Se você estava envolvido com jogos de PC no início dos anos 2000, era quase impossível evitar Counter-Strike, um jogo tático online que coloca uma equipe de contraterroristas contra outra de terroristas em várias rodadas baseadas em objetivos.
Fui apresentado pessoalmente ao jogo da maneira mais 2002 o possível: em uma lan house no bairro de Beaches, em Toronto. Fui mais fisgado pela perspectiva de explorar os ambientes 3D geométricos que se assimilavam a locais da realidade, como escritórios, armazéns e ruínas antigas do que por seu aspecto de jogo em equipe baseado em habilidades. Enquanto mergulhava na distinta subcultura online do Counter-Strike, não fazia ideia de que estava participando de algo que lançaria as bases para a próxima fase do capitalismo digital.
O Counter-Strike não se foi. Na verdade, é mais popular e bem-sucedido hoje do que quando muitos de nós o jogamos pela primeira vez há vinte anos. A mais recente iteração da franquia, Counter-Strike: Global Offensive, reúne 21 milhões de jogadores mensalmente e, em 2018, arrecadou mais de U$400 milhões para sua empresa-criadora, a Valve Software.
Por meio de uma combinação de mão de obra gratuita, retenção de público e economia de mercado opaca, o jogo original ajudou a Valve a consolidar grande parte do florescente setor de distribuição digital de PCs e ampliar o valor, a longevidade e a importância de seu próprio software.
Counter-Strike não foi o primeiro nem o único jogo a tirar proveito do trabalho digital gratuito e explorável ou de esquemas inovadores de controle de público, mas sua popularidade repentina e inesperada ajudou a influenciar e impulsionar muitas das tendências que reconhecemos como fundamentais para a economia digital de hoje.
“Sob fogo inimigo, preciso de ajuda”
A trajetória do Counter-Strike, de um projeto feito por amor para um fenômeno do mundo dos games, destaca a natureza paradoxal do modding de videogames, tanto como obsessão de entusiastas como quanto um trabalho facilmente explorável. A palavra vem do verbo em inglês modify, e diz respeito às mudanças efetuadas em softwares por parte de jogadores apaixonados por aquele respectivo jogo, ao ponto de tentarem criar inovações para o mesmo.
O jogo foi desenvolvido inicialmente em 1999, por Minh Le e uma coalizão ampla de desenvolvedores amadores, como uma modificação totalmente gratuita para o popular jogo de tiro em primeira pessoa Half-Life, da Valve Software.
A prática do modding, nessa época, envolvia a modificação do código-fonte original de outro jogo, geralmente por meio de um editor já fornecido ou kit de desenvolvimento de software, no intuito de desenvolver novos níveis, recursos ou, no caso do Counter-Strike, um jogo totalmente novo.
O Counter-Strike não foi o primeiro mod, mas se tornou um dos mais bem-sucedidos, dando ênfase ao papel da mão de obra gratuita em aumentar o valor e a longevidade de commodities digitais de alto giro, como os próprios jogos de videogame.
No final dos anos 90, Minh Le, um autoproclamado entusiasta de ação militar que morava em Vancouver, já havia desenvolvido uma reputação significativa como modder com seu Navy Seals para Quake, e seus modelos de armas para outro mod popular, Action Quake 2.
Embora isso tenha lhe dado um certo cacife online, não estava claro se sua reputação se traduziria em uma carreira na indústria de jogos. Uma entrevista de 1999 com Le sobre o Counter-Strike captura o aspecto do amor pelo modding: “Eu preferiria muito mais jogar um mod que foi desenvolvido de acordo com a minha visão do jogo perfeito.”
Le acabaria sendo contratado pela Valve para continuar trabalhando no Counter-Strike depois que a empresa comprou os direitos do jogo, mas sua história é uma anomalia. O trabalho gratuito de modding raramente resulta em um avanço na carreira.
Como Ian Williams e Daniel Joseph pontuaram na Jacobin, a compensação adequada ou justa para mods é difícil, até mesmo porque “existem subgêneros inteiros de jogos vendidos principalmente nas costas dos mods gratuitos disponíveis”. Isso ocorre principalmente porque a atividade costuma ser enquadrada apenas como um passatempo.
Enquanto isso, empresas de jogos como a Valve costumam colocar os modders sob regimes restritivos de licenciamento. Como Julian Kücklich afirma, é um posicionamento hipócrita: o próprio Half-Life é baseado em uma versão altamente modificada do game Quake, da id Software, e de sua mecânica de jogo. Mas, apesar de suas contribuições, os modders recebem menos direitos do que os trabalhadores comuns de videogames devido aos “restritivos contratos de licença de usuário final (EULAs), com os quais eles devem concordar ao instalar o jogo”.
O Counter-Strike não iniciou a tendência de explorar a mão de obra gratuita em videogames, mas acelerou involuntariamente novos métodos de mercantilização do jogo digital. O seu sucesso confirmou o valor de controlar um repositório pronto de mão de obra gratuita. A prática de obscurecer o trabalho gratuito tornou-se fundamental para a operação de todos os tipos de plataformas, que, do YouTube ao Roblox, dependem fortemente de conteúdo gerado pelo usuário, o qual é produzido livremente no intuito de obter participação no mercado e lucro.
“Time, permaneça junto”
Em 1999, o crescimento do Counter-Strike no PC foi um fenômeno orgânico, que demonstrou como construir e reter uma audiência é fundamental para aumentar o valor das commodities digitais. Alice O’Connor identifica o Counter-Strike como o primeiro jogo de “serviço em tempo real”. Counter-Strike inesperadamente se tornou um modelo de como melhorar substancialmente a popularidade do jogo com um público engajado e feedback constante.
O primeiro lançamento beta do jogo foi notoriamente difícil e com erros, com jogadores às vezes incapazes de distinguir entre amigos ou inimigos. Mas o jogo se manteve e aumentou significativamente seu público, com atualizações contínuas em resposta ao feedback.
À medida que cada novo lançamento refinava e suavizava as arestas e adicionava novos elementos de jogabilidade, o Counter-Strike criava um ciclo virtuoso entre feedback e crescimento. A Valve se envolveu quando o número de jogadores regulares ultrapassou os jogos de ação online lançados comercialmente, como Quake III e Unreal Tournament.
A enorme popularidade do Counter-Strike deu à Valve a capacidade de executar um exemplo clássico de “platform lock-in”, que ocorre quando uma plataforma aumenta significativamente os custos para quem quer sair de algum dos serviços por ela fornecidos. No caso da Valve, isso significou lançar sua própria plataforma de distribuição digital, a Steam, em 2003.
Lembro-me de estar bastante relutante em aderir ao Steam, pois era propenso a travar ou demorar uma eternidade para atualizar os jogos hospedados. Mas, menos de um ano depois, a Valve encerrou o suporte para seu sistema de servidor multijogador anterior, o World Opponent Network, em 2004. Isso significava que qualquer um que quisesse jogar a versão oficial do Counter-Strike teria que fazê-lo na nova plataforma da empresa
O Counter-Strike inesperadamente ajudou como pioneiro de um serviço de jogos que eram continuamente atualizados, mas também ajudou a Valve a monopolizar o mercado digital de PC. A plataforma Steam agora é responsável por quase 75% de todas as vendas digitais de jogos para PC, um feito que teria sido impossível se a empresa não tivesse conseguido mudar e reter sua audiência.
“Mantenha a posição”
Counter-Strike é mais do que apenas um jogo tático de equipe; é também um jogo de gestão econômica. No início de cada rodada, cada equipe compra as armas e itens, desde metralhadoras e fuzis de assalto a óculos de visão noturna e kits de desarmamento de bombas. No início, cada jogador tem apenas U$800 em dinheiro, uma quantia que pode aumentar à medida que vão eliminando jogadores inimigos com sucesso, completando objetivos e vencendo rodadas.
Os vencedores geralmente podem estabelecer uma clara vantagem, pois fundos extras permitem que comprem armas melhores. Recentemente, a Valve foi além nesse aspecto do jogo, criando sua própria economia lucrativa baseada na venda de itens.
Mais uma vez, foi o trabalho da comunidade do jogo que estabeleceu uma base para o que se tornaria uma inesperada máquina de fazer dinheiro. O próprio Counter-Strike era modificado por jogadores dedicados, o que significa que havia toneladas de mods, armas e pacotes de textura, que podiam ser baixados para mudar a aparência do jogo. Modelos personalizados adicionaram um pouco de elegância e extravagância a um jogo tático ocasionalmente tenso.
Em 2013, a Valve adicionou “skins”, conhecido como designs cosméticos de itens em jogos de videogame, personalizados para armas da iteração atual da franquia, Counter-Strike: Global Offensive, que pode ser obtida gratuitamente ou comprada por meio de um sistema de loot-box, caixas compradas/recebidas pelo jogador que contém itens surpresa. Essas skins têm suas raízes nos pacotes de mods originalmente criados pela comunidade do jogo.
Embora alguém possa pensar que skins personalizadas não teriam valor no mundo real, as raras podem ser vendidas ou negociadas legitimamente através do Steam Community Market – por milhares de dólares, em alguns casos. Além de obter receita com compras diretas de skins aleatórias que estão disponíveis para negócio, a Valve fica com 15% de todas as transações do Steam Community Market.
Desde o início, a Valve entendeu o potencial lucrativo de ser o intermediário-chave em sua própria economia de itens virtuais. A alta valorização de certas skins levou a um alto grau de jogatina ilegal. Embora a empresa tenha reprimido muitos sites ilegais, ela ainda desfruta dos benefícios residuais de facilitar o comércio e a venda de tantos itens digitais de alto valor.
“Inimigo encontrado”
Counter-Strike nos fornece um estudo de caso convincente sobre a mercantilização do jogo e suas implicações mais amplas para nossos mercados mediados digitalmente. A Valve rapidamente transformou a criação de jogos, a participação do público e o conteúdo da comunidade em mão de obra gratuita, monopolização do mercado e uma lucrativa economia de itens virtuais. E tudo isso foi possível porque o jogo começou como um mod popular para o Half-Life.
Mas não precisa ser assim. Graças à criatividade de sua comunidade, o Counter-Strike tem sido mais do que tudo isso também. Tem sido um lugar para aproveitar as falhas de física do jogo para competições de escalada, saltos e surf. E também dirigir veículos cheios de falhas e pouco funcionais. Para mim, era um lugar para explorar um espaço virtual ocasionalmente surrealista que constantemente trazia relances de diferentes mundos e lugares além da minha percepção — ou para passar um bocado de tempo jogando granadas em amigos no misterioso e anonimamente projetado Iceworld.
Embora o jogo digital continue altamente explorado, ele ainda contém o potencial para a resistência dentro de si. “Se a multidão de pessoas que faz modding”, escreve Julian Kücklich, “foi capaz de usar sua dispersão a seu favor — através, por exemplo, da colaboração com outros trabalhadores autônomos na Internet — o resultado seria uma genuína democratização da produção de jogos digitais”.
Somente organizando a força de trabalho necessária, formal e informal, que realmente produz o valor dos jogos e outras commodities digitais, conseguiremos parar de jogar o jogo estabelecido pela indústria de tecnologia e finalmente vencer.
Sobre os autores
Alexander Ross
é escritor e candidato a doutorado na Faculdade de Informação da Universidade de Toronto. Ele é especialista em estudar a influência das plataformas digitais na indústria de games.