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Um esquadrão da polícia faz guarda durante uma manifestação contra a nova lei de reforma da previdência em Paris, França, em 6 de junho de 2023. (Telmo Pinto / SOPA Images / LightRocket via Getty Images)

A verdadeira democracia é incompatível com o capitalismo

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Tradução
Sofia Schurig

Nas últimas duas décadas, uma sucessão de crises levou à ascensão de Estados autoritários, demonstrando claramente como o capitalismo e a democracia nunca foram compatíveis desde o início.

É cada vez mais difícil ignorar o fato de que a democracia ao redor do mundo está em declínio.

Por um lado, muitos dos Estados mais poderosos do mundo – da China à Arábia Saudita – são governados por administrações autoritárias que parecem estar ganhando cada vez mais força. Por outro lado, o respeito às normas democráticas liberais – como o direito de protesto e a independência do poder judicial – está em declínio nos governos estabelecidos. E muitos estados que pareciam estar no caminho da democracia — como a Hungria e a Turquia — estão presos em uma espécie de purgatório “democrático iliberal”.

No total, cerca de 72% da população mundial vive sob alguma forma de regime autoritário, de acordo com alguns especialistas. Os investigadores da Freedom House afirmam que cerca de 38% da população mundial vive em países que podem ser caracterizados como “não livres”. O acadêmico liberal Larry Diamond chamou o retrocesso da democracia ao redor do mundo de “recessão democrática”.

A erosão da democracia tem sido particularmente difícil de conceitualizar para os liberais. Afinal de contas, as coisas não deveriam ser assim.

A queda do Muro de Berlim deveria ter finalmente colocado um fim a todas as questões pendentes sobre a compatibilidade entre a democracia e o capitalismo. Este último iria inevitavelmente expandir-se, trazendo consigo os direitos e as liberdades que muitos no mundo rico tinham acabado de tomar como garantidos. O resto do mundo estava destinado a convergir para o modelo pioneiro do Ocidente.

Teóricos liberais e os decisores políticos apresentaram uma série de argumentos para explicar a aparente contradição entre a expansão do capitalismo e o retrocesso da democracia.

Aqueles à direita do espectro político atribuem o problema aos “inimigos da democracia” estrangeiros. Para estes pioneiros da nova Guerra Fria, Xi Jinping e Vladimir Putin – embora, curiosamente, não Mohammed bin Salman ou Viktor Orbán – são os culpados pela lavagem cerebral dos povos ocidentais amantes da democracia com propaganda autoritária.

Os centristas tendem a afirmar que a verdadeira questão são os “extremistas de ambos os lados”, argumentando que socialistas democráticos como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, que nunca chegaram sequer perto de alcançar o poder de Estado, partilham tanta culpa pelo retrocesso democrático como antigos líderes mundiais da direita populista como Boris Johnson e Donald Trump.

Todas as avaliações do problema são, obviamente, inteiramente individualistas. Muitos liberais acreditam genuinamente que o maior desafio à democracia atual são alguns”vilões” corrompendo um sistema que, de outra forma, funcionaria bem.

Estes argumentos são, obviamente, completamente absurdos. O apoio à democracia não está em declínio porque os eleitores estão sofrendo uma lavagem cerebral pela propaganda inimiga no TikTok. O apoio à democracia está em declínio porque a democracia simplesmente não está funcionando da maneira que nos disseram que funcionaria.

Em primeiro lugar, a combinação de capitalismo e democracia deveria trazer prosperidade e progresso para todas as nações que os adotassem. Por um breve período após a queda do Muro de Berlim, quando a globalização entrou em ritmo acelerado, essa parecia uma história crível.

A crise financeira pôs fim a esta ilusão coletiva no Norte Global. Os membros da geração que atingiu a maioridade durante a crise de 2008 tiveram de se adaptar à realidade de que é improvável que sejam mais prósperos do que seus pais.

Mas mesmo antes da crise financeira, a crise asiática do final da década de 1990 mostrou a muitos no mundo em desenvolvimento que a abertura dos mercados ao capital internacional poderia ser uma receita para o desastre. Alguma combinação de autoritarismo e controles de mercado parecia a resposta natural.

Em segundo lugar, o progresso trazido pela democracia e pelo capitalismo deveria gerar ainda mais democracia. Freios e contrapesos colocariam fim à corrupção. Uma população educada escolheria os líderes “certos”. E, em vez de fazer campanhas baseadas em ideologias ultrapassadas, esses líderes competiriam por votos apelando ao “eleitor mediano”, trazendo moderação a sociedades anteriormente divididas.

Em vez disso, a corrupção está em ascensão, a ideologia está de volta e as pessoas continuam escolhendo os líderes “errados”. Talvez a criação de sociedades tão estratificadas, em que a classe dominante mal consegue compreender as preocupações dos eleitores comuns, não tenha sido uma receita tão infalível para a democracia, afinal.

Alguns comentaristas um pouco mais ponderados aceitam que esta leitura incrivelmente simplista pode não captar toda a história. Em uma nova série de podcasts para o Financial Times, Martin Wolf parece genuinamente preocupado com o futuro da democracia — e aceita uma pequena parte da culpa para si e para seus colegas.

O problema, parece acreditar Wolf, é que os neoliberais, em todo o seu zelo pelo fim da história, espalharam os mercados livres longe demais e rápido demais. A terapia de choque dos anos 1990 não foi acompanhada de medidas para aliviar as tensões sociais e econômicas que vieram com ela.

O argumento faz lembrar o apresentado pelo teórico político progressista Karl Polanyi, que acreditava que os mercados livres capitalistas se espalharam rapidamente demais para que as sociedades pudessem se adaptar. Aqueles cujas vidas e ideais foram ameaçados pelo surgimento desse novo e corajoso mundo reagiriam contra a invasão da “sociedade de mercado” — muitas vezes apoiando homens fortes autoritários para fazê-lo.

Liberais progressistas como Wolf tendem a acreditar que a solução para o problema virá em alguma forma de capitalismo regulado. Frequentemente, esses comentaristas são keynesianos que defendem um retorno ao consenso social-democrata do período pós-guerra.

Mas esse tipo de nostalgia não é mais saudável do que aquela manifestada pelos fãs de Trump que anseiam por um retorno a um mundo antes da disseminação da “ideologia de gênero”. Afinal, há uma razão pela qual o consenso keynesiano se desintegrou.

Assim que o crescimento econômico desacelerou, a batalha latente entre trabalhadores e patrões, que vinha borbulhando abaixo da superfície, de repente explodiu para a principal corrente política. Sem lucros excessivos extraídos do resto do mundo para manter esse conflito sob controle, restou apenas uma escolha para a classe dominante: guerra total contra os trabalhadores.

Por esse motivo, apesar de ser absurdamente óbvio que democracias capitalistas precisam de medidas para reduzir a desigualdade enquanto enfrentam a crise climática, a visão capitalista progressista para o futuro não tem nenhuma chance de ser implementada.

Resta apenas uma conclusão a ser tirada — que o capitalismo e a democracia nunca foram realmente tão compatíveis desde o início.

Sobre os autores

escreve na Tribune Magazin e é apresentadora do podcast semanal A World to Win.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Europa, História and Política

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