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Mulheres com seus filhos caminhando no campo de al-Roj no Nordeste da Síria, que, juntamente com o campo de al-Hol, abriga milhares de mulheres estrangeiras do ISIS fanáticas. (Anna Rebrii e Liza Shishko)

Os curdos ainda lidam com o ISIS – um problema “esquecido” pelo ocidente

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Tradução
Sofia Schurig

Já se passaram quatro anos desde que as forças lideradas pelos curdos derrotaram o califado do Estado Islâmico (ISIS). Mas ainda hoje, as novas autoridades no Nordeste da Síria têm que lidar com milhares de combatentes estrangeiros do ISIS, cujas terras natais se recusam a aceitá-los de volta.

“Nunca gostei daqui na Síria”, lamenta Ali, um turco-americano de dezesseis anos. Ele é de Nova York, mas o encontramos em um centro de reabilitação para os chamados “filhotes de leão” do califado, meninos que o ISIS treinou e enviou para matar. Ele está cortando o cabelo de um de seus amigos, sentado obedientemente diante de um espelho, como parte da aula de barbeiro oferecida pela Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES) aos ex-combatentes infantis.

Ali, um turco-americano de dezesseis anos, cortando o cabelo de seu amigo como parte de uma oficina de barbeiro no centro al-Houri. Pediram-nos para não fotografar o rosto dos detentos para preservar sua privacidade. (Anna Rebrii e Liza Shishko)

“Cheguei aqui quando estava na quarta série”, ele nos conta apressadamente, visivelmente animado por encontrar alguém de sua cidade natal. “Eu realmente quero voltar para Nova York e colocar meus estudos em dia”. Observamos a navalha se movendo rapidamente em sua mão. “Pelo menos saberei como cortar o cabelo quando sair daqui.”

Ali — como os outros detentos mencionados aqui, ele é citado sob um pseudônimo — é um dos cerca de cem adolescentes de todo o mundo que encontramos frequentando aulas no centro al-Houri, perto de Qamishli, no Nordeste da Síria. Com idades entre doze e vinte e dois anos, alguns dos meninos estão concentrados sobre uma máquina de costura Singer, enquanto outros estão ao redor de uma professora dando uma aula de alfabetização. Um garoto francês está tocando “Für Elise”, de Beethoven, em um piano elétrico, enquanto seu colega do Paquistão está praticando violão — atividades que eram proibidas para eles sob o domínio do califado.

Um pátio espaçoso de tijolos vermelhos com uma fonte no meio pode temporariamente esconder que tipo de lugar é este. No entanto, o arame farpado nas paredes circundantes serve como um lembrete constante de que esses meninos não estão livres para sair pelo portão.

O pátio do centro de reabilitação al-Houri. (Anna Rebrii e Liza Shishko)

Desradicalizando os “Filhotes de Leão”

Como Ahmed Lawend, membro da administração do centro, nos disse, não há ninguém aqui que não tenha sido iniciado de uma forma ou de outra na força de combate do ISIS. “Alguns trabalhavam como policiais do ISIS, outros se juntavam às linhas de frente e outros eram treinados para plantar minas.” Alguns foram levados ao centro com ferimentos de batalha de Bastion, o último reduto do ISIS em Baghouz.

Lawend fez questão de acrescentar que este não é um presídio. “Essas crianças não têm culpa alguma. Muitas foram informadas por suas famílias de que estavam vindo aqui como turistas.”

Mohammed, um jovem de dezenove anos de Trinidad e Tobago, fazendo break dance durante o recreio. (Anna Rebrii e Liza Shishko)

O trabalho dele e de seus colegas no centro al-Houri é erradicar a mentalidade do ISIS à qual a maioria desses meninos foi exposta involuntariamente — tanto antes da derrota do califado quanto depois, quando ficaram nos campos ou prisões do ISIS.

“Meu pai me trouxe aqui”, disse Mohammed, um jovem alto de dezenove anos de Trinidad e Tobago, depois de vê-lo fazendo break dance ao som de uma melodia ritmada. Como todos os meninos com quem conversamos, vir para a Síria não era o futuro que Mohammed teria escolhido para si mesmo. A maioria era jovem demais para fazer essa escolha.

Com o pai morto e o irmão mais velho preso, Mohammed anseia por retomar o contato com sua mãe, que ficou para trás, do outro lado do oceano. Quando perguntado pelo nome dela, ele vacilou e, em seguida — com um sorriso triste e o rosto suado — nos disse que tinha “esquecido o sobrenome de [sua] mãe”. Já se passaram dez anos desde que ouviu uma palavra dela.

Combatentes estrangeiros do ISIS, esquecidos pelo mundo

Mohammed quer ser dançarino ou cantor quando voltar ao Caribe. No entanto, não está claro se algum dos meninos será capaz de usar o conhecimento e as habilidades que estão desenvolvendo no centro. Enquanto a maioria dos adolescentes sírios, também alojados aqui, já foram condenados pelos tribunais da AANES por ligações locais com o ISIS e subsequentemente devolvidos às suas famílias, as perspectivas dos estrangeiros de voltar para casa são sombrias: seus países de origem demonstraram pouco interesse em recebê-los de volta.

Um adolescente originalmente da França durante uma aula de música no centro al-Houri. (Anna Rebrii e Liza Shishko)

Conforme um relatório recente do Instituto da Paz Curda (KPI) documenta, apenas 4% de um estimado de dois mil combatentes estrangeiros do ISIS detidos nas prisões administradas pela AANES foram repatriados por seus países de origem desde 2019, quando o califado do ISIS recebeu o golpe final das Forças Democráticas Sírias (SDF) lideradas pelos curdos. Os chamados países desenvolvidos do Ocidente têm sido os mais relutantes em trazer de volta os homens cuja

simpatia pelo ISIS surgiu pela primeira vez dentro das fronteiras dessas nações. Como Matt Broomfield escreve no relatório do KPI, “Estados como França, Alemanha, Canadá, Austrália, Bélgica e Reino Unido falharam em repatriar um único combatente masculino”.

Mais 12.500 esposas e filhos de combatentes estrangeiros estão languidescendo em campos carentes de recursos. Com apenas um gotejamento de repatriações até agora, a AANES se vê injustamente sobrecarregada com o problema do jihadismo do mundo.

Por anos, a administração tem apelado à comunidade internacional para repatriar seus cidadãos ou para vir e julgá-los na terra onde cometeram seus crimes atrozes. Governando uma região devastada pela guerra sob um embargo de fato da Turquia e do governo de Assad, sem reconhecimento internacional, a AANES simplesmente carece de recursos para guardar e cuidar indefinidamente de milhares desses extremistas. Com seus apelos por ajuda sem resposta, ela anunciou recentemente que julgará os combatentes estrangeiros por conta própria, esperando finalmente provocar ação de uma comunidade internacional indiferente.

Uma bomba-relógio

Isso não é apenas uma questão de justiça, mas sim da ameaça que o ISIS ainda representa para o mundo. Os meninos que conhecemos não se uniram ao ISIS por vontade própria — mas muitas pessoas atualmente detidas em prisões e campos da AANES o fizeram. Como Bedran Çiya Kurd, co-presidente do Departamento de Assuntos Externos da AANES, deixou claro em uma coletiva de imprensa sobre os julgamentos iminentes, as tentativas repetidas do ISIS de escapar são prova suficiente de que seus membros não desistiram de sua missão genocida.

No ano passado, quando o ISIS usou dois caminhões-bomba suicidas para abrir um buraco no muro de uma prisão em Hasakah, levou dez dias para que as SDF e seus aliados dos EUA e Reino Unido controlassem a insurgência. Alguns militantes do ISIS haviam feito reféns os funcionários da prisão, enquanto outros de células adormecidas do ISIS entraram em casas civis. Ao final da feroz batalha, 117 militares e funcionários da prisão foram assassinados, além de 374 membros do ISIS.

Segundo Ararat Azad, lutador das SDF (um pseudônimo), que participou da supressão do ataque, as formas brutais do ISIS permaneceram inalteradas: “Quando chegamos para libertar os residentes em cujas casas os militantes do ISIS estavam barricados, vimos a mesma coisa que durante as batalhas de libertação de Kobani, Raqqa ou Deir ez-Zor [antes da derrota territorial do ISIS em 2019]. Em uma das casas em Hasakah, encontramos cinco cabeças decepadas de seus moradores, deitadas no quintal.”

Portanto, o ISIS ainda representa uma ameaça contínua. No entanto, os mesmos poderes internacionais que se juntaram à Coalizão Internacional liderada pelos EUA contra o ISIS, que correram com suas forças terrestres e aéreas para recapturar os fugitivos da prisão, pouco fizeram para propor uma solução de longo prazo para os milhares de prisioneiros que aguardam outra chance fatal de fuga.

Terreno fértil

Embora indiscutivelmente importante, os julgamentos de ex-combatentes do ISIS não são suficientes para abordar completamente a bomba-relógio que a AANES agora tem que lidar, com apoio externo insuficiente.

Como amplamente documentado, uma nova geração do ISIS está sendo criada nos notórios campos de al-Hol e al-Roj, que abrigam milhares de mulheres estrangeiras do ISIS fanáticas. Essas mulheres assumiram a responsabilidade de reproduzir o poder de combate do ISIS doutrinando e treinando seus filhos como futuros combatentes do ISIS. Talvez ainda mais perturbadoramente, elas estão forçando adolescentes a engravidar as detentas dos campos para aumentar o número de crianças soldados.

Captura de tela mostrando meninos passando por treinamento militar no campo de al-Hol, de um relatório em vídeo feito pela TV Ronahi com base no Nordeste da Síria em resposta ao relatório da ONU de 2023 sobre a detenção de indivíduos ligados ao ISIS no Nordeste da Síria. As imagens foram encontradas nos telefones das detentas do campo.

Com cerca de cinco mil crianças já vivendo na seção estrangeira de al-Hol, o número delas está crescendo de forma alarmante: a administração do campo estima que uma média de sessenta e seis bebês nasceram por mês apenas em 2021.

É por esses motivos, Lawend nos disse, que a administração escolhe transferir os meninos adolescentes para os centros de reabilitação até que atinjam a idade adulta. Embora um relatório recente da ONU acuse a AANES de separar arbitrariamente crianças de suas mães, o governo insiste que não tem outra escolha, dada a dedicação implacável delas ao ISIS. É claro que, embora tenha perdido seu próprio território, o reinado do ISIS continua dentro desses campos: guardas foram esfaqueados, escolas incendiadas e mulheres que se recusam a cobrir a cabeça são punidas com a morte.

No campo de al-Roj, que é conhecido por ser o menos radical e perigoso dos dois, somos recebidos por crianças de todas as idades correndo entre as fileiras expansivas de barracas. Ao nos verem, estrangeiros em seu território, começam a brincar de guerra, apontando seus dedos na forma de armas diretamente para nossas cabeças. Um garoto de cinco anos nos xinga em turco. Esta é uma recepção aparentemente suave: no campo de al-Hol, os visitantes são frequentemente alvos de pedradas.

Um adolescente do Egito tocando violão com um dos professores no centro al-Houri. (Anna Rebrii e Liza Shishko)

“Eles estão apenas brincando”, diz Margarita, uma das detentas do campo. Ela é da Moldávia; seu marido está na prisão de Hasakah onde ocorreu o surto do ano passado. Seu filho, que está com ela no campo, logo completará catorze anos — a idade em que os meninos geralmente são levados para os centros de reabilitação. Alguns das crianças voltam ao campo a cada mês por uma semana, nos contou a guarda Leila (um pseudônimo), que nos acompanhou por razões de segurança: “Durante essa semana, as crianças mudam muito e esquecem tudo o que lhes foi ensinado.” Embora menos violento que o campo de al-Hol, o campo de al-Roj também abriga apoiadores do ISIS sem arrependimentos.

“Esperamos muito que sairemos antes que nosso filho seja levado para essa escola. Ouvimos dizer que as crianças não podem praticar esportes lá. São tratadas cruelmente”, diz Margarita, repetindo as falsas alegações de maus-tratos espalhadas pelas mulheres do ISIS nas redes sociais, onde expressam abertamente suas esperanças de criar seus filhos como combatentes e arrecadam fundos para escapar da detenção.

“Claro, gostaríamos muito de ir para a Turquia”, acrescenta Margarita, sonhadora, quando perguntada que tipo de futuro ela deseja para sua família. “Lá seríamos livres, poderíamos viver como quisermos. Praticar nossa religião livremente. Para nós, a melhor opção é se a Turquia libertar nosso campo assim como o campo em Ayn Issa.”

Um membro da OTAN alimenta o ressurgimento do ISIS

As esperanças de Margarita não são infundadas. Ao longo dos anos, a Turquia provou ser a aliada mais confiável do ISIS. Mais de oitocentas mulheres e crianças ligadas ao Estado Islâmico escaparam do campo de Ayn Issa quando a Turquia bombardeou a área durante sua invasão de 2019 no Nordeste da Síria. Da mesma forma, como parte de sua grande ofensiva aérea na região em 2022, as forças aéreas turcas atacaram os guardas de segurança de al-Hol, permitindo que alguns detentos escapassem. Durante o surto da prisão de Hasakah no ano passado, a Turquia lançou vários ataques aéreos na área próxima, com um ataque de drone atingindo um veículo das SDF a caminho de recapturar insurgentes.

Nesse contexto, a afirmação das SDF de que o surto do ano passado foi planejado dentro da Turquia e nas áreas da Síria sob seu controle é altamente crível. A chamada “zona segura” — um eufemismo para a ocupação internacionalmente sancionada da Turquia no norte da Síria — tem sido segura apenas para os membros do ISIS e similares.

É nessa “zona segura”, nos disse Azad, que os militantes do ISIS escapados buscam refúgio. Assim como as mulheres do ISIS, que são regularmente contrabandeadas para fora dos campos. Algumas supostamente cruzam para a Turquia, onde o ISIS continua suas operações. Como aprendemos com Margarita, que tinha a TV em sua barraca sintonizada em um desenho animado turco, as detentas de al-Roj ensinam seus filhos turco — outra indicação clara de que a Turquia ganhou reputação como um refúgio seguro para aqueles com vínculos com o ISIS.

O que vem a seguir?

De volta ao centro al-Houri, Lawend está convencido de que os meninos estão melhor longe de suas mães. Mas sem repatriações, o centro enfrenta um beco sem saída. “Como podemos mandar essas pobres crianças de volta para os campos ou prisões quando crescerem?” Apesar das melhores intenções da Administração Autônoma, a solução real só pode vir com o apoio político e material da comunidade internacional. Enquanto isso, à medida que a Turquia continua a atacar a região, visando exatamente as pessoas encarregadas de guardar dezenas de milhares de suspeitos e apoiadores do ISIS, o mundo escolhe fechar os olhos para o perigo muito real do ISIS 2.0.

Sobre os autores

Anna Rebrii

é uma escritora e pesquisadora de Nova York com foco na questão curda na Síria e na Turquia e nos movimentos indígenas no México. Seus escritos apareceram na NationJacobinTruthoutopenDemocracy e outros veículos.

Liza Shishko

vive e trabalha há mais de sete anos no Oriente Médio, cobrindo guerras e política nesta região e no Cáucaso. Ela administra um blog no Instagram @woman_life_freedom sobre Síria, Turquia e Curdistão.

Nisreen Kermo

é uma fixadora, tradutora e jornalista baseada em Qamishli, nordeste da Síria.

Cierre

Arquivado como

Published in Fronteiras & Migração, Guerra e imperialismo, Notícia and Oriente Médio

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