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O Allen Memorial Institute em Montreal, Canadá, onde Donald Ewen Cameron conduziu experimentos de controle mental em nome da CIA. (Wikimedia Commons)

A CIA conduziu experimentos de controle mental no Canadá

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Tradução
Gercyane Oliveira

Durante duas décadas, a CIA realizou experimentos de controle mental em Montreal que influenciaram mais tarde as modernas técnicas de “interrogatório aprimorado” - como as que foram usadas no complexo penitenciário iraquiano de Abu Ghraib. Até hoje, a CIA continua se esquivando da responsabilidade por suas ações.

Desde a sua fundação em 1947, a Central Intelligence Agency (CIA) tem uma reputação de longa data por se intrometer nos assuntos de outros países. Conhecida por seu envolvimento em várias operações clandestinas, como o Programa Phoenix no Vietnã, o tráfico de drogas na América Central, além de elaborados e bizarros planos de assassinato, a CIA tornou-se sinônimo de um legado de atividades clandestinas e nefastas.

A agência também é famosa por seu envolvimento em experimentos de controle da mente, embora os detalhes desses projetos permaneçam relativamente incertos. O que pode surpreender é que uma de suas operações de controle mental mais extensas não ocorreu em algum país remoto do Sul Global com proteções frouxas aos direitos humanos; em vez disso, elas ocorreram dentro das fronteiras da grande democracia liberal diretamente ao norte dos Estados Unidos. E esses experimentos não ocorreram em algum bunker a mando de ex-militares nazistas ou psiquiatras sinistros de filmes B – eles ocorreram em Montreal, em uma das universidades mais prestigiadas do Canadá.

As descobertas perturbadoras dos experimentos serviriam como métodos de coerção psicológica terrivelmente eficazes, formando a base para técnicas de interrogatório e desempenhando um papel significativo nos infames “memorandos de tortura” do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Esses métodos exerceriam uma influência significativa sobre as chamadas práticas de contrainteligência empregadas durante a Guerra do Iraque.

Os experimentos não apenas ultrapassaram os limites éticos, mas também levantaram questões profundas de responsabilidade e justiça. Isso é particularmente verdadeiro à luz dos processos de ação coletiva em andamento iniciados por aqueles que sofreram com os experimentos de Montreal. Embora a recente decisão do Tribunal Superior de Quebec tenha colocado essa batalha legal em foco, a natureza elusiva da justiça em casos que envolvem operações secretas da CIA continua ofuscando o horizonte, fazendo com que uma resolução rápida pareça longe de ser certa.

Experimentos de controle mental em Montreal

Fundado em 1940, o Allan Memorial Institute (conhecido como “o Allan”) costumava ser um instituto psiquiátrico e uma instituição de pesquisa. Atualmente, ele oferece serviços psiquiátricos ambulatoriais para o Hospital Geral de Montreal, como parte do Centro de Saúde da Universidade McGill.

O Allan era adequado para os objetivos a que foi destinado pela agência. Um visitante pode muito bem sentir um arrepio na espinha ao observar a arquitetura gótica do edifício, que parece ter saído diretamente de um filme do Drácula. No entanto, apesar dos muitos episódios transmitidos pela CBC nas décadas de 1980 e 1990 que se concentraram no assunto, a maioria dos norte-americanos ainda não tem conhecimento dos horrendos experimentos que ocorreram no Allan, a partir do início da década de 1950, por quase 20 anos.

No auge da Guerra Fria, um importante pesquisador afiliado à Universidade McGill recebeu dinheiro da CIA para testar os limites da psique humana, e seus resultados informaram o desenvolvimento do agora famoso Programa MKUltra da agência.

A maioria dos experimentos de Montreal foi orquestrada e implementada por um homem chamado Donald Ewen Cameron, que deixou sua casa na Escócia para se tornar o primeiro diretor do Allan. Cameron recebeu fundos intermediados pelo então diretor da CIA, Allen Dulles, para submeter seus “pacientes” involuntários a tratamentos de eletrochoque de alta voltagem, comas induzidos por insulina, privação sensorial e grandes doses de drogas alucinógenas como o LSD. Para justificar esses tratamentos, Cameron apresentou suas técnicas psiquiátricas como inovadoras e experimentais.

A CIA obteve os resultados de teste desejados de Cameron, cujos pacientes, sem saber, pagaram pela operação com a perda de suas memórias e habilidades cognitivas. Embora inúmeros indivíduos que deixaram o Allan tenham sido reduzidos a estados infantis e incapazes de reconhecer seus próprios familiares, o governo dos Estados Unidos ainda não foi responsabilizado por seu envolvimento em experimentos realizados em cidadãos canadenses em solo canadense.

Os resultados dos experimentos de Montreal não foram, no final, usados para descobrir a magia do controle da mente. Em vez disso, foi permitido que as descobertas fossem moldadas em memorandos agora desclassificados sobre coerção psicológica e, na medida em que recebem atenção da agência, são citadas como métodos avançados de “interrogatório de fontes resistentes”.

Subprojeto 68

Nascido na Escócia em 1901, Donald Ewen Cameron passou os primeiros dias de sua carreira fazendo viagens de ida e volta da Europa para a América do Norte, antes de assumir um papel de pesquisador em privação sensorial na Albany Medical School em 1938. Foi apenas alguns anos depois – em 1943 – que Cameron se estabeleceu como o primeiro diretor da recém-criada instalação psiquiátrica da McGill, o Allan Memorial Institute.

O momento exato do encontro inicial de Allen Dulles e Donald Ewen Cameron permanece incerto, mas provavelmente ocorreu enquanto Cameron realizava pesquisas em Albany. Naquela época, Dulles estava prestes a assumir a liderança do Office of Strategic Services, o antecessor da CIA. Em 1945, ele havia recrutado pessoalmente Cameron para participar dos julgamentos de Nuremberg e avaliar Rudolph Hess, um ex-nazista que ele acreditava ter sofrido lavagem cerebral.

Cameron e Dulles claramente mantiveram contato até a nomeação do último como diretor da CIA, e em 1957 foi criado o “Subprojeto 68”, a contribuição pesada de McGill para o programa de lavagem cerebral e controle mental da CIA, o MK Ultra. Viajando de Lake Placid, Nova York, para Montreal toda semana, Cameron recebeu mais de US$ 500.000 de 1950 a 1965 para realizar experimentos de controle mental no Allan. Esses experimentos foram patrocinados pelos governos americano e canadense. Embora o número exato de vítimas não seja conhecido, acredita-se que cerca de oitenta pacientes foram submetidos aos experimentos.

Cameron via a psique humana não como algo a ser analisado, mas sim como um quebra-cabeça complexo e multifacetado: algo a ser desmontado e reorganizado de uma maneira completamente nova. Essa crença resultou na criação, por Cameron, de um processo que ele chamou de “despatternização”, que consistia em limpar a memória do indivíduo – por meio de comas induzidos por drogas, tratamentos de eletrochoque, privação sensorial ou uma mistura dos três – para que ele pudesse recuperar e reprogramar a memória de forma a alterar totalmente a perspectiva e o comportamento.

Quando considerava um paciente efetivamente “despatternado”, ele iniciava um processo de reconstrução que chamava de “condução psíquica”. Nesse procedimento, Cameron forçava os pacientes a ouvir loops de clipes de áudio personalizados com o objetivo de reforçar ideias específicas na mente do paciente. Às vezes, o paciente era forçado a ouvir a mesma mensagem por dias, semanas ou até meses a fio.

Técnicas de tortura

Após a saída repentina de Cameron do Allan em 1964, devido ao crescente ceticismo dos colegas da área médica, sua pesquisa teve um impacto duradouro nos serviços de segurança em todo o mundo. Essa influência é evidente, principalmente, no que é amplamente reconhecido como o “manual de tortura” da CIA: o Kubark Counterintelligence Interrogation Handbook.

Publicado em 1963 e agora prontamente disponível online, este manual faz referência a uma “série de experimentos realizados na Universidade McGill” e frequentemente faz alusão às técnicas do Dr. Cameron. Em uma parte do manual relacionada aos métodos e recursos de privação sensorial, observa-se que os resultados “produzidos somente após semanas ou meses de prisão em uma cela comum podem ser duplicados em horas ou dias em uma cela sem luz, à prova de som e com odores eliminados”.

Em 2004, as ações do Exército dos Estados Unidos e do pessoal da CIA foram submetidas ao escrutínio internacional quando a CBS News publicou fotografias chocantes e perturbadoras da tortura de detentos na prisão de Abu Ghraib, no Irã.

Nos meses que antecederam a Guerra do Iraque, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos redigiu um documento, agora não mais confidencial, conhecido como “memorandos de tortura”. Esses memorandos foram criados para instruir as autoridades dos Estados Unidos sobre os limites legais das técnicas de interrogatório e como evitar que suas táticas fossem classificadas como “tortura” de acordo com a lei comum estabelecida.

Oficialmente conhecidos como “Memorando sobre o interrogatório militar de combatentes estrangeiros ilegais detidos fora dos Estados Unidos“, esses documentos argumentam que as leis humanitárias internacionais, inclusive a Convenção de Genebra, não se aplicavam aos interrogadores americanos no exterior. Os memorandos sobre tortura também enfatizavam o uso de métodos de coerção psicológica – como os criados pelo Dr. Cameron – como forma de permitir que o Exército dos Estados Unidos passasse despercebido e evitasse o escrutínio legal em países estrangeiros.

Uma seção do memorando afirma: “No contexto dos interrogatórios, acreditamos que os métodos de interrogatório que não envolvam contato físico não suportarão uma acusação de agressão que resulte em lesão substancial ou agressão que resulte em lesão corporal grave ou lesão corporal substancial”. Conclui que, em essência, “lendo a definição de tortura como um todo, fica claro que o termo engloba apenas atos extremos”.

Ações judiciais coletivas canadenses

O que começou como uma pesquisa sobre manipulação psicológica levou a descobertas que ainda hoje são empregadas por funcionários da inteligência dos EUA como um meio de explorar zonas cinzentas nas leis de conduta militar quando se trata de infligir danos não físicos para extrair informações de pessoas de interesse. Em última análise, as descobertas dos Experimentos de Montreal contribuíram mais para ampliar os limites da ambiguidade ética dentro dos regulamentos militares do que para a psicologia.

Muitos canadenses sofreram devido aos experimentos que fundamentam essas mudanças nos métodos de interrogatório da inteligência dos Estados Unidos. Consequentemente, vários processos de ação coletiva estão em andamento no Canadá há anos. No entanto, como geralmente acontece quando se trata de aventureirismo da CIA, o governo dos Estados Unidos talvez nunca seja responsabilizado por seu papel no financiamento dos experimentos realizados em Allan.

O início de outubro marcou um importante ponto de inflexão para uma ação coletiva movida contra a Universidade McGill, o Royal Victoria Hospital e os governos do Canadá e dos Estados Unidos. O Tribunal Superior de Quebec proferiu uma decisão unânime por 3 a 0, mantendo uma decisão anterior que impedia o uso retroativo de uma lei canadense de 1982 relativa ao processo de estados estrangeiros dentro do país.

Os autores da ação, aqueles que sofreram durante os Experimentos de Montreal, argumentaram que a decisão do juiz de primeira instância de conceder imunidade aos Estados Unidos em um estágio inicial do processo foi um erro. Eles alegaram que os Estados Unidos poderiam ser processados retroativamente de acordo com a Lei de Imunidade Estatal do Canadá de 1982, especialmente em casos de lesões corporais. Além disso, os autores da ação apontaram que havia isenções para ações judiciais comerciais durante o período em que essas atrocidades ocorreram.

No entanto, os advogados que representam o procurador-geral dos Estados Unidos sustentaram que as alegações no pedido de ação coletiva não se referiam a um acordo comercial entre os Estados Unidos e o Canadá. Eles enfatizaram que os Estados Unidos haviam se beneficiado da imunidade no Canadá antes da promulgação da lei de 1982 e argumentaram que qualquer ação judicial contra o governo dos Estados Unidos deveria ser apresentada em um tribunal dos Estados Unidos.

A questão central que permanece é a seguinte: Se a ação legal contra o governo dos Estados Unidos for restrita ao solo americano, como a CIA poderá ser responsabilizada por suas transgressões internacionais? Lamentavelmente, parece que não será. Responsabilizar os poderosos é uma tarefa hercúlea e, em casos como o dos experimentos de Montreal, a busca por justiça continua mais evasiva do que nunca.

Sobre os autores

Spencer Nafekh

escreve sobre artes, cultura e política. Estudou jornalismo na Carleton University.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Direitos Humanos, História and Saúde

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