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Entregadores em greve em Florianópolis: movimento realizou paralisação em todo o país por melhores condições de trabalho (Foto de Pierre Rosa/Agência Estado)

Plataformas de propriedade de trabalhadores

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Em vez de trabalho controlado por plataformas e Big Techs, precisamos de plataformas controladas pelos trabalhadores. Isso só será possível se articularmos o histórico latino-americano de economia solidária e tecnologias livres para prefigurar futuros digitais alternativos.

O texto a seguir foi publicado na 6ª edição impressa da Jacobin Brasil sobre “Esquerda e poder”. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


Nos últimos anos, especialmente com a pandemia, o Brasil viu uma intensificação da exploração e também da luta e organização de pessoas que trabalham por meio de aplicativos. Atualmente, segundo o IPEA, são pelo menos 1,5 milhão de entregadores e motoristas atuando neste setor. Na verdade, esses trabalhadores não trabalham somente “por meio” dos aplicativos, mas são subordinados e vigiados a prtir de mecanismos de empresas que controlam os meios produtivos e comunicacionais. Software disponível em nossos celulares, o aplicativo é somente a faceta mais visível desse processo. Falamos de plataformas para nomear empresas, infraestruturas e tecnologias, que podem ser inclusive websites. Empresas que se utilizam de captura e extração de dados para gerenciar, por meio de algoritmos, uma força de trabalho espraiada pela sociedade.

Isso não é exatamente novo. Especialmente em economias baseadas historicamente na informalidade, o trabalho por plataformas se assenta em desigualdades históricas e se aproveita dessas situações. Aprendemos nos últimos anos que esse tema não é somente de entregadores e motoristas. A dependência de plataformas digitais para executar atividades de trabalho é, dialeticamente, sintoma de mudanças amplas no mundo do trabalho. A este processo chamamos de plataformização do trabalho. Isso afeta tanto atividades de trabalho constituídas anteriormente, como o caso dos próprios entregadores e motoristas, mas também trabalhadoras domésticas e de cuidado, professores, trabalhadores sexuais, entre outros. Da mesma forma, essa dinâmica possibilitou o surgimento de treinadores de dados para inteligência artificial, trabalhadores em fazendas de cliques, streamers, produtores de conteúdo para mídias sociais e uma infinidade de outras funções. E, claro, os trabalhadores não são entes passivos neste processo. Desde táticas cotidianas para tentar driblar o gerenciamento algorítmico até intensas mobilizações para desafiar o poder das plataformas, a organização de trabalhadores nunca parou.

Tecnologia e autogestão dos trabalhadores

Mas o que fazer com tudo isso? Governos em várias regiões do mundo têm proposto regulações para o trabalho por plataformas. No caso brasileiro, tem toda a pinta de ficar apenas com mudanças previdenciárias, sem garantia de direitos e de efetiva proteção social. Indicadores de trabalho digno em plataformas passam pela garantia de remuneração e por condições decentes de trabalho, contratos, gestão e representação, como evidenciam os princípios do projeto Fairwork, que roda em 40 países, inclusive no Brasil. Fato é que, embora central, apenas a regulação não vai resolver os problemas da classe trabalhadora. Não resolve também o problema dos oligopólios das empresas proprietárias das plataformas. É preciso construir circuitos alternativos de produção e consumo, que incentivem formas de soberania e reverberem a voz de trabalhadoras e trabalhadores em contexto de plataformização.

Há vários nomes para um processo semelhante: cooperativismo de plataforma, socialismo de plataforma, expropriação de plataformas por parte de trabalhadores, economia solidária 2.0 (ou 4.0), entre outros. Todos eles apontam para uma reapropriação de tecnologias digitais pela classe trabalhadora no que se refere à autogestão, à governança democrática e à construção de políticas e plataformas públicas. As expressões têm especificidades, com diferentes graus de “reforma ou revolução”. O central é que é necessário imaginar saídas para o trabalho por plataformas que enfrentam o realismo capitalista — incluindo o próprio tecnossolucionismo, a ideia de que a tecnologia, por si só, resolverá problemas sociais. Reconhecer o papel da tecnologia nos processos de autogestão da classe trabalhadora é diferente de achar que ela é o fator determinante.

O que esses nomes têm em comum é a possibilidade prefigurativa de construir hoje o mundo que queremos amanhã a partir de experimentos e protótipos. Isso quer dizer, por um lado, que há alternativas para a lógica do empreendedorismo e das startups. Em vez de unicórnios, podemos construir constelações e Pégaso. Por outro lado, isso significa que não há projeto pronto. A partir de experiências e protótipos em andamento, há todo um trabalho coletivo a ser realizado. Quais as possibilidades de imaginar e projetar outros mundos possíveis para a classe trabalhadora considerando a reapropriação de tecnologias? Como essas imaginações ganham vida no terreno das políticas públicas?

Especialmente em economias baseadas historicamente na informalidade, o trabalho por plataformas se assenta em desigualdades históricas e se aproveita dessas situações. Aprendemos nos últimos anos que esse tema não é somente de entregadores e motoristas. A dependência de plataformas digitais para executar atividades de trabalho é, dialeticamente, sintoma de mudanças amplas no mundo do trabalho. A esse processo chamamos de plataformização do trabalho.

Falarei aqui em plataformas de propriedade de trabalhadores como uma síntese e um derivativo possível dos nomes acima. Isso significa que controle, gestão e design de plataformas digitais estão sob domínio de trabalhadoras e trabalhadores, em desenhos institucionais de cooperativas, coletivos ou outras formas de autogestão. O fomento a esses arranjos alternativos de trabalho é uma possibilidade concreta que o governo Lula deveria considerar fortemente como uma política pública, capaz de articular, em maior ou menor grau, economia solidária, tecnologias livres, políticas urbanas, territorializações, desenvolvimento agrário, ciência e tecnologia. O Estado deve ter um papel central na descentralização das propriedades de trabalhadores e no fomento a essas iniciativas para que nasçam e cresçam “de baixo para cima”, fornecendo apoio por meio de crédito, compras públicas e financiamento de pesquisa aplicada. Inclusive, deve ser aproveitado o potencial dos parques tecnológicos das universidades, que muitas vezes viram lugar apenas para incubação de startups.

Claro, a autogestão por parte de trabalhadores tem limites e críticas, e é bom mencioná-las desde já. Uma primeira crítica relaciona-se ao poder de mercado de tais arranjos. Eles seriam capazes de desafiar os oligopólios e monopsônios das plataformas digitais dominantes? Estas podem atuar numa lógica financeirizada de operar no vermelho sem que nada aconteça, além de oferecer descontos e promoções irresistíveis aos consumidores apenas para quebrar seus concorrentes. Isso se liga ainda aos chamados “efeitos de rede” característicos da plataformização, em que os benefícios são direcionados apenas às plataformas que já possuem uma grande gama de usuários. Uma segunda crítica relaciona-se ao real poder político de transformação de cooperativas ou outros arranjos de trabalho baseados na autogestão. Há sempre o risco de cooptação por lógicas burocráticas ou de transformação em versões “cooperativas” de empresas tradicionais ou startups. Ainda há a possibilidade de esse arranjo institucional ser instrumentalizado pelas grandes empresas para fraudes trabalhistas, como os casos de “coopergatos” nos anos 1990. Uma terceira crítica, mais específica para o contexto atual, é se precisamos realmente hackear modelos de plataformas ou se podemos pensar de maneira mais ampla “tecnologias de propriedade de trabalhadores”. Esse movimento abriria espaço para que se considerasse o desenvolvimento tecnológico desde os locais e suas especificidades, sem tentar imprimir uma mesma lógica tecnológica a todos os territórios.

Essas três críticas apontam para possíveis limitações de plataformas de propriedade de trabalhadores. Mas esses não são motivos para dizer: “ah, se tem críticas, eu já não quero”. Pelo contrário, a partir do reconhecimento dos limites, é possível ser mais contundente na construção de alternativas e, ademais, enxergar quais modelos ou soluções se afastam daquilo que estamos chamando de plataformas de propriedade de trabalhadores. Mas também é necessário demarcar o que, para nós, não está na agenda de plataformas de propriedade de trabalhadores.

Plataforma de propriedade de trabalhadores não é ter um Uber cooperativista em cada cidade do país. Em primeiro lugar, porque a questão não está somente no aplicativo ou software, mas também e especialmente na propriedade de infraestruturas, dados e de tudo o que isso envolve. Em segundo lugar, não se trata de criar inúmeros competidores cooperativistas no mesmo lugar, mas de facilitar o compartilhamento de recursos por meio da intercooperação. Intercooperação, ou cooperação entre cooperativas e coletivos é a chave para enfrentar os efeitos de rede. Além disso, elas não são “startups cooperativas” nem versões genéricas das plataformas dominantes. Por fim, as plataformas de propriedade de trabalhadores não podem ser confundidas com fraudes trabalhistas, “coopergatos” ou formas de escamo tear direitos trabalhistas.

E o que, afinal, podem ser? Alguns princípios são: trabalho digno, com condições adequadas de remuneração, jornada de trabalho, gestão e representação; governança democrática; dados para o bem comum, justiça no design, para combater desigualdades algorítmicas; perspectivas interseccionais tanto na organização do trabalho quanto na construção de tecnologias; intercooperação; e um olhar para a soberania digital a partir do ponto de vista de quem trabalha, compreendendo uma perspectiva popular para tecnologias, infraestruturas e dados. Princípios como esses têm sido testados e experimentados por iniciativas ao redor do mundo no sentido de a classe trabalhadora governar as plataformas.

Aprender com o percurso já trilhado

Por quais caminhos tem se desenhado as plataformas de propriedade de trabalhadores, especialmente na América Latina? A organização e a circulação de lutas de trabalhadoras e trabalhadores têm sido intensas ao menos desde 2020, especialmente no setor de mobilidade. Além de protestos, greves, mobilizações e formação de associações e sindicatos, as pessoas que trabalham têm se reunido em coletivos e cooperativas para construir alternativas tanto de organização de trabalho quanto de tecnologias.

No Brasil, alguns exemplos são o Senoritas Courier e o Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Senoritas é um coletivo de mulheres cis e pessoas trans que realizam cicloentrega em São Paulo a partir de lógicas de cuidado e construindo tecnologias, como formulários automatizados e bancos de dados coletivos. O Núcleo de Tecnologia do MTST atua para articular a classe trabalhadora a partir de uma perspectiva de soberania digital, entendendo a construção de tecnologias desde baixo. Um de seus projetos é o Contrate Quem Luta, um chatbot que conecta militantes do Movimento a pessoas que precisam de serviços de pintores e trabalhadores domésticos — uma forma de, ao mesmo tempo, orgaizar trabalhadoras e trabalhadores e também reapropriar tecnologias.

Na Argentina, a Federação de Cooperativas de Tecnologias (FACTTIC) está em um projeto de territorializar a CoopCycle (federação de cooperativas de entregadores de origem europeia) na América Latina. O que isso significa? A CoopCycle é um exemplo que compartilha o mesmo software entre as diferentes cooperativas em cidades da Europa. Assim, o consumidor baixa o aplicativo, e os trabalhadores compartilham recursos. Contudo, o aplicativo foi projetado pensando na realidade e nos espaços urbanos de uma cidade como Bordeaux e não do Rio de Janeiro ou de Buenos Aires. Este é o trabalho que a FACTTIC tem feito. Em vez de apenas importar ou “tropicalizar” a tecnologia de outros contextos, trata-se de aterrar a partir de nossas próprias perspectivas. E isso está em fase de experimentação tendo em vista a colaboração com outros países na América Latina. Nos últimos anos, o país portenho também viu emergir jornais recuperados por trabalhadores, como o Tiempo Argentino, e outras iniciativas na área de tecnologia, como a Alternativa Laboral Trans.

O que as experiências latino- -americanas têm mostrado é uma complexificação do que se chama de “cooperativismo de plataforma”. Elas não são necessariamente cooperativas, mas movimentos sociais e coletivos. E também não exatamente reproduzem modelos de plataformas digitais, pois abrem perspectivas para formas tecnológicas mais amplas construídas a partir da perspectiva da classe trabalhadora. Isso tem um enorme potencial em termos de territorializar as plataformas, descolonizar tecnologias e não somente copiar o que já existe. Os exemplos acima podem ser experiências em andamento para imaginar outras tecnologias e outros futuros do trabalho, conectando-se a movimentos em andamento na região em torno de inteligência artificial decolonial, descolonização de dados e perspectivas antirracistas, indígenas e interseccionais para as tecnológicas, a exemplo do projeto Oráculo para Tecnologias Transfeministas. Esses protótipos ou prefigurações de futuro também podem se conectar a todo um histórico da região em termos de economia solidária, fábricas recuperadas por trabalhadores e movimentos por tecnologias livres e abertas, incluindo redes comunitárias. A América Latina tem exemplos como a CyberSyn de cibernética socialista no Chile, além de experimentos de formas de indexação da informação em Cuba, a partir da perspectiva de biblioteca popular de Maria Teresa Freyre de Andrade, como mostra Rodrigo Ochigame, “em Informática do Oprimido”. As plataformas de propriedade de trabalhadores são uma oportunidade para conectar presente, passado e futuro nas relações entre tecnologia e trabalho.

Isso não significa ignorar a circulação de lutas de trabalhadores que têm ocorrido no Norte Global, a exemplo de experiências como a Means TV, uma plataforma de streaming controlada por trabalhadores e com conteúdo anticapitalista (e que também distribui games!), e a Driver’s Coop, uma cooperativa de dados de motoristas. Esta última vende seus dados coletivamente para agências públicas para que elas dependam menos das big techs na realização do planejamento urbano. Por outro lado, é importante reconhecer a inovação experimental das iniciativas nascidas na América Latina como forma de fortalecer e aproximar processos semelhantes.

Políticas de tecnologia para a classe trabalhadora

Contudo, a maioria das experiências tem tido dificuldades em conseguir apoio e financiamento. O Estado brasileiro, até o momento, não construiu programas de fomento a plataformas de propriedade de trabalhadores. A institucionalidade estatal tem um papel central ao incentivar a construção de iniciativas desde baixo. Como já mencionado, mecanismos de compras públicas, incentivo a pesquisas realizadas em conjunto entre universidade e trabalhadores e fortalecimento de parques tecnológicos para incubação de plataformas de propriedade de trabalhadores devem servir de inspiração no desenho de políticas públicas. O próprio BNDES pode incentivar o surgimento e o fortalecimento dessas experiências dentro de um projeto de soberania nacional. Esse fortalecimento é essencial para evitar o fechamento de iniciativas de trabalhadores devido ao lobby das grandes plataformas. Mais do que isso: é preciso avançar para que esses protótipos sejam em breve uma síntese de políticas públicas para a classe trabalhadora.

O que as experiências latino-americanas têm mostrado é uma complexificação do que se chama de “cooperativismo de plataforma”. Elas não são necessariamente cooperativas, mas movimentos sociais e coletivos. E também não exatamente reproduzem modelos de plataformas digitais, pois abrem perspectivas para formas tecnológicas mais amplas construídas a partir da perspectiva da classe trabalhadora

Em 2022, um Plano de Ação para o Cooperativismo de Plataforma no Brasil foi apresentado a Lula pela entregadora Bruna Isidoro Sampaio, em evento realizado no Galpão do Armazém do Campo, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em São Paulo. O manifesto considera que um programa para a área deve ser interministerial, reunindo setores como cidades (incluindo a Secretaria de Periferias), desenvolvimento local, desenvolvimento agrário, ciência e tecnologia, comunicações e políticas digitais. Esse pode ser o início para a construção de políticas públicas que fortaleçam plataformas de propriedade de trabalhadores como um ponto de partida para projetar diferentes dimensões da questão, inclusive plataformas públicas. Para que não se tornem experiências “hipsters” localizadas ou sem muito fôlego, as plataformas de propriedade de trabalhadores precisam de uma forte rede de intercooperação para sobrevivência, que envolva diversos setores sociais e a penetração em espaços urbanos e rurais.

O governo Lula tem tudo para construir um programa nacional voltado a plataformas de propriedade de trabalhadores. Há políticas públicas exitosas em outros lugares, como MatchImpulsa, na cidade de Barcelona, para plataformizar a economia solidária na região a partir de uma perspectiva transversal de gênero. Além disso, o Brasil reúne uma das comunidades mais vibrantes do mundo em torno do tema, envolvendo movimentos sociais, trabalhadores e universidades. Entre mudanças e permanências no modo de produção capitalista, não estamos mais em 2003 e precisamos de uma resposta à esquerda para a economia digital. Este também é um convite para que mais instituições, entre elas os partidos e sindicatos, ocupem o tema e as próprias plataformas digitais. É necessário aprender com o passado. Imaginar, resistir, ocupar e socializar.

Sobre os autores

é professor de Estudos de Mídia com foco em Estudos Críticos de Plataformas da Universidade de Toronto. Líder do DigiLabour e do Observatório do Cooperativismo de Plataforma. Pesquisador dos projetos Fairwork e Platform Work Inclusion Living Lab. Atualmente, escreve um livro sobre o Núcleo de Tecnologia do MTST.

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Published in América do Sul, Análise, Legislação, O fim do começo, REVISTA, Revista 6, Tecnologia and Trabalho

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