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Torcida do Rayo Vallecano com bandeiras da palestina na Espanha. Foto Reprodução

Futebol e luta de classe: uma ideologia não se mancha

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Tradução
Pedro Silva

Os torcedores do Rayo Vallecano na Espanha, do St. Pauli na Alemanha, do Demirspor na Turquia e do Livorno na Itália defendem as mesmas ideias e têm um horizonte comum: derrubar o capitalismo.

Setembro de 2009, Turquia. Um estádio de futebol ilumina a noite de verão da cidade de Adana, no sul do país e a 270 km de Aleppo, na Síria. Sinalizadores vermelhos cruzam o céu. Tochas de fogo, também vermelhas, percorrem rapidamente as arquibancadas.

Os torcedores do Adana Demirspor se aglomeram para conseguirem um lugar. São cerca de vinte mil.

A fumaça deixa apenas entrever como as bandeiras entram e saem da claridade: Che Guevara, a foice e o martelo, Palestina, Cuba. A bateria ressoa. Gritos de guerra. Os jogadores do AS Livorno, da Itália, começam a correr no gramado. Está quase começando. Poucos visitantes chegaram da cidade portuária da Toscana e já se misturam com os locais. Agora os grito de guerra convergem para apenas um. Se ouve, estridente:

Una mattina mi son’ svegliato
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
Una mattina mi son’ svegliato
E ho trovato l’invasor

A música tocará durante todo o jogo, que termina em zero a zero e serve de pretexto para uma festa internacionalista. Porque pode ser um jogo da Champions League, um dos torneios internacionais que mais movimenta dinheiro no mundo. Poderá ser um jogo da Copa UEFA, o segundo torneio mais importante da Europa. Poderia ser simplesmente uma partida de futebol entre um time turco da terceira divisão e um time da Serie A do calcio italiano. Mas hoje, nesta cidade, o amistoso é entre duas equipes ligadas a partidos e tradições de esquerda. Tal como o Rayo Vallecano em Espanha ou o St. Pauli na Alemanha, os adeptos do Demirspor e do Livorno fazem campanha pelas mesmas ideias com um horizonte comum: derrubar o capitalismo.

A história dessa partida começou muito antes. Também por uma partida, mas em 21 de janeiro de 1921, no Teatro Goldoni, em Livorno, noroeste da Itália. Ali, na costa do mar Tirreno, o Partido Socialista Italiano se reuniu para realizar o seu XVII Congresso . Quatro anos haviam se passado desde a Revolução Russa. O assunto fervia. Após horas de discussões, Antonio Gramsci e Amadeo Bordiga decidiram finalmente romper com o PS e formar o Partido Comunista Italiano.

O PCI juntou-se à Internacional Comunista e começou a se expandir por todo o país. Depois vieram as proibições e perseguições de Benito Mussolini até que, no início dos anos 90, ele foi extinto nas arenas da social-democracia. Aquele partido nascido em Livorno, que buscava uma sociedade sob o controle dos trabalhadores, solidária e longe dos flertes do mercado e das distrações da indústria cultural, deixou órfãos os revolucionários italianos. O único refúgio para essas ideias permaneceu muito próximo do Teatro Goldoni de Gramsci e Bordiga. Nas arquibancadas do Estádio AS Livorno ainda ardiam as ideias revolucionárias do antigo PCI.

Fundado em 1915, o time do porto toscano – e principalmente sua torcida – rapidamente se afinou com o comunismo italiano e a partir daí passou a pressionar pelas posições mais progressistas dentro de um futebol cada vez mais preso na lógica do marketing e dos negócios. É por isso que, quase cem anos depois do seu nascimento, naquele amistoso contra o Demirspor da Turquia, o lema nas arquibancadas locais e visitantes era: “Contra o futebol moderno”.

Diferente do Livorno, o Demirspor não foi impulsionado pela fundação de um partido ou pela iniciativa de alguns dirigentes. Adana Demirspor foi fundado por metalúrgicos. Se o Livorno era a dirigência, o Demirspor era a classe. Em suas arquibancadas se repetem as mesmas bandeiras das de Livorno e ainda hoje, com o clube da primeira divisão e com figuras como Mario Ballotelli, desenhos de Che e Lênin com a camisa azul e preta podem ser encontrados nas redes sociais do clube.

Naquela noite de setembro, as arquibancadas ardiam em chamas pretas e azuis, mas principalmente vermelhas. A efervescência internacionalista chocou os jogadores das duas equipes. Um em particular; o melhor dos jogadores italianos. Sua figura, o atacante e artilheiro Cristiano Lucarelli, já havia mostrado ao público de que lado estava. Em 1997, ele foi convocado da seleção italiana sub-20 para jogar uma partida contra a Moldávia. Até então, era apenas uma promessa e não se tinha revelado que seu pai fosse militante do PC e operário do porto de Livorno. Naquele dia, Lucarelli marcou um gol que lhe custou o ostracismo na seleção por mais de 10 anos. Na verdade, a comemoração. Ele meteu a bola à esquerda do goleiro moldavo, pulou sobre as placas do muro interno e correu para as arquibancadas para comemorar com a torcida. No caminho, tirou a camisa azul para mostrar que por baixo tinha uma camiseta branca estampada com o rosto de Che Guevara. A torcida italiana comemorou mais do que no momento do gol. A euforia da torcida tomou conta do gramado. Os italianos eram maciçamente comunistas? Não. A partida foi disputada no estádio Livorno. Em uma entrevista em fevereiro de 2021, Lucarelli – já aposentado do futebol – falou sobre a famosa comemoração com o rosto de Che: “Paguei pelo Che Guevara, mas sempre serei comunista”.

Com sua maior referência fora de campo, a torcida do Livorno continuou a ostentar os símbolos da revolução e dos diferentes processos de libertação na América Latina e no Oriente Médio. Apareceram bandeiras que diziam “Adeus, Fidel” quando o comandante cubano morreu ou o mesmo quando Hugo Chávez faleceu. Bandeiras que apoiam a Palestina, os imigrantes, os partidários da independência do Curdistão; aos que passam pelo pior.

Até que chegou a eles mesmos, aos torcedores, ao clube. Empurrado por uma cascata de más administrações e péssimos resultados, o Livorno foi perfurando as zonas de rebaixamento. Uma queda livre que os deixou na Serie D, a última categoria profissional do futebol italiano. As dívidas se tornaram impagáveis. Os jogadores buscaram times com perspectivas melhores. A direção não conseguiu arcar com os custos administrativos para participar da D e o clube estava falido e sem condições de competir. Agora, com novos donos, na temporada 2021-2022 participará da Eccellenza Toscana, uma liga regional. O clube terá um novo nome, Unione Sportiva Livorno. Os torcedores continuarão cantando a mesma música quando virem seu time surgir:

Avanti popolo, bandiera rossa
Alla riscossa, alla riscossa
Avanti popolo, bandiera rossa
Alla riscossa, trionferà
Bandiera rossa la trionferà
Bandiera rossa la trionferà
Bandiera rossa la trionferà
Evviva il comunismo e la libertà

No bairro de Vallecas, liberdade e ideias também são inegociáveis, e os bukaneros – a organizada do Rayo Vallecano – expressam isso a cada jogo e, às vezes, nos treinos. Foi assim que o jogador ucraniano Roman Zozulya se sentiu quando, em 2017, teve a participação mais efêmera da história do clube. Os torcedores souberam que o novo reforço havia tirado fotos com uma bandeira vermelha e preta e um rosto: Stepan Bandera, o mais conhecido colaborador nazista ucraniano da Segunda Guerra Mundial. Logo encontraram outras fotos: com armas, cercados por paramilitares, posando com mais nazistas. O ucraniano se deparou com uma bandeira no primeiro dia de treinamento: “Vallecas não é lugar para nazistas. Presa, para você também não. Vá embora já!”, em referência a Martín Presa, empresário dono do clube e ligado à Opus Dei. A mobilização da torcida foi tão grande que Presa teve que recuar e cancelar a contratação do jogador. Os ultras exibiram sua vitória nas arquibancadas com uma faixa que marcava uma posição: “Impedir que um nazi vista la Franja”.

O clube ficou a salvo dos nazistas. Pelo menos momentaneamente. Enquanto isso, os bukaneros continuam apoiando políticas de assistência aos mais vulneráveis do bairro, organizando campanhas de arrecadação de fundos e apoiando continuamente as comunidades de imigrantes. Eles geralmente erguem suas bandeiras contra um único oponente. Porque o maior rival do Rayo Vallecano não é o Atlético de Madrid ou o Real Madrid. Em Vallecas, o clássico é contra o capital. O Oriente Médio também esteve na agenda política. Em uma ocasião, o slogan ostentado pela torcida – escrito em letras vermelhas gigantes – dizia: “Lutar é nosso destino. Com a raiva de um garoto palestino. Parem o genocídio de Israel”.

Nas arquibancadas do Rayo pode haver muitas bandeiras, muitas palavras de ordem, algumas antifascistas, outras contra o racismo, outras a favor da solidariedade. Algumas também se materializaram em ação. Em meio à crise econômica e os despejos compulsórios de 2014, o estádio Vallecas levantou uma bandeira com nome próprio e uma hashtag, #CarmenSeQueda. Tratava-se de uma idosa de 85 anos que havia sido expulsa de casa por não conseguir pagar a hipoteca. A torcida rayista se mobilizou e o técnico na época, Paco Jiménez, organizou uma entrevista coletiva para anunciar que ele e os jogadores ajudariam Carmen financeiramente e pagariam o aluguel de uma nova casa. Carmen ficou em Vallecas.

Embora os bukaneros tenham nascido em 1992, a tradição do Rayo e do movimento operário espanhol é muito mais antiga. Com a eclosão da Segunda República Espanhola, em 1931, os socialistas criaram uma liga de futebol operário, independente da oficial. Até o início da Guerra Civil em 1936, a Federación Cultural Obrera Deportiva (FCOD) agrupou e organizou um campeonato de futebol de 24 equipes. Um deles foi o Rayo Vallecano que, ainda naqueles anos, representava um município independente de Madri.

Ao mesmo tempo, do outro lado dos Alpes suíços, a dois mil quilômetros de Vallecas, uma equipa alemã naufragava nas ligas de futebol organizadas pelo nacional-socialismo. Criado por estivadores e operários do porto de Hamburgo em 1915 e sempre à margem das grandes competições, o St. Pauli ficou conhecido mundialmente no início deste século como um clube, um time e uma torcida de esquerda. Mas sua identidade foi forjada durante a década de 1980. Na Alemanha, os punks avançavam fortemente como tribos urbanas e como grupos de resistência à onda liberal na Europa. Enquanto as arquibancadas dos outros times foram invadidas por hooligans e grupos nacionalistas, o Millenrtor recebia grupos de punks, antifascistas e anarquistas.

As ruas de Sankt Pauli estavam em chamas. Grupos de jovens se organizaram para ocupar casas vazias. Muitas vezes em protesto contra a especulação e grandes empreendimentos imobiliários em Hamburgo. Muitas vezes como modo de vida, como resistência ao capitalismo. Neste bairro no sul de Hamburgo, a contracultura mais forte da Alemanha estava se formando. O movimento okupa estava nascendo e as arquibancadas do St. Pauli, a equipe do bairro, se tornaram um espaço de resistência. Não só as arquibancadas. Muitos okupas jogaram no clube e havia até jogadores que haviam participado de brigadas internacionalistas na Nicarágua sandinista. É o clube mais punk desta liga de times de esquerda e demonstra tendo uma caveira como símbolo, inspirado num famoso pirata de Hamburgo: Klaus Störtebeker, uma espécie de Robin Hood do Mar Báltico.

Ao contrário de Rayo, Livorno ou Demirspor, St. Pauli é o que melhor explora o exercício de sua ideologia. Em 2010, ele retornou à Bundesliga – a primeira divisão da Alemanha – sob a direção do empresário de teatro Corny Littmann, presidente do clube entre 2002 e 2010. Littmann foi um dos fundadores do Partido Verde e é uma referência da comunidade LGBTQIAP+. Antes de sua chegada, o clube já havia estabelecido em seus estatutos a proibição de todo tipo de discriminação racial ou religiosa. Em uma das entradas para as arquibancadas, um mural de dois homens se beijando diz: “Nur die Liebe zählt” [Só o amor importa].

Depois de passar por várias crises financeiras, os punks de Hamburgo desfrutam de uma fama internacional como o time de esquerda mais popular do mundo. Alguns lhes dizem que são uma esquerda da moda. Uma esquerda cool que, por exemplo, teve iniciativas como a criação do mel orgânico Ewaldbienenhonig que visa ajudar a recuperar a população de abelhas.

Atualmente disputam a segunda divisão do futebol profissional na Alemanha. Em sintonia com seus colegas internacionalistas, os ultras do St. Pauli também financiam iniciativas de assistência social, vestem camisetas de Che Guevara e insistem na luta contra o fascismo, a intolerância e o avanço do mercado.

E, assim como o Adana Demirspor e o AS Livorno, os alemães e os espanhóis também tiveram sua partida internacionalista. Aconteceu em 2015 e foi em Hamburgo. O Rayo Vallecano estava na turnê de pré-temporada pela Europa e se mostrou simpático à possibilidade de um amistoso com seus companheiros do St. Pauli. Tudo ocorreu com a máxima ordem e camaradagem. Foi disputado em 18 de julho. Como em todas as partidas que disputa em casa, o time local entrou sob o som de “Hells Bells”, do AC/DC. O jogo terminou 4 a 2 a favor dos alemães e alguns sinalizadores vermelhos foram acesos na arquibancada onde fica a organizada. A tribuna em frente estava vazia. Pintados de marrom e branco, os assentos formavam dois corações gigantes.

Historiadores situam a criação do futebol moderno em 1863, quando a Football Association, a primeira liga profissional do mundo, foi criada na Inglaterra. Os regulamentos, as diretrizes gerais e praticamente todas as bases foram elaboradas entre os alunos que frequentavam colégios e universidades. Ou seja, a elite londrina. O futebol, esporte de cavalheiros, entretenimento de pobres; o amusement que Adorno e Horkheimer propunham como condição necessária para o bom funcionamento do sistema produtivo. O futebol como um fenômeno global, como um fenômeno financeiro global, poderia muito bem ser lido como uma nova fase de um capitalismo em mutação.

O mercado não controla o futebol. Hoje, de certa forma, o futebol é o mercado. Num cenário em que os partidos e sindicatos tradicionais de esquerda se decompõem rapidamente, em um cenário de derrota, torcedores como os do Livorno, do Adana Demirspor, do Rayo Vallecano ou do St. Pauli, ainda têm o espírito necessário para dizer que não: ainda não é o fim da história.

Sobre os autores

Emiliano Gullo
Cierre

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Published in Análise, Esportes, Europa, Ideologia and Oriente Médio

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