O caso das Lojas Americanas é o maior escândalo da história do mercado de capitais brasileiro – talvez um dos maiores do mundo. Apesar disso, o “mercado” não parece tão alarmado quanto estava com os gastos com o Bolsa Família. Para surpresa de todos, e desespero de alguns, a coisa toda tem início quando Sérgio Rial deixou o comando das Lojas Americanas apenas 10 dias após assumir o cargo de CEO. A decisão de sair se deu ao descobrir um verdadeiro lamaçal nas demonstrações contábeis da varejista. Quando anunciado pelo seu ex-presidente, as Americanas deviam cerca de 20 bilhões de reais. Com base em novo levantamento interno, já passam de 40 bilhões de reais.
O “erro”, por assim dizer, na contabilização do passivo foi algo que chamou muita atenção para quem é da área financeira. Trata-se de uma contabilização de baixa complexidade que qualquer estudante de disciplinas introdutórias de contabilidade deveria saber executar. Chama atenção que o rombo teve a tutela da Price Waterhouse Coopers (PWC), uma das maiores empresas de auditoria do mundo, e expôs os 3 maiores bilionários do país, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, tidos até então como crème de la crème do capitalismo supostamente bem sucedido no país. Um deles, inclusive, dá o nome de uma notória fundação, que faz a cabeça de muitos gestores de educação no Estado brasileiro, com um discurso de eficiência, ética e inovação. Tendo agora visto na prática os efeitos de tamanha eficiência e inovação na gestão das Americanas, caberia perguntar se nossa educação também não se encontra em grave perigo.
Lucros privados, prejuízos socializados
Este não é o primeiro caso de empresas dos três proprietários com fraudes contábeis. Em 2019, a Securities and Exchange Commission (SEC) — reguladora do mercado de capitais nos Estados Unidos — acusou a empresa Kraft Heinz, uma das maiores empresas no setor de alimentos, de erros contábeis.
Os três bilionários tinham investido um total de 23 bilhões de reais na aquisição da gigante em 2013. Neste caso, as acusações envolviam, especialmente, a área de compras da empresa, acusada de manter contratos falsos com fornecedores e mascarar o custo. O resultado foi um “Ebitda” (Earnings before interest, taxes, depreciation and amortization) inflado, e que não condizia com a realidade, o que obrigou a companhia a republicar seus balanços com as devidas correções e uma baixa contábil de US$ 15,4 bilhões. Desde então, o trio vem reduzindo sua participação na empresa com a venda de ações.
“O clima de impunidade estimula os impulsos mais predatórios de bilionários obcecados por se tornarem ainda mais ricos, mesmo que em detrimento do interesse coletivo.”
No caso das Lojas Americanas, a empresa levou os investidores e credores ao erro no momento em que não foi transparente em seus dados. A outra consequência, com essa manobra contábil, foi o aumento dos lucros da companhia por meio da alavancagem financeira. Alavancagem financeira é a utilização de dívida para aumentar o retorno sobre o capital próprio. A alavancagem pode aumentar os lucros, especialmente dos três bilionários, mas também aumenta o risco de insolvência, pois a dívida precisa ser paga independentemente do desempenho dos ativos.
Outro ponto que causa questionamento é que mesmo após a exposição da fraude, a empresa não alterou a composição do Conselho de Administração. Se existem esclarecimentos ainda a serem feitos, sobre quem seriam os responsáveis pela falha, mas a empresa não abre uma investigação interna e mantém tudo como está, cria-se uma atmosfera de insegurança, uma sensação de que possíveis responsáveis ainda tenham como se beneficiar por manterem acesso privilegiado às documentações da empresa.
Desde que as grandes crises financeiras da primeira metade do século passado mostraram os tremendos riscos sociais que a busca desenfreada pela acumulação privada podem gerar, mesmo as sociedades liberais se convenceram da necessidade de implementar mecanismos gerenciais eficientes para suprimir atitudes oportunísticas dos agentes “mercado”. O papel do Estado, por meio do fortalecimento de suas instituições, é reconhecido como crucial não só em seu papel fiscalizador, mas também punitivo e proativo. O clima de impunidade estimula os impulsos mais predatórios de bilionários obcecados por se tornarem ainda mais ricos, mesmo que em detrimento do interesse coletivo.
“Está na hora do Estado assumir seu protagonismo na definição e execução de políticas públicas de Educação, numa perspectiva de Educação Integral e de qualidade, buscando não terceirizar sua missão institucional.”
O fechamento de uma organização como as Lojas Americanas significa a destruição de 40.000 empregos diretos, fora os indiretos, tais como fornecedores, prestadores de serviços, proprietários dos imóveis alugados e os pequenos investidores que arriscaram suas poupanças em busca de rentabilidade. Também estarão prejudicados os bancos, fundos de previdência, que impactarão na vida futura dessas pessoas, e o Estado que não disporá da arrecadação da receita de impostos para alocar nas necessidades da população.
Interesses bilionários na educação
É importante que façamos o registro do poder de influenciar a sociedade e as políticas de Estado da Fundação Lemann, com seus tentáculos em diversos níveis da Educação brasileira. Fundação que leva à frente uma reforma educacional que se consubstancia com o “Novo Ensino Médio” de 2016 e pela venda de material didático e testes de avaliação que rendem bilhões de reais a essa organização ligada ao empresário que já enfrenta problemas de fraude também na AMBEV – pelo menos tão grandes quanto nas Americanas.
A Fundação Lemann tem outras fundações e ONGs associadas a ela, seus “spin offs”, influenciando sobre a formação de nossos jovens. Está na hora do Estado brasileiro assumir seu protagonismo na definição e execução de políticas públicas de Educação, numa perspectiva de Educação Integral e de qualidade, buscando não terceirizar sua missão institucional educacional para grupos privados que, na busca desenfreada por lucro imediato, acabam envolvidos em escândalos como esse.
“A Fundação Lemann e outras são expressão de um capital que tem estratégia para se manter hegemônico no mercado e se importa com a disputa de hegemonia na Educação formal.”
Depois de muitos avanços na Educação brasileira consubstanciados na Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional de 1996 e nas diversas reformas educacionais progressistas dos governos Lula e Dilma, com a criação do Fundo Nacional de Manutenção da Educação Básica e Valorização do Magistério (Fundeb), do ensino fundamental de 9 anos, do piso salarial dos profissionais da Educação, com a criação de 23 novas universidades federais, de mais de 400 campi de institutos federais de educação pelo Brasil e de diretrizes curriculares democráticas e críticas de diferentes níveis e modalidades da Educação, consolidamos no Brasil a concepção de Educação como direito de todos e promotora de uma formação integral, de qualidade, que envolve as Ciências, as Artes, as Humanidades, as linguagens, a Matemática, a cultura corporal e a formação do ser político que vive numa sociedade plural e diversa. Construímos uma prática de Educação para a liberdade, para a crítica, uma educação antirracista e anti-homofóbica, uma educação que preconiza a igualdade de oportunidades e de respeito entre homens e mulheres.
A fundação Lemann e outras ligadas ao grande empresariado vem se desenvolvendo como uma potente agregadora de pessoas que defendem uma educação rebaixada, apenas voltada para o “mercado”, adestradora de mão de obra, que engendrou o “Novo Ensino Médio”, que substitui a Sociologia, a Filosofia, a História e a Geografia por conteúdos superficiais e ideológicos de empreendedorismo e educação socioemocional, planos de vida e outras do gênero. Trata-se de uma estratégia bem definida que segue a proposta de reforma empresarial da Educação, implementada nos Estados Unidos, com repercussões deletérias na formação das crianças e jovens daquele país, como bem denunciou Diane Ravitch, ex-coordenadora dessa reforma nos governos neoliberais americanos, em seu livro Vida e Morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a Educação.
A Fundação Lemann e outras são expressão de um capital que tem estratégia para se manter hegemônico no mercado e se importa com a disputa de hegemonia na Educação formal. Disputa corações e mentes na formação de uma cultura e simultaneamente lucra com terceirização de escolas públicas, vendas bilionárias de sistemas de Educação, de consultorias e formação de docentes para preparar os alunos para serem adestrados a serem bem sucedidos em testes que limitam o leque da formação.