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(Foto reprodução O Tempo)

A crise climática e as ideias para adiar o fim do mundo

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Os indígenas são os maiores protetores das florestas e as florestas são as maiores protetoras do meio ambiente. Para entender melhor essa relação, conversamos com Ailton Krenak para saber como reverter a destruição ambiental dos últimos anos, evitar mais desastres como o Marco Temporal e saber quais são os maiores desafios da luta indígena no governo Lula III.

UMA ENTREVISTA DE

Gercyane Oliveira

O texto a seguir foi publicado na 6ª edição impressa da Jacobin Brasil sobre “Esquerda e poder”. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


Nos últimos quatro anos, os povos indígenas enfrentaram o avanço de pautas contrárias aos seus direitos. Sucateamento da FUNAI, incentivo ao garimpo, congelamento da demarcação de terras, permanência da tese do Marco Temporal, assassinatos de lideranças, trabalho escravo, tráfico humano e exploração sexual de mulheres e crianças conformaram a agenda da extrema-direita. A violência institucionalizada foi amplificada pela gestão da pandemia da Covid-19, marcada pelo atendimento médico inadequado ou inexistente e pelo não envio de recursos e vacinas.

A política de extermínio bolsonarista, favorável aos interesses latifundiários e da bancada ruralista, apenas fez intensificar um projeto que caracteriza o processo de formação social brasileiro. Ancorado nos interesses da burguesia nacional e internacional, esse projeto predatório avassala povos, territórios e culturas em nome da expansão do agronegócio, de madeireiras e mineradoras.

Diante desse cenário, a população indígena foi protagonista na luta contra o fascismo. As constantes mobilizações contra PECs, decretos, leis e portarias foram uma constante, bem como a continuidade do Acampamento Terra Livre, realizado anualmente em Brasília, e a construção do Ato Pela Terra contra o Pacote da Destruição, uma das grandes mobilizações ocorridas no último ano do governo de Bolsonaro. No mesmo sentido, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou o ex-presidente por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional de Haia (TPI).

Entre os projetos de lei denunciados pelo movimento indígena, está o PL 490, aprovado recentemente na Câmara dos Deputados e que legaliza a tese genocida do Marco Temporal. Retrocedendo ao quadro da ditadura militar, o PL dispõe que os povos indígenas só podem reivindicar o direito à terra caso já a estivessem ocupando no momento da promulgação da Constituição Federal, no dia 05 de outubro de 1988. O Marco Temporal é a anistia do esbulho e a legalização da violência bandeirante. Além disso, mina a responsabilidade da FUNAI de demarcar terras indígenas e abre possibilidade de as terras atualmente demarcadas serem dadas para o garimpo e para os latifundiários.

Em 1987, ao discursar na Assembleia Constituinte, Ailton Krenak pintou o rosto com pasta de jenipapo misturada com carvão para protestar contra retrocessos nos direitos dos povos indígenas. Nesta fala histórica, Krenak fazia do Congresso Nacional um campo de batalha, marcando uma atuação que levaria a criação do “Capítulo dos Índios” na Constituição de 1988. Nascido em 1953, no território do povo krenak na região do Médio Rio Doce, Minas Gerais, Krenak é intelectual público, filósofo, poeta, escritor, militante do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas e uma das grandes lideranças dos nossos tempos. Contribuiu com a criação da União das Nações Indígenas (UNI) e é autor de, entre outras obras, Ideias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil.

Nesta entrevista, Krenak fala de um futuro ancestral e da vida sem os horrores, o tempo e o ritmo do relógio burguês. Na valsa mortal do capital, dançamos uma coreografia controlada, que segue metas determinadas. Cada passo é cronometrado para que os movimentos tenham alguma utilidade a ser expropriada. Contra essa dinâmica, Krenak lembra que viver pode ser bailar por prazer: “a vida não é para ser útil. A vida é fruição. A vida é uma dança. Só que ela é uma dança cósmica”.


GO

Nos últimos meses, vimos o horror do genocídio yanomami provocado por quatro anos da extrema direita no poder. Como chegamos a este ponto e o que fazer para não reproduzir violências ao denunciar barbáries contra povos indígenas?

AK

A violência que está presente, inclusive, nas linguagens na nossa mídia, incide sobre a realidade dos yanomamis de uma maneira subliminar. Quando os jornais e a televisão repetem as imagens dos yanomamis famélicos, alguns próximos do óbito, é uma violência que afeta o modo de vida dos yanomamis, independente do que os jornalistas comunicadores tenham como intenção. O Davi Kopenawa Yanomami pediu encarecidamente para não divulgar imagens de pessoas yanomamis que já morreram, porque na cultura deles isso é um tabu, que eles respeitam. Tenho visto tanta violência na comunicação sobre a tragédia yanomami que é como se houvesse um prazer mórbido, de mostrar um povo mutilado. Vejo isso quando noticiam sobre crianças famélicas do Congo e campos de refugiados na África. Parece que estão querendo chamar atenção para aquele fato trágico, mas no fundo estão acumulando violência sobre algo que já é trágico em si mesmo. Como apoiar e dar visibilidade a esse momento de tragédia sem fazer parte dessa orquestra de erros? É difícil, porque às vezes a notícia que aparece não tem editor. Nesse tempo de inteligência artificial, as imagens ganham vida própria. Fora quando as imagens não são acompanhadas de textos absurdos, como um texto que chegou para mim, acompanhado de um vídeo sobre a fuga dos garimpeiros, apresentando isso como se fosse uma boa notícia e dizendo que daqui a pouco o território yanomami estará restaurado e a floresta reconstituída. A pessoa que colocou esse áudio beira o crime, pois está isentando os garimpeiros dos estupros, matança e violência contra os yanomamis e sugerindo que a simples fuga deles de dentro do território já representa um alívio ou reparação.

GO

No novo governo Lula, temos a resistência indígena tomando posse por meio da bancada do cocar. Qual sua perspectiva, receios e esperanças sobre isso?

AK

Vejo com muito entusiasmo, não só as mulheres indígenas e homens, mas também outros segmentos da nossa sociedade complexa que é o Brasil. Vimos, por exemplo, a Anielle Franco tomando posse no Ministério da Igualdade Racial, e esse simbolismo enche a gente de esperança. Mas é bom não esquecermos que se trata disso: simbolismo. A vida não é feita só de simbolismos; a vida exige materialidade. Ao mesmo tempo que vimos o presidente Lula subindo a rampa com os invisíveis, nós vimos também a reação de quem odeia os negros, os indígenas, os pobres em geral, devastando a nossa paisagem, ameaçando e prontos para a guerra. Não podemos ficar distraídos, achando que um gesto vai resolver a nossa história mal contada de racismo e desigualdade — na qual tem gente que morre de fome e gente que faz farra com o dinheiro a semana inteira. Vejo com desconfiança esse momento político da vida brasileira: o terror e o êxtase. Ou a gente está morrendo de medo de ser incendiado ou estamos eufóricos, aplaudindo uns aos outros como se pudéssemos estender à vida cotidiana essa fantasia virtual, da rede social, de todos se beijando e abraçando. A vida é fora dessa cenografia.

GO

Como você interpreta a contradição entre o simbolismo da posse de Lula e a composição ministerial, na qual vemos figuras como Sonia Guajajara e, ao mesmo tempo, Carlos Fávaro, liderança do agronegócio?

AK

Olho como um cidadão pasmo para essa tentativa de juntar alhos com bugalhos e fazer democracia. O presidente Lula já disse que pegou o país destruído e que vai ter de convocar todo mundo para a reconstrução. É uma aposta que ele está fazendo. E está conseguindo convencer pessoas, desde gente atolada no agronegócio e no sistema extrativista violento, que inclui o petróleo e todo tipo de engajamento com grande capital, dizendo que vai conseguir equacionar essas divergências todas dentro do governo dele. Com a experiência de dois mandatos, esperamos que consiga domar essas feras que está colocando para dentro do picadeiro. Com o tempo, a gente vai ver o que de fato restou dessa ideia de juntar o agronegócio com a bancada do cocar. Ainda estou perplexo.

GO

Com lideranças indígenas na política representativa, revela-se institucionalmente um Brasil muito mais diverso em cores do que o limitado verde e amarelo que víamos antes. Um Brasil muito além da visão do paraíso colonial. Como implodir as narrativas falsas, construídas pelas perspectivas das elites, e analisar o país com lentes reais?

AK

Durante muito tempo, o Brasil não quis essas pessoas colorindo bandeira nenhuma, nem cena nenhuma. Depois que essa bandeira foi apropriada pelos fascistas, teve quem a coloriu de várias cores, como uma tentativa de recuperar o simbolismo de uma bandeira compartilhada por povos de várias origens étnicas e heranças culturais. Mas o Brasil nunca quis essa gente na cena. Não sei se houve uma mudança de fundo, ou se nós estamos assistindo só uma nova modelagem do poder político e econômico para continuar sendo o que sempre foi. Atribuem a um nobre italiano que apoiou oportunisticamente Garibaldi no século XIX, durante o Risorgimento, a frase: “se quisermos que as coisas continuem como estão, as coisas vão ter que mudar”. Ou seja, mudar para continuar como sempre foi. E as classes proprietárias descobriram uma maneira de colocar a classe trabalhadora para fazer o serviço que quisessem e, assim, continuaram controlando o poder político e econômico. Não acho que mudar de coreografia significa mudar a dança. Como diz Gilberto Gil em Geleia Geral: “é a mesma dança, meu boi”.

E se tiverem colocando a gente pra dançar a mesma dança de sempre? Tem gente que acha que basta os garimpeiros, que mataram e envenenaram a terra yanomami, saírem pacificamente que está tudo bem. E os quartéis, que serviram de redutos fascistas? E militares, que incitaram os atos golpistas? Tem gente que acha que tudo bem ficar tudo como está. Vejo os cartazes com “Anistia Não”. Será que é mesmo? Não estou vendo ênfase nisso, estou achando que a boiada vai passar. Os garimpeiros que matam, roubam, vão embora trocar cordão de ouro. Os militares, que sediaram o golpe, vão continuar tendo suas regalias. E o povo vai continuar fazendo a mesma dança.

GO

Por que fenômenos como as queimadas no Pantanal e as tragédias de Brumadinho e Mariana são tão corriqueiros no Brasil? Como romper com esse ciclo de devastação?

AK

São fatos corriqueiros porque estão dentro da cadeia do colonialismo e do capitalismo. O capitalismo devasta tudo. O fogo do Pantanal só existe porque querem abrir mais espaço para pasto e monocultura. Brumadinho e Mariana porque a mineração é uma atividade econômica celebrada. Vivo à margem esquerda daquele rio que foi devastado pela lama da mineração. Tivemos que ser abastecidos por caminhão pipa. A água não vai voltar nos próximos 10 ou 20 anos. Do mesmo jeito os yanomamis, que vão ficar sem água por muito tempo. Eles não têm para onde voltar. O trabalho de restauração a ser feito é imenso. Se eles voltarem, vão beber água com mercúrio, comer frutos e outras coletas da floresta envenenadas pelo mercúrio e outras substâncias, contaminação trazida pelos garimpeiros. Não vi ninguém ainda dizer como vão lidar com os yanomamis que vivem na fronteira com a Venezuela. Falta abrangência e profundidade na própria determinação do governo em relação à tragédia yanomami. Em relação às queimadas no Pantanal, promovidas por Bolsonaro, foram cinicamente ignoradas pelas autoridades. Nós temos todo esse lixo para tirar do nosso caminho e, assim, sairmos da fantasia de que basta tirar um bandido do poder para já termos um governo do povo.

Tudo tem nuances. É fácil celebrar tudo, mas o que precisamos fazer é avaliar e contribuir de maneira responsável para que haja de fato uma melhora.

GO

A ideologia colonial continua atuando até hoje. Os militantes socialistas se colocam a tarefa de superar as estruturas de dominação como a única forma de garantir liberdade real para todos. Como conduzir de forma eficaz as lutas por emancipação? Qual a alternativa à “selvageria” do capitalismo neoliberal?

AK

As lutas por emancipação se dão em diferentes termos. Para alguns, dão-se nos termos de habitar um país neoliberal, capitalista, mas com pleno emprego, negócios fluindo e medidas administrativas mais transparentes. Para muitos, já seria o bastante. Para outros, mais radicais, seria preciso mudar as estruturas, rever inclusive a narrativa sobre sermos uma sociedade igualitária, solidária – todas essas mentiras plasmadas sobre os brasileiros, que precisam ser vistas de dentro. Caso contrário, daqui a pouco a gente vai se assustar de novo com um monte de gente nervosa reivindicando a posse de um fascista. Não tenho nenhuma simpatia pelo capitalismo que assola o mundo. Penso em uma sociedade que me provoque entusiasmo, afeto, desejo de estar vivo. A capacidade de estar com pessoas diferentes, seja do ponto de vista político, de gênero ou religião. Onde seja possível experimentar a vida.

GO

Uma frase sua me marcou muito: “Vocês pisam duro sobre a terra e nós pisamos leve, bem leve sobre a terra”. O que significa pisar leve sobre a terra?

AK

Há tecnologias duras e há tecnologias brandas. O agronegócio mobiliza uma tecnologia dura porque precisa drogar o solo para extrair dele mais produção. A construção de uma usina nuclear ou de uma hidrelétrica, termelétricas, são tecnologias duras porque incidem sobre ritmos naturais da vida no planeta e os redirecionam, acelerando processos da própria natureza. As tecnologias brandas são aquelas que estão em equilíbrio com os processos naturais. Por exemplo, energia solar. A energia solar seria uma tecnologia mais branda em relação a uma usina nuclear, a uma hidrelétrica, aos combustíveis fósseis. A agrofloresta seria uma tecnologia muito mais branda em relação ao agronegócio.

Pisar suavemente na terra é fazer uma escolha por tecnologias brandas e por modos mais ritualizados da vida. Pisar duro na terra é o que a mineração faz, o que o garimpo e o extrativismo industrial fazem. Quando derramam petróleo no mar, isso é pisar duro na terra. E a terra responde: a terra é um organismo vivo, ela responde com cataclismos. Se não pisarmos suavemente, a terra vai responder também não suavemente. Não é só evocar uma poesia de estar na vida, mas buscar uma maneira cotidiana de estar no mundo sem danar tanto a vida ao nosso redor. Há boa discussão sendo feita sobre isso hoje, tanto no campo da saúde física e mental, quanto na produção de vida e coisas no mundo. Quem sabe após tantos terremotos, comecemos a pisar mais suavemente sobre a terra.

Sobre os autores

é tradutora, redatora e repórter na Jacobin Brasil. Também é jornalista no Opera Mundi, membro do Fórum Latino Palestino.

é um líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro. É considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, possuindo reconhecimento internacional. É autor do livro "O lugar onde a terra descansa".

Cierre

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Published in América do Sul, DESTAQUE, Ecologia, Entrevista, Meio Ambiente, O fim do começo and Revista 6

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