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Detalhe da Alegoria da Imortalidade, de Giulio Romano, c. 1540. (Detroit Institute of Arts via Wikimedia Commons)

A busca dos ricos pela imortalidade é prejudicial para todos

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Tradução
Ana Luiza Silva

Muitos oligarcas estão convencidos de que a vida eterna é um direito de classe. Não importa que o elixir da vida eterna seja uma fantasia até agora - é a busca em si que resulta na arquitetura social e legal que dá aos ricos um poder inaceitável.

A imortalidade é um daqueles conceitos que provavelmente são mais atrativos na teoria do que na prática. Como uma espécie com tendência ao excesso, a ideia de prolongar nossa vida em períodos exponencialmente maiores é, ironicamente, uma sentença de morte para nós mesmos e para aqueles com quem compartilhamos o planeta. Mas questões práticas de produção, consumo, poluição e espaço habitável à parte, longevidades extremas apresentam uma questão de classe.

A indústria da vida eterna já está nas mãos dos ultra-ricos, que financiam pesquisas para ampliar a vida humana. Essas pesquisas, assim como as economias de sangue em geral, têm uma relação profundamente perturbadora com os mercados negros e as exploradoras cadeias de suprimentos globais. E é esse aspecto moralmente duvidoso da busca dos magnatas pelo fim da mortalidade que torna toda a empreitada suspeita. Mesmo que a busca pela imortalidade se depare com limites físicos, a arquitetura social resultante dessa busca garante que são os ricos que estarão na linha de frente para colher os benefícios de quaisquer avanços que a pesquisa possa trazer.

A plutocracia como imortalidade

Como Maggie Harrison escreve em Futurism, um resultado potencial perturbador da imortalidade seria a capacidade de acumular riqueza infinitamente. Uma vez que a riqueza é poder, a capacidade de acumular riqueza ao longo de períodos extremos de tempo implica em uma capacidade de acumular poder ao longo de períodos extremos de tempo, consolidando e concentrando ainda mais a oligarquia e a hierarquia de classes. Para dar um passo em direção ao Santo Graal — garantindo títulos e riquezas imperecíveis — os plutocratas precisariam apenas revogar os impostos sobre herança.

Em dezembro, escrevi sobre como as promessas da automação e da inteligência artificial tendem a favorecer a classe capitalista em detrimento do restante de nós. Apesar da tradição otimista e utópica da esquerda em relação aos robôs, devemos nos manter cautelosos em relação às afirmações de que a tecnologia é inerentemente libertadora. Embora ela possa aliviar os fardos e melhorar a qualidade de vida, os avanços tecnológicos não são soluções milagrosas para a libertação se forem de propriedade e controle de poucos. Devemos aplicar o mesmo alerta para tecnologias que estendem nossa vida. De fato, tais tecnologias podem ser ainda mais perigosas e prejudiciais à libertação de classes se não forem democratizadas.

A ciência da longevidade está preocupada com objetivos mais sutis do que meras tentativas de “viver para sempre”. Podemos separar conceitualmente as intervenções biomédicas com o objetivo de curar doenças ou restaurar funções biológicas da pesquisa em busca de manter os seres humanos vivos indefinidamente. No final do ano passado, uma nova variedade de edição genética Crispr, que é uma tecnologia frequentemente discutida ao lado da busca pela imortalidade, salvou a vida de uma adolescente no Reino Unido, levando sua doença à remissão. É obviamente algo bom e inegável salvar a vida de adolescentes com câncer. Ao discutir tecnologias destinadas a prolongar a vida ou eliminar o envelhecimento e a morte, devemos distinguir entre os fins.

Senhores imortais

Em 2018, Jon Christian escreveu sobre os perigos de classe resultantes da busca pela imortalidade. Ele citou o ex-presidente do Facebook, Sean Parker, que disse: “Porque sou bilionário, vou ter acesso a um melhor atendimento médico… Vou ter uns 160 anos e vou fazer parte dessa classe de senhores imortais”. Isso é coisa de vilão de desenho animado, mas a citação de Parker revela a lógica dos ultra-ricos, que costumam trair seu senso de privilégio e planos grandiosos em suas divagações levianas.

A tecnologia, assim como os trabalhadores, está aí para servi-los e atender aos seus objetivos, sejam eles acumulação de capital ou imortalidade. E assim como na acumulação de capital, quando se trata de prolongar a vida, haverá uma classe de “senhores” de longa vida e aqueles que os orbitam e desfrutam das sobras de sua generosidade.

Porque as tecnologias de prolongamento da vida estão ligadas ao poder, elas devem ser democratizadas para que nenhuma classe única tenha acesso estrutural a elas em detrimento de outras classes. Cuidados de saúde são um bem público que deve ser compartilhado por todos. No entanto, as indústrias biomédicas privatizadas vão contra essa necessidade.

Alguém poderia estar inclinado a dizer que aqueles que investem seu capital em uma indústria assumem um risco cujos benefícios, caso as coisas corram bem, devem desfrutar. Alguém também poderia dizer que não cabe ao Estado impedir que os indivíduos desfrutem dos frutos desse trabalho, mesmo que sejam limitados a poucos em detrimento de muitos. Essa é, é claro, a lógica dos cuidados de saúde privados. Se alguém pode pagar por seus próprios cuidados, por que o Estado ou qualquer outra pessoa deveria impedi-los de fazê-lo? Sob essa visão, os cuidados privados de alguém não têm nada a ver com o público. Pode ser assim, mas é claramente uma posição moralmente empobrecida e uma forma grotesca de organizar o fornecimento de saúde.

Expropriando matusalém

Quando se trata da busca pela imortalidade, o acesso às tecnologias correspondentes é intrinsecamente público, uma vez que as potenciais vantagens cumulativas certamente moldarão os resultados econômicos, sociais e políticos. Quando falamos sobre os ultra-ricos vivendo muito além dos cem anos, ou teoricamente para sempre, fica óbvio que não estamos mais falando apenas sobre cuidados médicos privados de alguém. A capacidade de acumular riqueza e exercer poder cumulativo por períodos extraordinários de tempo – e, assim, moldar o mundo para muitos – é intrinsecamente pública e deve ser tratada e regulamentada como tal.

Temos uma longa história de adoção e até mesmo normalização de tecnologias antes de compreendermos as implicações éticas delas. Quando se trata de saltos tecnológicos, muitas vezes encontramos Estados lentos em regular e proteger o bem público. Em alguns casos, por exemplo, as mídias sociais, o tempo de espera para resolver os problemas associados pode ser de décadas – se os problemas forem resolvidos.

Não é por acaso que as palavras de Ian Malcolm, personagem de Jeff Goldblum em Jurassic Park, resistiram ao teste do tempo e ganharam vida própria como um meme. “Seus cientistas estavam tão ocupados pensando se podiam fazê-lo”, diz Malcolm, com admiração, maravilha e medo, “que não pararam para pensar se deveriam fazê-lo”.

Com a busca pela imortalidade, enfrentamos o mesmo problema, exceto que temos uma classe de oligarcas convencidos de que a vida eterna não é apenas uma boa ideia, mas um direito de nascimento da classe. Podemos debater se a ideia em si é boa – eu duvido -, mas devemos começar insistindo que, a menos que a vida eterna possa ser um direito estendido a todos que desejam, não deve ser estendida a ninguém. Se a pesquisa sobre tecnologia de prolongamento da vida for democraticamente determinada como um bem social que vale a pena ter, quaisquer benefícios que a pesquisa produza devem reverter em benefício do bem público. Caso contrário, deve ser abandonada. Ao mesmo tempo, devemos fazer o que pudermos para evitar e desmantelar todos os vestígios de imortalidade elitista em nossos códigos tributários, leis e políticas. Não precisamos de barões imortais.

Sobre os autores

David Moscrop

é escritor e comentarista político. Ele apresenta o podcast Open to Debate e é o autor do livro Too Dumb For Democracy?

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Published in Análise, Gente rica and Saúde

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