabalho ou aquelas que obrigam a administração a se envolver em negociações coletivas, os trabalhadores perderiam o pouco de voz que possuem sobre como o seu trabalho é organizado.

“Em uma sociedade verdadeiramente socialista, a combinação de igualdade política e igualdade econômica ofereceria a todos um grau bem maior de liberdade.”

No contexto da política fiscal, porém, a liberdade positiva também importa. Liberdade positiva é a “capacidade de” – a capacidade de fazer coisas, e a possibilidade de escolher objetivos e fazer o esforço para realizá-los. Tal liberdade requer recursos. Em sociedades capitalistas com baixos níveis de redistribuição, a liberdade positiva é um jogo de soma-zero: uns poucos desfrutam muitíssimo dessas capacidades às custas da maioria. Uma política fiscal que divide o produto social de uma maneira que permite que algumas pessoas vivam em opulência enquanto outras mal conseguem pagar as contas ou sobreviver, não pode se gabar por promover liberdade. O sistema público de educação, por exemplo, que oferece aos cidadãos a oportunidade de desenvolver conhecimento e habilidades na busca de suas ambições coletivas e individuais, é um alicerce de liberdade positiva que só pode ser sustentado por taxação.

Em uma sociedade verdadeiramente socialista, a combinação de igualdade política e igualdade econômica ofereceria a todos um grau bem maior de liberdade – tanto de liberdade negativa quanto de liberdade positiva – do que é possível desfrutar sob o capitalismo. Até que tornemos esse mundo realidade, a redistribuição progressiva através de impostos é tanto uma maneira de compensar desigualdades estruturais, como a forma primária pela qual podemos expandir e estender a liberdade para tantas pessoas quanto for possível.

O problema é que estamos indo na direção errada. Durante as últimas décadas, os ganhos financeiros da crescente produtividade do trabalho tem fluído primariamente para o topo, enquanto as taxas de impostos sobre os altos escalões foram baixadas drasticamente, agora se aproximando de níveis anteriores aos do New Deal. Mesmo um aumento modesto na carga total de impostos sobre o 1% mais rico para uma taxa de 45%, muito menor do que seus níveis no pós-guerra, geraria 275 bilhões de dólares adicionais de receita. Isso é muito mais do que os 47 bilhões necessários para tornar gratuitas todas as Faculdades e Universidades Públicas do país. Com isso daríamos muitos passos em direção à geração da receita necessária para financiar um sistema de saúde universal, aumentar os benefícios de seguridade social e reconstruir a infraestrutura em desintegração.

Quase todo mundo concordaria que merecemos, cada um de nós, viver em uma sociedade na qual sejamos remunerados de forma justa por nosso trabalho, na qual sejamos livres e tenhamos a possibilidade de desenvolver nosso potencial e criatividade. Por menos glamoroso que isso possa parecer, a taxação redistributiva é um passo nessa direção. Não, os ricos não “fizeram por merecer” sua riqueza – estão apenas desfrutando dela em nosso lugar.

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Published in América do Norte, Análise, Economia, Livros and Trabalho

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