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(Tyke Jones / Unsplash)

A história popular do surfe

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Tradução
Gercyane Oliveira

Desde suas origens havaianas até a moda no pós-guerra, o surfe tem sido um desafio à ética de trabalho calvinista e às pressões comerciais do capitalismo. Mas essas forças sociais perversas podem agora finalmente conseguir extinguir o espírito do surfe.

Por mais de dois séculos, o capitalismo industrial ocidental vem travando uma guerra contra a essência do surfe. Desde suas origens como um passatempo havaiano tradicional, passando pelo auge da contracultura, o surfe resistiu a uma série de ataques, mas os avanços tecnológicos do capitalismo tardio e a lógica brutal de mercado do neoliberalismo podem significar o fim do surfe como o conhecemos.

A comercialização do surfe como uma mercadoria tem uma repercussão cultural muito mais ampla. Nas palavras de Cornel West (um californiano nativo, mas não um surfista, até onde sabemos): “Uma das maneiras pelas quais o capitalismo se reproduz é a mercantilização de tudo e de todos”. A história do surfe é um exemplo disso.

Pegando onda

É quase impossível explicar o surfe. Somente um tolo tentaria colocar a experiência em palavras. Escrever sobre o surfe requer conhecimento de geografia, física e poesia.

Os surfistas surfam em pulsos de energia que se movem pelo oceano. Esses pulsos são criados por tempestades violentas além do horizonte. À medida que se deslocam por milhares de quilômetros de oceano aberto (conhecido como “fetch”), eles se dividem em conjuntos de ondas. À medida que essa energia se aproxima de um litoral, seja uma praia arenosa, um ponto rochoso ou um recife de coral, as ondas se dobram sobre si mesmas ou “quebram”.

Os surfistas, posicionando-se em um local muito preciso, usam a força física, a memória muscular inconsciente e o conhecimento incorporado do lugar para remar as pranchas na direção da onda que está quebrando, com o objetivo de capturar essa energia. Nesse momento, geralmente alguns segundos, mas em alguns raros locais até um minuto ou um pouco mais, a onda pode ser surfada. O surfista é impulsionado para frente pela interação da energia da onda com as características topográficas subaquáticas.

E então a energia se dissipa. O momento se foi. Aquela onda, aquela faixa singular de energia, nunca mais existirá e o passeio do surfista acabou.

O que é esse breve passeio? Uma dança? Uma poesia? Uma comunhão com a natureza e as forças do universo? É frívolo, sem sentido e, muitas vezes, até egoísta. O surfe não serve a nenhum propósito materialmente útil, além de cuidar da ecologia psicológica do surfista.

O ato de surfar nas ondas é profundamente satisfatório de uma forma que nos leva a explicações metafísicas. Gerações de surfistas, viciados em tais momentos de felicidade transcendental, fizeram sacrifícios materiais para estar lá, na água, em uma praia, ponto ou recife específico, no momento exato em que as ondas estarão no seu melhor momento. O surfe criou comunidades de pessoas de fora que evitam as motivações capitalistas tradicionais e vivem propositadamente nas margens reais da sociedade tradicional.

Há também aqueles que veem o surfe e pensam que é um esporte: um jogo, uma competição com regras e juízes para separar os vencedores dos perdedores. Outros veem um estilo de vida que pode ser transformado em mercadoria e comercializado visando ao lucro.

Capitão Cook e os Kānaka Maoli

Várias formas de surfar nas ondas remontam a séculos atrás no que hoje é o Peru e a África Ocidental, mas as origens do que a maioria identificaria como surfe – deitar-se de bruços em uma prancha e remar com os braços em direção a uma onda – são inegavelmente havaianas. O relato do capitão James Cook sobre sua infeliz “descoberta” das ilhas (completada postumamente por James King) contém a mais antiga descrição ocidental do surfe:

Com isso diante de si, eles nadavam até a brecha mais externa, então um ou dois entravam nela e, ao opor a extremidade cega à onda que quebrava, eram empurrados com incrível rapidez. Às vezes, eles eram levados quase até a praia.

Mulheres e homens de todas as classes sociais surfavam, mas alguns afirmam que as melhores ondas eram reservadas para os ali’i, a elite social indígena. Sem romantizar o passado, não é difícil imaginar a alegria desses surfistas pré-coloniais. Embora a missão de Cook fosse uma viagem científica, ele estava acumulando conhecimento para o Império Britânico a fim de facilitar sua expansão econômica global e abriu as comportas do contato ocidental com o Havaí. Em uma geração, Honolulu e Lahaina tornaram-se portos de escala movimentados para as frotas baleeiras globais europeias e americanas.

As consequências foram desastrosas. No mar, os caçadores vorazes abatiam os maiores mamíferos do planeta para obter o óleo e os ossos lucrativos. Em terra firme, os haole (estrangeiros ou brancos) espalharam uma série de doenças entre os Kānaka Maoli ou povos indígenas. A varíola, a tuberculose e o resfriado comum cobraram um preço alto, assim como as doenças sexualmente transmissíveis e as doenças terríveis, como a lepra.

O colapso demográfico subsequente lançou a cultura havaiana no caos. As comunidades desestabilizadas física e psicologicamente eram os principais alvos dos missionários protestantes. Ao chegarem na década de 1820, uma série de severos ingleses da Nova Inglaterra disse aos Kānaka Maoli que essas pragas eram um castigo de Deus por seus pecados.

Calvinismo e conquista

À medida que acumulavam influência política entre os ali’i, os cristãos que chegavam suprimiram a religião e a cultura tradicionais, inclusive a hula (dança) e o mele (canto ou música). Desprezando corpos humanos, eles forçaram o uso de roupas de estilo ocidental no calor tropical. Obviamente, os missionários não aprovaram o surfe, pois ele era praticado nu. Mas o surfe também era uma perda de tempo frívola para esses calvinistas norte-americanos. Eles desprezavam pegar onda e outros aspectos do estilo de vida atlético dos indígenas como preguiça e loucura pagãs. A repressão ao surfe fazia parte de um ataque cultural e econômico maior às tradições havaianas que culminou com o Grande Māhele de 1848: a imposição da propriedade privada sobre as terras havaianas.

De repente, a terra se tornou uma mercadoria, impossibilitando a tradição de de subsistência comunitária e forçando os Kānaka Maoli a trabalharem como assalariados nas novas plantações de açúcar de propriedade dos haoles, na colheita de madeira ou nas cidades portuárias em crescimento. Essa Doutrina do Choque do século XIX, envolvida no moralismo calvinista, foi um golpe quase fatal para o surfe.

Entretanto, quando o rei David Kalākaua assumiu o trono na década de 1870, ele ressuscitou o surfe. Em um esforço calculado para defender o Havaí dos imperialistas ocidentais vorazes, Kalākaua procurou revitalizar a saúde e o espírito de seu povo promovendo o hula e outras tradições indígenas, como o surfe nas ondas.

No final, seus esforços fracassaram, pois o capital americano encontrou retornos impressionantes no setor açucareiro em expansão. Os colonos Haole derrubaram a monarquia em 1893 e estabeleceram uma república de colonos com supremacia branca. Em 1898, os Estados Unidos anexaram formalmente, embora ilegalmente, o arquipélago. Politicamente desprivilegiados e economicamente marginalizados, os Kānaka Maoli continuaram a sofrer declínio demográfico à medida que os proprietários de plantações haole importavam trabalhadores do Japão, da China e das Filipinas.

Levou pouco mais de um século para que o capitalismo ocidental transformasse a comunidade indígena em uma minoria empobrecida e sem poder. O historiador Isaiah Helekunihi Walker argumenta que muitos Kānaka Maoli encontraram refúgio contra esse horror nas ondas do Havaí.

Supremacia do surfe

Como Scott Laderman demonstrou, ironicamente, o capital ocidental renovou o surfe no início do século XX. Quando as ilhas produtoras de açúcar se tornaram um território americano, os empresários haole promoveram o arquipélago, especialmente a praia de Waikiki, em Oahu, como um destino turístico. Suas campanhas reformularam a prática de surfar nas ondas do Havaí como um produto de experiência que os brancos ricos podiam comprar, tornando-a segura e acessível por meio dos serviços do Waikiki Beach Boy. Quando Alexander Hume Ford, um empresário da Carolina do Sul de uma família de proprietários de plantações, estabeleceu-se no Havaí em 1907, ficou cativado pelo surfe. Apesar de ter entrado na meia-idade e ser um malihini (um termo desdenhoso para os recém-chegados), ele logo se tornou um surfista proficiente. Em 1908, ele fundou o Outrigger Canoe Club para promover o surfe e outros esportes aquáticos havaianos.

Apesar de toda a sua adesão às atividades indígenas, o Outrigger era segregado. O clube privado de elite continuou sendo uma base da supremacia branca no Havaí durante todo o século XX. Sua liderança contava com muitas das figuras políticas e empresários importantes que orquestraram a derrubada da monarquia havaiana. A visão de Ford de um Havaí “redimido do Oriente, fortificado e americanizado como deveria ser” foi manifestada no Outrigger Canoe Club.

Ford usou o surfe para atrair investidores ocidentais para o território. O surfe foi um complemento de poder brando para seus outros esforços de promoção, como a Pan-Pacific Union, uma organização criada para incentivar o fluxo transoceânico de capital, e sua Mid-Pacific Magazine.

Em um artigo de 1909 na Collier’s, Ford mal conseguia controlar seu entusiasmo pelo surfe, imperialismo e supremacia branca:

Nos recentes festivais de surfe em homenagem às visitas dos navios de guerra americanos e, posteriormente, das frotas de cruzeiros, praticamente todos os prêmios oferecidos para os melhores esportistas aquáticos foram conquistadas por meninos e meninas brancos, que só recentemente dominaram a arte que por tanto tempo foi considerada possível de ser adquirida apenas pelos havaianos nativos e morenos.

No concurso de Natal, pela terceira vez, um garoto branco, agora com 14 anos de idade, ganhou a medalha dada ao surfista mais experiente; ele chegou cem metros antes de um roller monstruoso que estava sobre sua cabeça.

Os brancos estão fazendo muito no Havaí para desenvolver a arte de surfar. Jogos e façanhas jamais sonhados pelos nativos estão sendo experimentados.

Empresários de praia

Ford promoveu o surfe como uma forma de competição darwinista social e racista, enfatizando quem era o melhor, em vez de uma apreciação igualitária da alegria comunitária ou da celebração das possibilidades metafísicas de surfar nas ondas:

No Havaí, as crianças japonesas são mais numerosas do que as brancas e as nativas juntas; as chinesas são igualmente numerosas, e as portuguesas, que estão em uma classe à parte, mais do que igualam o número de crianças nascidas nos Estados Unidos no Havaí; no entanto, somente as crianças brancas dominam com sucesso os esportes havaianos.

Quando estava aprendendo a surfar, me diverti muito ao perceber que os japoneses pareciam nunca conseguir adquirir essa habilidade difícil, enquanto o pequeno garoto branco rapidamente se tornava mais hábil do que o próprio nativo. Se a tradição havaiana do surfe desempenhou um papel central na incansável promoção de Ford do Havaí como um paraíso tropical ele apresentou o “Esporte dos Reis” como totalmente colonizado e mercantilizado. Os visitantes da praia de Waikiki, inclusive Jack London, agora podiam pagar aos “Beach Boys” nativos do Havaí para que os ensinassem a surfar.

Os empresários imobiliários do sul da Califórnia aproveitaram a estratégia de Ford de usar o surfe para atrair capital. Durante suas férias nas ilhas, o magnata das ferrovias Henry Huntington viu um jovem George Freeth aproveitando as ondas em Waikiki. Ele recrutou o homem d’água hapa haole (mestiço) havaiano e irlandês para fazer demonstrações diárias de surfe no resort de Huntington em Redondo Beach. Completando a fetichização de Freeth e do surfe, os visitantes ricos podiam contratar Freeth para aulas particulares de surfe. Ele morreu na Califórnia durante a pandemia da gripe espanhola.

Com a fama do medalhista olímpico Duke Kahanamoku, a imagem de Freeth popularizou o surfe no continente americano. No entanto, as pesadas pranchas de surfe de madeira feitas à mão (que chegavam a pesar cem quilos) da época e as temperaturas frias da água da Califórnia garantiram que o surfe continuasse sendo um esporte de nicho, praticado por poucos corajosos e apenas em algumas comunidades de praia.

O boom do surfe

A popularidade do surfe explodiu na década de 1960, quando os Baby Boomers entraram na adolescência. O complexo militar-industrial dos Estados Unidos criou novas tecnologias, como a espuma de poliuretano ou poliestireno, que transformou a prática material do surfe. A espuma revestida e seladas com resina de poliéster permitiram a fabricação de pranchas de surfe mais leves, mais baratas e mais manobráveis, reduzindo significativamente as barreiras de acesso.

Motivado pelo desejo de passar mais tempo surfando nas águas geladas do norte da Califórnia, Jack O’Neill começou a fabricar e vender roupas de neoprene para surf em 1952 na garagem de sua casa em São Francisco. De repente, duas horas de surfe em Santa Cruz ou nas condições de inverno de Los Angeles não eram mais uma ameaça à vida. Na época, poucos consideraram a ironia de usar esses produtos petroquímicos incrivelmente tóxicos, muitas vezes produzidos por empresas como a Dupont e a Dow Chemical Company, para estar em contato com o oceano.

A cultura do surfe se encaixava perfeitamente no ethos geral de liberdade e rebeldia dos jovens. Muitos romantizam a imagem do surfista como o melhor dos largados. Dando as costas ao consumismo americano, os surfistas viviam em harmonia com a natureza e se recusavam a ficar presos a um emprego das nove às cinco. A atrevida série Gidget popularizou a cultura de praia do sul da Califórnia, mas foi o filme inovador de Bruce Brown de 1965, The Endless Summer, que levou essa mitologia para a América Central.

Tornou-se legal parecer um surfista, mesmo que você não soubesse qual lado da prancha encerar. Hollywood continua lucrando com a popularidade do surfe por meio das sequências de Gidget e da sitcom, bem como com a infinidade de filmes de surfe de praia do final dos anos 60. De repente, as pequenas comunidades de surfe viram o poder do capital organizado mercantilizando e vendendo sua cultura local e orgânica das praias. Figuras da contracultura e anti-heróis, como Miki Dora, de Malibu, desdenharam abertamente a popularidade em massa do surfe, já que entusiastas novatos de esportes aquáticos, muitas vezes oriundos das desprezadas comunidades dos vales do interior, invadiam suas queridas praias. Como o número de ondas surfáveis é um recurso finito, as multidões crescentes levaram a uma competição acirrada e, às vezes, violenta na água.

Em uma infame cadeia de eventos, Dora, conhecido como “Da Cat”, bateu em surfistas que “roubaram” sua onda com a prancha, fez gestos obscenos para fotógrafos de surfe, posou como se estivesse sendo crucificado em uma cruz de pranchas de surfe e entrou em uma competição apenas para expor sua bunda nua para os juízes. Como Dora mesmo disse:

Eu surfo apenas por prazer. O profissionalismo será completamente destrutivo para qualquer controle que um indivíduo tenha sobre o esporte atualmente. Os organizadores darão as ordens, colherão os lucros, enquanto o surfista faz todo o trabalho e recebe pouco. Além disso, como a aliança do surfe com os interesses decadentes das grandes empresas foi concebida apenas como um amortecedor temporário para o colapso fiscal completo, a concretização dessa parceria servirá apenas para acelerar o fim da arte. Um surfista deve pensar com cuidado antes de se vender a essas “pessoas”, já que está assinando sua própria sentença de morte pessoal.

A declaração de Da Cat foi um contra-ataque à guerra do capitalismo pela alma do surfe.

Contracultura e comércio

Muitas das táticas de Dora eram questionáveis. Embora seu flerte com símbolos nazistas tenha revelado algum racismo arraigado, devemos entendê-lo principalmente como uma raiva alimentada por testosterona e uma provocação às normas sociais burguesas. Sem descartar seus atos verdadeiramente abomináveis, devemos reconhecer que Dora odiava a mercantilização da cultura do surfe e, portanto, tentou salvá-la tornando-a não comercializável.

No entanto, até mesmo Dora estava pessoalmente envolvida na venda, atuando como dublê de surfista no primeiro filme de Gidget e conseguindo papéis em todos os principais filmes de exploração do surfe de Hollywood. Outros ícones do surfe, como Greg Noll e Hap Jacobs, aceitaram mais prontamente a tendência, posicionando-se para colher o turbilhão de varejo das crescentes participações no mercado. Horrorizados com o aumento das multidões e a comercialização de seu estilo de vida, surfistas americanos e australianos privilegiados partiram em busca de seu próprio sonho de verão sem fim – ondas perfeitas e vazias em terras estrangeiras exóticas. As comunidades costeiras do México, da América Central e do Sudeste Asiático ficaram perplexas com o fluxo de jovens brancos arriscando suas vidas em condições marítimas perigosas que os pescadores locais evitavam há gerações.

Para os verdadeiros surfistas, Morning of the Earth, de 1972, de Alby Falzon e David Elfick, foi a apoteose do surfe como rebeldia da contracultura. Filmado em locações na zona rural da Austrália, no famoso North Shore de Oahu e na e a exótica Indonésia, o filme retrata hippies bronzeados e de cabelos dourados vivendo um estilo de vida alternativo em fazendas cooperativas, explorando o vegetarianismo e fabricando suas próprias pranchas de surfe em celeiros (enquanto ignoram alegremente os possíveis impactos à saúde de seus equipamentos). Sequências de ondas impossivelmente perfeitas quebrando sob os espetaculares templos hindus de Uluwatu, em Bali, combinadas com uma poderosa trilha sonora folk-psicodélica, convenceram um número incalculável de americanos desiludidos de que viajar para surfar poderia ser um ato espiritual esclarecedor.

Esses surfistas viajavam com um orçamento limitado e exploravam a força relativa do dólar americano ou australiano em relação ao peso mexicano ou à rupia indonésia. Como grande parte da alegria vinha da descoberta de ondas longe das multidões sufocantes de Los Angeles ou Queensland, as acomodações e o transporte eram um desafio. Nessa época, os exploradores do surfe geralmente se hospedavam em casas de famílias, comiam comida local e faziam acordos com pescadores céticos para conseguir caronas até recifes e praias remotas.

Porém, uma viagem indefinida sem emprego eventualmente esgota seu dinheiro. Em Thai Stick: Surfers, Scammers, and the Untold Story of the Marijuana Trade, Peter Maguire e Mike Ritter documentam como alguns recorreram ao contrabando de maconha para financiar suas aventuras. Outros traficavam mercadorias mais lucrativas, embora mais perigosas, como a heroína do sudeste asiático e a cocaína latino-americana.

Em um momento surreal, um dos astros de The Endless Summer, Mike Hynson, fez uma participação especial no “documentário” de Jimi Hendrix, Rainbow Bridge (1971). No filme, ele inexplicavelmente mostrou como ele e outros traficantes contrabandeavam drogas por meio de compartimentos secretos dentro de suas pranchas de surfe. O filme bizarro ao mesmo tempo em que é incoerente levanta muitas questões, mas o motivo pelo qual Hynson revelaria tal técnica permanece sem resposta.

O nexo surfe/narcotráfico fez com que a imagem do surfista como rebelde parecesse ainda mais legal. No entanto, o dinheiro fácil do tráfico de drogas injetou uma dose fatal de ganância e materialismo.

Resistência no Havaí

O surfe havaiano continuou atraindo os surfistas. Com a criação do estado em 1959, o turismo entrou em um boom sem precedentes. Em uma década, um enorme boom de construções transformou Waikiki. No entanto, na década de 1970, a atração não eram as ondas relativamente suaves de Waikiki, mas o surfe de inverno muito maior, desafiador e com risco de morte no North Shore, em Sunset Beach, Banzai Pipeline e Waimea Bay. À medida que os haoles da Califórnia e da Austrália invadiam a sonolenta cidade de Haleiwa, aumentavam os aluguéis na comunidade rural e lotavam as sete milhas de litoral que abrigam algumas das ondas mais icônicas do mundo, a comunidade local ficava cada vez mais irritada e hostil.

A investida do turismo neocolonial coincidiu com um renascimento do nacionalismo havaiano. Muitos havaianos se sentiram excluídos do boom boom econômico com o surgimento de competições profissionais de surfe com cobertura nacional de televisão e grandes patrocinadores corporativos, como a vodca Smirnoff.

Em 1975, um grupo de surfistas havaianos, em sua maioria nativos, fundou o Hui He’e O Nalu, um clube para proteger o surfe do Havaí. Seus membros vestiam shorts pretos combinando com uma faixa vermelha e amarela – cores que culturalmente significavam pertencer às classes dominantes indígenas ali’i, que consideravam certos pontos de surfe como kapu, reservados apenas para eles, ou fora dos limites para os plebeus sob pena de morte. Eles se engajaram em táticas de braço forte contra os surfistas haole que consideravam desrespeitosos.

O jornalista de surfe Chas Smith discutiu como a Da Hui, como é conhecida, forçou o surfe profissional a dar aos surfistas havaianos uma fatia do bolo. O historiador Isaiah Helekunihi Walker enquadra o trabalho de Da Hui como uma forma de resistência anticolonial e um desafio à comercialização capitalista do surfe.

Fazendo a diferença

O surfe profissional teve origens bastante humildes na década de 1970. Buzzy Kerbox, um jovem haole do Havaí, lembra que quando começou a competir internacionalmente, seu primeiro patrocinador lhe deu uma camiseta e algumas barras de cera. Com o passar da década de 1980, mais dinheiro entrou.

Os surfistas profissionais ganhavam algum dinheiro com os prêmios das competições, mas sua renda real vinha dos patrocinadores de roupas. Embora a venda de equipamentos de surfe, como pranchas e acessórios, não fosse particularmente lucrativa, as marcas de roupas relacionadas ao surfe cresceram por cerca de duas décadas. Surfar é difícil, nem todo mundo consegue surfar bem, e a maioria das pessoas mora muito longe da praia para ter esse estilo de vida idealizado. Mas ter a aparência de um surfista é fácil. Qualquer pessoa pode entrar em um shopping em Honolulu, Los Angeles ou Chicago e comprar roupas de surfe. A nova “indústria do surfe” mercantilizou o que antes era uma subcultura. O verdadeiro trabalho dos surfistas profissionais era modelar roupas para grandes conglomerados de moda que tinham uma conexão cada vez mais tênue com o esporte.

Kelly Slater, um jovem da Flórida com um talento aparentemente não natural que o levou a conquistar onze títulos de campeão mundial, foi a primeira estrela do surfe. Até ficar prematuramente careca, a boa aparência do garoto bonito de Slater fez dele o modelo ideal para a indústria da moda do surfe. Empresário perspicaz, ele transformou seu impressionante recorde de competições em um papel no programa de televisão Baywatch e em uma série de oportunidades de investimento.

Slater se tornou o maior conhecedor do setor. Concentrando-se no surfe como competição e em seu sucesso financeiro pessoal, ele personificou uma nova geração de surfistas profissionais totalmente corporativizados que tinham pouco em comum com o ethos da contracultura da era Morning of the Earth.

O influxo de capital transformou as viagens de surfe. Os empresários estabeleceram acampamentos de surfe em picos isolados nos oceanos Pacífico e Índico. Inicialmente, eram operações espartanas, mas, em meados da década de 1990, destinos como Tavarua, em Fiji, podiam oferecer acomodações luxuosas, alimentação de alta qualidade e acesso exclusivo a determinados picos de surfe para aqueles dispostos a pagar milhares de dólares por uma semana de surfe.

Na Indonésia, onde antes os surfistas alugavam barcos de pesca de madeira e comiam tudo o que a tripulação conseguia pescar, os iates de luxo com ar-condicionado, televisores de tela plana e suprimentos abundantes de cerveja gelada se tornaram a norma. Hoje, quem viaja para o El Salvador do presidente de direita Nayib Bukele é recebido no aeroporto, conduzido a complexos seguros à beira-mar e protegido por homens armados com espingardas. A riqueza protege esses surfistas de terem de se preocupar com o crime nas ruas do país, a pobreza endêmica ou o histórico de apoio dos EUA aos esquadrões da morte de direita.

Tecnologia e transformação

A tecnologia atual está transformando o surfe em um ritmo vertiginoso. O resultado final pode ser um hobby sem alma, com apenas uma relação superficial com suas raízes havaianas.

Anteriormente, viajar para surfar era um empreendimento arriscado que exigia tempo e paciência, além de conhecimento local e sorte. Como as melhores ondas são geradas por tempestades imprevisíveis a milhares de quilômetros de distância, as chances de não encontrar condições perfeitas eram altas. A viagem clássica de surfe era um empreendimento prolongado, pois era preciso ter uma janela grande o suficiente para garantir o sucesso. Muitos viajantes do surfe tinham um compromisso ambíguo com suas carreiras ou buscavam trabalho sazonal em áreas como construção, hotelaria ou a pesca no Alasca. Entretanto, os avanços nas imagens de satélite e na previsão do tempo mudaram tudo. Atualmente, é possível assinar serviços que preveem a chegada de um swell e as condições do vento com até uma semana ou mais de antecedência. Surfistas suficientemente ricos podem pagar preços premium por passagens de última hora, chegando com o surfe e partindo quando a ondulação diminuir. As conexões de banda larga em vilarejos remotos da América Central e em pequenas ilhas no Oceano Índico permitem que os membros da classe profissional de gerentes mantenham suas obrigações.

Já se foram os dias do verão sem fim, uma fantasia de viagem indefinida. Agora os surfistas falam de “missões de ataque” de três ou quatro dias com itinerários cuidadosamente planejados. Com essa logística e conectividade global, as viagens de surfe de elite não são mais uma aventura angustiante no desconhecido ou um intercâmbio cultural esclarecedor. Em vez disso, ela se tornou uma experiência com curadoria, reservada com antecedência e protegida das condições de vida cotidianas do local.

A previsão de surfe de alta tecnologia também mudou a cultura do surfe no Ocidente industrial. Devido à falta de confiabilidade do oceano, os surfistas tradicionalmente precisavam morar perto da costa. Verificações diárias de surfe pela manhã eram a norma. Se houvesse ondas, o trabalho era adiado.

Muitas empreiteiras aprenderam a não contratar surfistas ou a levar em conta a sua falta de segurança. Uma vida sintonizada com os ciclos do mar dificultou que os surfistas dedicados se adaptassem às tradicionais trajetórias de carreira de colarinho branco, dando à cultura da praia uma sólida vibe de colarinho azul.

As previsões de surfe com fins lucrativos revolucionaram a capacidade da classe gerencial profissional de surfar. Saber que haverá ondas de qualidade com uma semana a dez dias de antecedência permite programar o surfe. Para os trabalhadores de colarinho branco que moram a uma hora ou mais da costa, esse foi um desenvolvimento extraordinário. Também foi um desastre para aqueles que moravam no litoral e ganhavam a vida na construção civil, no setor de serviços ou na pesca. A tecnologia de previsão permite que os surfistas sem uma conexão geográfica com as comunidades costeiras tenham acesso às melhores ondas sem os sacrifícios feitos pelos membros dessas comunidades.

Surfe contra a natureza

A distorção tecnológica do surfe é mais bem vista no advento da piscina de ondas. Em 2015, um vídeo chocou o mundo do surfe. Ele mostrava Kelly Slater surfando uma onda impossivelmente perfeita e excepcionalmente longa em um lago artificial. A mega estrela do surfe profissional revelou o projeto secreto: o Kelly Slater Wave Ranch em Lemoore, Califórnia, no vale empoeirado e sem litoral de San Joaquin, a 160 quilômetros do oceano.

O dinheiro envolvido nesse empreendimento é impressionante. Por US$ 50.000 por dia, é possível alugar o local em estilo de clube de campo. Enquanto as incorporadoras de Palm Springs, na Califórnia, a Waco, no Texas, se esforçam para abrir uma série de novos parques de ondas, os especuladores imobiliários estão elevando os valores das propriedades locais. As ondas artificiais, por mais perfeitas e sedutoras que sejam, levantam sérias questões filosóficas sobre a natureza do surfe que ressoam com as observações de Walter Benjamin em seu ensaio “A obra de arte na era da reprodução mecânica”. Será que pegar uma onda fabricada em uma fábrica pode ter algo em comum com a conexão metafísica com o mundo natural que tantos surfistas descreveram?

O que significa o fato de uma máquina poder produzir repetidamente exatamente a mesma onda? O que significa surfar em uma onda livre das imperfeições da natureza? Isso ainda é surfe? O que significa vender essas ondas como unidades específicas de uma mercadoria? Qual é o valor de mercado de uma onda?

Há sérias consequências ambientais em poder “surfar” sem um oceano saudável. A conexão do surfe com o mundo natural tem sido um canal para um relacionamento imersivo com o oceano. Essa relação levou os surfistas a se tornarem responsáveis pelos ecossistemas locais, protegendo os lugares onde vivem e se divertem.

Mas o que acontecerá se os parques de surfe se tornarem a nova viagem dos sonhos do surfe – como as remotas ilhas Mentawai da Indonésia foram na década de 1990 – e a fantasia dos sonhos das próximas gerações de surfistas estiver completamente desassociada da natureza? Os surfistas, que no passado foram manifestantes e protetores da linha de frente do ambiente oceânico, talvez não estejam mais tão empenhados na luta para proteger os oceanos de sua profanação desenfreada a serviço da exploração capitalista global.

O desenvolvimento e a operação desses parques são extremamente intensivos em energia e recursos. As taxas de consumo de energia das máquinas de ondas são segredos bem guardados e as empresas de relações públicas estão fazendo uma lavagem verde no setor, mas o número de projetos propostos atualmente em todo o mundo é de cair o queixo.

O brinquedo de Zuckerberg

Sem surpresa, o Vale do Silício pode ter afastado completamente o surfe de suas raízes. Como muitos jovens do setor de tecnologia, Mark Zuckerberg foi atraído pelo fascínio de surfar nas ondas, mas não tinha os anos de experiência necessários para se tornar um surfista competente. Mas para Para aqueles que têm pelo menos US$ 12.000 de sobra, há um atalho. Os iniciantes podem usar pranchas de surfe com bobinas elétricas, conhecidas como e-foils, para se impulsionar artificialmente nas ondas. Zuckerberg está tão apaixonado pelo estilo de vida do surfe que comprou um enorme complexo de frente para o mar em Kaua’i. Como Henry Huntington usou George Freeth, o meta-magnata paga alguns dos surfistas mais talentosos do mundo para ensiná-lo a surfar no oceano.

No dia 4 de julho do ano passado, Zuckerberg divulgou provas do que um surfista iniciante rico pode ou não comprar. O vídeo curto o mostra fazendo e-foiling enquanto segura uma grande bandeira americana. Embora ele possa estar praticando alguma forma de surfe, fica claro que estilo, autenticidade e alma não estão à venda.

Mark Zuckerberg com uma bandeira americana. (Mark Zuckerberg/Instagram)

Como se isso não fosse ruim o suficiente, Zuckerberg mesclou seu novo hobby com seus planos tecno-futuristas para todos nós. Quando ele revelou o Metaverse no outono de 2021, o vídeo promocional surrealista continha uma sequência bizarra do CEO do Meta e da estrela do surfe Kai Lenny surfando em um videogame. Assim como nos parques de ondas, o “surfe” no Metaverso traz a mesma ameaça de desconectar os aspirantes a surfistas de um oceano real. Mas essa perspectiva é ainda mais desorientadora e sinistra, pois é fácil imaginar um futuro não muito distante em que tiramos férias no Metaverse para escapar do inferno em que se transformou nosso planeta devastado pelas mudanças climáticas.

As performances de Zuckerberg, seja com seu séquito pago de bajuladores ajudá-lo a pegar ondas que ele não consegue pegar sozinho, ou em seu mundo de fantasia de realidade virtual, onde ele pode surfar tão bem quanto Kai Lenny, pode sinalizar a vitória do capitalismo sobre o que antes era aclamado como o Esporte dos Reis. A venda de experiências de surfe digitalizadas está de acordo com a observação de Cornel West sobre a “mercantilização de tudo e de todos” pelo capitalismo.

A mudança para piscinas de ondas industriais e para o mundo virtual sinaliza um possível abandono da geografia tradicional do surfe como um espaço de auto realização transcendental, autocapacitação, construção de comunidades e possível ruptura das estruturas de poder existentes nas hierarquias sociopolíticas e capitalistas. As ondas sempre agiram como um grande equalizador. Mas se o futuro do surfe estiver fora do oceano, então a guerra de 200 anos pela alma do surfe pode finalmente estar perdida.

Sobre os autores

Michael G. Vann

é professor de história na Universidade Estadual de Sacramento e autor, com Liz Clarke, de The Great Hanoi Rat Hunt: Empire, Disease, and Modernity in French Colonial Vietnam.

Trey Highton

é doutorando em literatura na UC Santa Cruz. Seus estudos de doutorado usam o surf para lidar com os contextos do Antropoceno, e ele trabalhou como guia de surf na Indonésia e na América Central.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Cultura, Esportes and História

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