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(Ilustração de Andressa Dantas)

Ecologia da práxis

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Dez anos depois, o que junho de 2013 pode nos ensinar sobre as táticas da esquerda para a mudança social?

O texto a seguir foi publicado na 6ª edição impressa da Jacobin Brasil sobre “Esquerda e poder”. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


Junho de 2013 reabriu a questão da relação entre movimentos e instituições no Brasil de maneira violenta e inesperada – e não poderia ser diferente. Pela primeira vez desde o período da redemocratização, e numa escala e com uma velocidade de propagação inéditas, um movimento de massa tomava as ruas do Brasil sem ser convocado por nenhuma das grandes organizações formadas ou reconstituídas ao fim da ditadura militar (MST, CUT, UNE, PT). Também pela primeira vez desembarcava no Brasil um fenômeno que estivera correndo o planeta desde a Primavera Árabe em 2011: um tipo novo de protesto, altamente dependente das possibilidades de uso oferecidas pelas plataformas digitais, que explodia subitamente (e às vezes minguava igualmente rápido) ao atrair um grande número de pessoas que não pertenciam a nenhuma organização ou sequer tinham identidade política definida. E tudo isso ocorrendo em meio a um governo não só de esquerda, mas do partido que fora ao longo de três décadas a principal aposta institucional dos movimentos sociais brasileiros, que frequentemente aceitaram submeter suas próprias estratégias às flutuações das táticas eleitorais.

É uma pena que, tanto quanto abriu esta questão, junho de 2013 pareça, para muita gente, tê-la fechado. Para quem esteve contra os protestos desde a primeira hora, tudo o que viria nos anos seguintes seria a prova de que eles foram, na pior das hipóteses, desde o início um ardil da direita (e talvez até da CIA); ou, na melhor, vítimas da própria ingenuidade. Neste último caso, seu rápido refluxo demonstraria os limites da aposta de seus iniciadores no espontaneísmo e na recusa da institucionalização, enquanto o fortalecimento posterior do reacionarismo seria a evidência cabal do afobamento e da falta de inteligência tática de quem não entende que “subir o tom” é (quase?) sempre “fazer o jogo do adversário”.

Mas não são apenas aqueles que sempre estiveram do outro lado que pensam assim. Esta interpretação aparenta tanto mais ser a correta na medida em que muitos daqueles que gritaram “sem partido!” em 2013 hoje concedem que foi um erro acreditar que poderia haver política fora do PT e das instituições.

Do outro lado da discussão, encontramos aqueles que se mantêm fiéis às ideias que já traziam desde antes ou ao sentimento dominante naquele instante — que, se certamente não era pela derrubada do governo petista, era inegavelmente cheio de desconfiança em relação à política institucional. Para estes, o que teria sido comprovado pela recusa do governo em abraçar os protestos e tentar aproveitar sua energia para forçar um rearranjo das relações de poder seria, na verdade, a acomodação definitiva do PT ao establishment nacional e o fato de que partidos e “representantes” eleitos, mais cedo ou mais tarde, sempre fazem exatamente o que se fez naquela ocasião: abandonam os desejos de transformação expressos pelos setores mais avançados de sua base em favor da manutenção da ordem e de sua própria condição de intermediários.

De um lado e de outro, temos os dois esquemas mais comuns, segundo os quais a relação entre movimentos e instituições costuma ser pensada. O primeiro tem como operador central a noção de maturidade: a diferença fundamental entre movimentos, de um lado, e partidos e instituições, de outro, está nos seus graus respectivos de amadurecimento. A política se caracterizaria por uma linha evolutiva ou escala de desenvolvimento em que movimentos representariam um estágio mais baixo por conta da parcialidade e imediatez de suas demandas, bem como da relativa incapacidade de entender as mediações necessárias para dar a seus desejos uma forma institucional; ao passo que partidos seriam o estágio maduro em virtude de sua compreensão da centralidade da disputa “política” (leia-se: do Estado), sua capacidade de agregar e negociar diferentes expectativas e o domínio de uma estratégia global para a sociedade. O segundo tem como operador central a noção de traição: movimentos invariavelmente encarnam desejos de transformação radical que seus mediadores institucionais invariavelmente acabam por ignorar, desqualificar e, por fim, reprimir.

O estático e o dinâmico

Em 1933, diante da necessidade de defender a legitimidade do nascente Estado nazista, o jurista alemão Carl Schmitt escreveu o panfleto Staat, Bewegung, Volk. Die Dreigliederung der politischen Einheit [Estado, Movimento, Povo. A Estrutura Triádica da Unidade Política], em que comparava positivamente a nova ordem à anomia da República de Weimar que a precedera. Enquanto esta última afundara na incapacidade de decisão característica de uma democracia liberal bipartida entre Estado (o princípio do bem comum) e Sociedade Civil (o reino dos interesses particulares), o sucesso do poder Nacional-Socialista se apoiava na presença de um elemento “politicamente dinâmico” para mediar entre o “politicamente estático” (Estado) e o “não- -político” (Povo). Embora seus partidários dificilmente aceitem as conclusões que Schmitt tirava daí, ambos os esquemas acima implicitamente supõem essa divisão entre movimentos como elemento dinâmico e instituições como elemento estático – e talvez também a distinção entre setores ativamente organizados em torno de demandas e a população atomizada na competição do mercado e na participação em eleições. O que muda entre um e outro é o sinal: enquanto o esquema da traição põe a ênfase na dinâmica e vê a estabilização inevitavelmente como perda, recuo e traição, o esquema da maturidade vê a estabilização como a única verdade à qual o deslocamento pode aspirar. Um movimento que não logra consolidar mudança institucional alguma, por mais limitado que seja, vale o mesmo que um movimento que jamais existiu: a conquista e defesa de tais avanços é a única política que efetivamente conta.

De um lado e de outro, temos os dois esquemas mais comuns, segundo os quais a relação entre movimentos e instituições costuma ser pensada. O primeiro tem como operador central a noção de maturidade: a diferença fundamental entre movimentos, de um lado, e partidos e instituições, de outro, está nos seus graus respectivos de amadurecimento. O segundo tem como operador central a noção de traição: movimentos invariavelmente encarnam desejos de transformação radical que seus mediadores institucionais invariavelmente acabam por ignorar, desqualificar e, por fim, reprimir.

É evidente, porém, que a distinção entre dinâmico e estático é menos simples do que aparenta à primeira vista. Frequentemente, ela supõe uma simples ilusão perceptiva: reconhecemos como “dinâmico” aquilo que se move a uma velocidade superior à nossa e, como “estático”, aquilo que é mais lento do que nós, quando, na verdade, tanto uma galáxia quanto uma flor são igualmente mutáveis, embora em ritmos diferentes. A maneira como essa ilusão é exposta pela presente inversão de velocidades entre natureza (por muito tempo pensada como pano de fundo imóvel) e cultura (supostamente o princípio motor do mundo) é um dos pontos centrais da literatura sobre o Antropoceno como um tempo em que a rapidez com que o mundo natural se transforma excede nossa capacidade de responder a essa transformação enquanto sociedade planetária. A divisão de Schmitt, que muitos de nós inadvertidamente continuamos a usar, supõe um dado a mais: se o Estado é estático e o Movimento é dinâmico, não é somente porque o segundo se move mais rápido que o primeiro, mas porque o primeiro não contém em si o princípio de seu próprio deslocamento, e precisa do outro para mudar de forma e lugar.

Dizer que o Movimento (Nacional-Socialista) era o elemento capaz de dar novo impulso a uma comunidade política em impasse desde o fim da Primeira Guerra Mundial certamente servia aos propósitos de Schmitt; mas podemos dizer que os movimentos sociais são o único elemento dinâmico nos Estados modernos? Se seguimos Nicos Poulantzas em entender o Estado como a “condensação material de [uma correlação de forças] entre classes e fração de classes”, é evidente que não: o Estado é transformado desde fora, seja por pressões vindas “de baixo”, seja por aquelas vindas “de cima” ou “do lado”, exercidas pelos interesses do capital ou de diferentes capitais.

Por outro lado, apontar que “estático” e “dinâmico” designam não uma diferença absoluta, mas de velocidade relativa, nos serve para identificar um operador que está ausente tanto do esquema da maturidade quanto do da traição: o tempo.

Incluindo o tempo na equação

Não que os dois esquemas exatamente ignorem o tempo, mas eles o homogeneízam e o fazem fazer sempre a mesma coisa: em ambos os casos, ele só pode trazer o mesmo resultado, seja esse o amadurecimento necessário (ou o fracasso diante da incapacidade de realizá-lo), seja o inevitável abandono das bases pelos líderes. Daí que ambos aparentem ser essencialmente estáticos, desprovidos de mudanças de ritmo, velocidades distintas, novidade.

O que muda quando incluímos o tempo na equação? Em primeiro lugar, ganhamos um retrato mais preciso da relação entre o dinâmico e o estático. O papel que os movimentos historicamente tiveram em forçar o ordenamento jurídico e a estrutura estatal a se amoldar a demandas sociais – os direitos trabalhistas e os direitos sociais de primeira, segunda e terceira geração, por exemplo – é bem conhecido. Mas também é o caso que conquistas consolidadas frequentemente funcionam como condições para novas lutas. Um exemplo é a maneira como o estado de bem-estar social nos países do norte global, um conjunto de concessões obtidas em parte porque as elites locais temiam que a experiência da Revolução Russa se propagasse para seus países, serviria, ao diminuir a coerção econômica à qual a classe trabalhadora estava submetida, como condição para o florescimento de uma cultura radical jovem, “minoritária” e proletária nos anos 1960 e 1970. Isso indica que, tornado estático – estabilizado em instituições –, o dinamismo de gerações passadas pode tornar-se a base sobre a qual se constrói a luta de gerações futuras.

Se a distinção entre dinâmico e estático frequentemente designa apenas uma diferença observada desde uma perspectiva (aquilo que é mais rápido ou mais lento que o observador), o que a introdução do fator tempo faz nesse caso é ampliar nossa escala temporal de observação. Com isso, em vez de uma simples oposição entre o que se move e o que não se move (ou é forçado a se mover), o que percebemos é um encadeamento de movimentos mais lentos e mais rápidos. Mas essa não é a única coisa que podemos tirar daí.

Se prestamos atenção a uma escala mais ampla, vemos que ela não só inclui dinâmicas de diferentes velocidades como o tempo que a compõe não é homogêneo, mas atravessado por aumentos e quedas de intensidade na atuação de movimentos e instituições. Quando estas últimas reconhecem uma mudança em curso concedendo-lhe status legal, é frequentemente porque os primeiros demonstraram ter força suficiente para fazer com que as regras até então existentes não pudessem mais ser aplicadas. Um bom exemplo disso é quando uma desapropriação de terras se segue a uma ocupação organizada o bastante para que não possa ser despejada. Mas esse grau de intensidade não é fácil de sustentar, e dificilmente se consegue mantê-lo indefinidamente. É bem verdade que a consolidação institucional de conquistas frequentemente desmobiliza, fazendo com que as pessoas deleguem a uma autoridade externa a responsabilidade de fazer valer os seus direitos em vez de entender que a validade deles se apoia, antes de mais nada, em sua própria força. Mas crer que toda e qualquer institucionalização de um avanço é sempre uma traição — porque acaba por desmobilizar ou erigir um obstáculo para progressos posteriores — é claramente falso, porque supõe que, na ausência disso, os movimentos poderiam não só continuar no mesmo nível de intensidade, mas prosseguir continuamente em direção a objetivos cada vez maiores. Infelizmente, esse não é o caso, e o momento de estabilização frequentemente se dá não quando o movimento está no seu auge, mas precisamente quando começa a arrefecer e parece necessário fixar o território ganho antes que se perca a capacidade de defendê-lo.

O que se descobriu foi que as elites econômicas e políticas jamais aceitariam ser substituídas pacificamente, sem organizar uma contraofensiva. O neoliberalismo não foi nada mais que isso: o instante em que, diante da queda das taxas de crescimento econômico que marcou o início do fim do boom do pós-guerra, o capital decidiu que não iria mais tolerar medidas redistributivas que só eram aceitáveis enquanto a economia estava em franca expansão.

Não segue daí, contudo, que bastaria alternar pequenos golpes de dinamismo com longos períodos de estabilização para se chegar a uma mudança duradoura ou a um estado de coisas qualitativamente distinto. Como apontou Adam Przeworski em Capitalismo e Social-Democracia, este foi o erro da social-democracia do século XX: acreditar que as reformas que ela era capaz de introduzir eram irreversíveis e cumulativas, isto é, que não só não poderiam ser canceladas pela ação de forças contrárias como se acumulariam ao longo do tempo até levar, de maneira quase imperceptível, à substituição do capitalismo por uma ordem socialista. O que se descobriu foi que as elites econômicas e políticas jamais aceitariam ser substituídas pacificamente, sem organizar uma contraofensiva. O neoliberalismo não foi nada mais que isto: o instante em que, diante da queda das taxas de crescimento econômico que marcou o início do fim do boom do pós-guerra, o capital decidiu que não iria mais tolerar medidas redistributivas que só eram aceitáveis enquanto a economia estava em franca expansão. Para defender suas taxas de lucro em tempos de desaceleração, ele iria transferir uma parte cada vez maior dos custos e riscos para os trabalhadores, revertendo a maior parte das medidas que formavam o edifício de proteção social construído ao longo das décadas anteriores.

A ideia de um lento e paciente “acúmulo de forças”, que norteia boa parte da esquerda brasileira desde os anos 1980, não é fundamentalmente diferente. Além de apostar na sedimentação gradual de uma série contínua de avanços como meio de alcançar uma transformação profunda, ela tende a supor que a flecha do tempo caminha em uma única direção e a estabelecer uma grande equivalência entre diferentes tipos de conquista. Isso faz com que uma opinião pública construída em torno de um tema importante, um crescimento partidário, um novo programa social ou uma grande reforma estrutural possam todos figurar como provas igualmente fortes de que se está continuamente avançando. Ao se fiar nos resultados eleitorais como principais indicadores de progresso, essa concepção tende, ainda, a superestimar a correlação entre vitória nas urnas e influência sobre a sociedade, desvalorizando outros meios de cultivar essa influência que não a política institucional e a disputa por votos. Com isso, acaba por solapar as condições de construção da própria hegemonia a que diz almejar, já que esta se decide na sociedade mais que nas instituições. O fato de que, nos últimos dez anos, tenhamos passado de quatro vitórias presidenciais consecutivas da centro-esquerda (com índices consistentemente altos de aprovação) para uma vitória da extrema direita, seguida por uma vitória apertada da centro-esquerda, demonstra que os humores eleitorais são bem mais voláteis e inconstantes do que essa narrativa costuma considerar.

No entanto, o principal erro de pensar o acúmulo de forças como processo linear está em não entender que a heterogeneidade do tempo em termos de intensidade implica também uma heterogeneidade em termos de ritmo. Quando se crê que o progresso é garantido e está acontecendo o tempo todo, a tendência é de pensar menos em ganhar terreno rápido do que em segurar as conquistas já feitas; a resposta espontânea diante dos eventos se torna mais conservadora do que disposta a correr riscos. Isso é um problema durante períodos de contraofensiva, em que simplesmente manter o que se tem já exige redobrar os esforços; e mais ainda em ocasiões em que vitórias maiores se tornam possíveis, e aproveitá-las implica apostar mais alto do que normalmente se faria. Conforme observou Lenin no olho do furacão russo de 1917, “há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem”. Em momentos assim, ensina o ditado, é preciso “malhar o ferro enquanto ele está quente”.

Se são os movimentos que dinamizam as instituições, momentos de grande dinamismo são a oportunidade para ir além dos pequenos incrementos graduais e arriscar saltos qualitativos. Para além das fantasias conspiratórias e dos reducionismos do gênero “ovo da serpente”, esse é o verdadeiro ponto em torno do qual uma conversa séria sobre junho de 2013 pode ter lugar. De um lado, estão aqueles para quem os protestos contra o aumento das passagens abriram uma brecha desse tipo e, do outro, aqueles que o negam; de um lado, os que veem a virada à direita dos anos seguintes como prova de que a ocasião favorável jamais existiu e, do outro, os que enxergam na regressão o resultado direto do fato que a esquerda institucional não só desperdiçou, mas ativamente rejeitou essa chance.

Pode parecer que essa oposição entre períodos de ritmo mais rápido e de ritmo mais lento, de compressão ou distensão do tempo, recobriria a distinção tradicional entre reforma e revolução. Mas a oposição talvez seja ainda mais importante para uma política reformista do que para uma política revolucionária. Tanto em um caso quanto no outro, a questão é sempre, como certa vez sugeriu Rosa Luxemburgo, uma disputa entre a velocidade com que o processo de mudança se distancia do estado de coisas existente e a capacidade deste último de cancelar, reprimir ou cooptar essa transformação. Na metáfora de Luxemburgo, o contraste é entre o impulso de uma locomotiva subindo uma montanha e a força da gravidade puxando-a para baixo: se a locomotiva avançar muito devagar, a atração gravitacional acabará por vencê-la, trazendo-a de volta ao ponto de partida. Segue daí que mesmo quem tenta avançar a passos mais lentos e cuidadosos — e talvez especialmente estes — deve estar atento à importância de saber ditar o próprio ritmo e acelerar quando necessário.

De volta para o futuro

Ao abstrair toda a complexidade da relação entre movimentos e instituições que é restituída quando introduzimos o fator tempo, o que ambos os esquemas discutidos acima estão fazendo é essencialmente dizer que eles detêm o segredo da transformação social. A espera paciente pelo momento em que as condições terão finalmente amadurecido, a aposta invariável na radicalidade espontânea das pessoas, tanto uma e outra bastariam para vencer, não fosse a presença de um outro – o imaturo, o traidor – que sempre põe tudo a perder. Mas essa é mesmo a conclusão mais razoável que podemos tirar?

Conforme observou Lenin no olho do furacão russo de 1917, “há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem”. Em momentos assim, ensina o ditado, é preciso “malhar o ferro enquanto ele está quente”.

Não seria antes o caso de chegar à conclusão contrária? É o que Erik Olin Wright faz ao distinguir três posições gerais sobre como se produz a mudança, que ele chama de ruptural (baseada na tomada e/ou abolição do Estado), intersticial (assentada na construção de alternativas à parte do mercado e do Estado) e simbiótica (fundada no uso do próprio mercado e Estado a fim de modificá-los). Podemos pensar o limite de cada uma delas em termos de velocidade relativa. É concebível que uma quebra revolucionária fosse suficientemente grande para conseguir estabelecer uma nova sociedade antes que a disrupção da vida social se tornasse insuportável ou que as forças da reação conseguissem se reagrupar; dá para imaginar que uma alternativa intersticial conseguisse se propagar rápido o bastante para não poder ser nem cooptada nem reprimida; é possível que um projeto simbiótico conseguisse se mover com a velocidade necessária para não ser nem absorvido nem descartado pelo capital. Mas, dado tudo que pudemos observar ao longo da história e o que vemos a nosso redor hoje, podemos dizer que isso é provável? Ou devemos antes concluir, como faz Wright, que o mais provável é que, no melhor cenário possível, a coexistência desses esforços de diferentes tipos é o que poderia funcionar como reforço mútuo, complementando cada posição naquilo que lhe falta, uma forçando a outra a acelerar ou a reduzir a marcha em momentos-chave? Não seria a combinação entre sua ocasional convergência, mas também divergência, aquilo que poderia torná-las mais resistentes e difíceis de derrotar? Em outras palavras, em vez de imaginar que há um único caminho certo, uma única escolha tática que, repetida todas as vezes, sempre funcionaria – não faz mais sentido imaginarmos que é a coordenação, e mesmo a própria tensão entre diferentes apostas estratégicas, que teria mais chances de dar certo? Não é mais plausível pensar que o sujeito coletivo da transformação não é unificado desde cima em torno de um caminho que seria invariavelmente o certo, mas antes plural, diverso, capaz de mover-se em diferentes ritmos e adotar diferentes táticas conforme a ocasião — uma ecologia?

Extrair as lições certas de junho de 2013 importa por causa das circunstâncias em que o novo governo petista se desenrolará. Temos um Congresso desfavorável, dominado por uma coalizão do fisiologismo mais destemperado com o capitalismo predatório que ganhou rédea solta na última meia década. A extrema direita é uma força social real, com uma expressão que ela jamais teve na história brasileira. E o cenário econômico, muito mais frágil que aquele de vinte anos atrás, é marcado pelo desafio epocal de realizar uma transição energética que seja também socialmente justa e capaz de promover um sistema que beneficie a grande maioria da população mundial. Diante disso, muita gente parece concluir que a única alternativa é ser ainda mais cauteloso que antes e estar ainda mais disposto a abrir mão das demandas legítimas da base que elegeu essa administração. Mas, e se a resposta for, na verdade, o contrário: que, mais do que nunca, é apenas a abertura ao dinamismo oriundo da sociedade e, portanto, também ao dissenso e à pressão vinda desde baixo que tem alguma chance de alterar uma correlação de forças tão restritiva, manter o governo no rumo certo e ditar-lhe um ritmo capaz não só de resistir à ação das forças que lhe são contrárias, mas de inverter o jogo e colocá-las na defensiva?

Em vez de imaginar que há um único caminho certo, uma única escolha tática que, repetida todas as vezes, sempre funcionaria – não faz mais sentido imaginarmos que é a coordenação e mesmo a própria tensão entre diferentes apostas estratégicas que teria mais chances de dar certo?

Sobre os autores

é professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil. Seu livro, Neither Vertical Nor Horizontal: A Theory of Political Organization, publicado pela Verso, sairá em português no ano que vem pela editora Ubu.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Armas da crítica, Cidades, Especiais, Política, REVISTA and Revista 6

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