Extraído do livro A Internacional da Lava Jato: imperialismo, nova direita e o combate à corrupção como farsa, de Luís Eduardo Fernandes (Autonomia Literária, 2024), cujo lançamento em São Paulo será no dia 13/07, às 17h30, no Ateliê do Bixiga, e no Rio de Janeiro, no dia 22/07, às 18h, na Livraria Da Vinci.
A segunda metade dos anos 2010 assinalou, em nosso país, a glorificação daquela que ficou conhecida como Operação Lava Jato, cuja emergência verificou-se em 2014. A operação acabou por configurar um episódio que trouxe ao proscênio da cena brasileira bacharéis-doutores que, do ponto de vista jurídico, sob condições sociopolíticas de normalidade e maturidade democráticas, não teriam o menor relevo ou destaque – talvez senão como exemplares mediocridades agressoras do idioma (quem não se recorda do juiz parcial, inculto e ignorante, travestido de justiceiro-mor, cometendo barbaridades do tipo conje e depredraram?) ou como fazedores de toscos e mentirosos powerpoints (quem não se lembra daquele apresentado pelo ajudante do justiceiro-mor?).
Bufões cuja insignificância intelectual e jurídica não os impediu de efetuar graves e profundas lesões a normas de Direito estabelecidas e a causar danos incontáveis (vários de ponderável peso econômico) à sociedade brasileira; entre outros de seus cometimentos, contam-se o seu contributo ao golpismo parlamentar que desaguou no processo de impeachment de Dilma Rousseff e a sua função suplementar de levedura na sabotagem à laicidade do Estado, conduzida por empresários que, com a túnica de “pastores” do revivalismo religioso mais irracionalista, prosseguem locupletando-se com fortunas e promovendo diligentemente um projeto político de medula teocrática.
A Operação Lava Jato, porém, foi realmente glorificada – não há nenhum exagero nesta qualificação: houve escriba que chegou a descrevê-la como “a maior investigação contra a corrupção no mundo” (!) e o justiceiro-mor foi obsequiado, entre outras tantas deferências, com a publicação de uma biografia. As redes nacionais de TV (com os seus áulicos “comentaristas” de política e economia), os grandes jornais (com os seus editoriais falaciosos e camaleônicos articulistas) e a esmagadora maioria das revistas tornaram-na objeto de louvação, potencializada pela atividade deletéria (e geralmente bem paga) das mídias eletrônicas. Nunca a sabujice da grande imprensa brasileira mostrou-se tão sem pudor. É certo que, desde o início, houve resistências: por exemplo, a atividade editorial quase única de Mino Carta e os esforços individuais de Luis Nassif e, em nichos acadêmicos, o empenho de cientistas sociais como Luiz Werneck Vianna, há pouco falecido – mas eram vozes solitárias. Por outra parte, a leniência – quando não até mesmo a favorável chancela – com que a Lava Jato foi recepcionada por altas instâncias do Judiciário envolveu-a, por um lustro, com uma aura de enganosas e falsas legalidade e legitimidade: parecia que, finalmente, aqui no Pindorama, meia dúzia de destemidos templários levavam avante e a sério o combate contra a corrupção.
Uma decada depois
Hoje, dez anos depois de iniciada a operação conduzida pela república de Curitiba (alusão à república do Galeão, grupelho golpista anti-Getúlio Vargas dos anos 1950), as máscaras e as fantasias caíram. Ninguém mais neste país, com um mínimo de informação e de decência, ignora a intencionalidade política que, por baixo do verniz “jurídico”, motivou e dirigiu a ação dos justiceiros paranaenses e seus êmulos – a sua ideologia reacionária saltou à luz com as opções político-partidárias que fizeram a partir de 2018.
A glorificação inicial esboroou-se – e se há vivandeiras (e elas existem!) da Lava Jato, agora se comportam com menos arrogância: entusiastas apaixonados de ontem discursam na hora atual com fingida moderação… As provas do atropelo e da violação de normas jurídicas, da autêntica truculência e do quantum de arbítrio acumulado na ação dos pretensos justiceiros não credibilizam minimamente os seus feitos. E, nos últimos anos, ademais das derrotas que os mesmos tribunais antes lenientes lhes estão impondo, já se disponibilizaram sólidas documentação e bibliografia que demonstram sobejamente os seus radicais vícios de origem e desenvolvimento. Enfim, a Lava Jato já começa a ter reconhecida a sua real posição na história brasileira contemporânea e, no livro A Internacional da Lava Jato: imperialismo, nova direita e o combate à corrupção como farsa, em especial nos capítulos 4 e 5 desta obra, Luís Fernandes também oferece subsídios para o seu exame objetivo.
“Muitas formas novas de corrupção emergiram na cultura ocidental – e o nascimento da ordem burguesa trouxe à tona o que caracteriza a corrupção própria da Modernidade capitalista.”
Talvez seja pertinente, antes de prosseguir na breve apresentação a este livro cujas importância e originalidade serão aludidas mais adiante, tecer, em sucintos parágrafos, uns poucos e rápidos comentários acerca da problemática da corrupção.
Deixando de lado os ingênuos e mal-intencionados que argumentam que processos de corrupção acompanham necessariamente a humanidade desde o seu surgimento (o senso-comum mais rasteiro e vulgar considera a corrupção algo próprio de uma eterna “essência humana”), é sempre preciso levar em conta não só a historicidade da corrupção como a diversidade de fenômenos que ela envolve. Recordemos que, na Grécia clássica, a crítica à sociabilidade vigente era posta à conta da corrupção (a condenação de Sócrates é, aqui, emblemática). Urge abandonar a noção da perpetuidade da corrupção e trabalhar sistematicamente com a hipótese de que a corrupção é um complexo histórico que se transformou e se transforma quantitativa e qualitativamente ao largo dos tempos.
A “corrupção moderna”
Muitas formas novas de corrupção emergiram na cultura ocidental – e o nascimento da ordem burguesa trouxe à tona o que caracteriza a corrupção própria da Modernidade capitalista: a corrupção que tem por eixo e finalidade a gratificação material-pecuniária, que avança sobre riquezas e recursos privados ou públicos e se obtém mediante os mais distintos meios e procedimentos. Esta modalidade de corrupção, a moderna, não suprime formas anteriores de comportamentos corruptos nem se torna exclusiva – pense-se como, em quadras históricas de transição social acelerada, são coetâneas, por exemplo, modalidades diferenciadas de corrupção ideológica contrapostas a posições ideológico-morais exemplares (veja-se, de um lado, Edmund Burke invectivando contra a Revolução de 1789 e, doutro, a inteireza e a verticalidade de Robespierre). E mais: é fenômeno frequente que a corrupção moderna recorra a (e se socorra de) formas que lhe são precedentes, sobretudo para ocultar o seu interesse material-pecuniário.
A corrupção de que se trata no caso da Lava Jato é, obviamente, a corrupção moderna – que, a meu juízo, nasce com a constituição e sobretudo o desenvolvimento da sociedade burguesa (não cabe discutir nestes curtos parágrafos o seu registro inegável em formações sociais que buscaram uma alternativa à sociedade burguesa). Ora, o que a análise histórica vem demonstrando é que o desenvolvimento desta sociedade tem sido, igualmente, o desenvolvimento da corrupção que lhe é peculiar – uma modalidade de corrupção que envolve tanto o âmbito do que é o espaço do privado (a “sociedade”) quanto do que é público (o Estado), operando muitas vezes articuladamente.
“Considerada a vigência da ordem burguesa, a corrupção é um componente estruturante desta sociedade – não há ordem burguesa sem a corrupção que lhe é própria.”
Não é preciso ser nenhum marxista perigoso e subversivo para constatar, por exemplo, a corrupção histórica da sociedade burguesa nos Estados Unidos do século XX (ver o clássico estudo, de E. H. Sutherland, sobre os crimes dos “colarinhos brancos”) e noutros quadrantes do mundo, associando sujeitos do espaço privado a atores especialmente políticos (acerca da sua atualidade, basta apenas examinar, na Eurásia, as figuras de Putin e Erdogan, no Oriente a da sul-coreana Park Geun-hye e, na Europa Ocidental, as recentes – deste século – peripécias das honradas famílias reais da Espanha, da Bélgica e da Holanda). Vê-se: a antiga Terra brasilis está longe de ter qualquer preeminência (e, menos ainda, do monopólio) no quadro da corrupção moderna, burguesa.
Para esta perspectiva de análise, considerada a vigência da ordem burguesa, a corrupção é um componente estruturante desta sociedade – não há ordem burguesa sem a corrupção que lhe é própria. Mas esta sociedade se constitui e se desenvolve muito contraditoriamente – é dinamizada primariamente pelas lutas de classes (sabemos, há mais de um século e meio, que a burguesia, entre outras das suas belas criações, produz os seus coveiros) e explicita tensões e conflitos cada vez mais complexos e diferenciados, que vão muito além dos imediatos interesses classistas. Porém, atente-se: a corrupção que lhe é própria, em suas expressões específicas e particulares, engendra mecanismos e dispositivos que a contrarrestam – assim como não existe sociedade burguesa sem a sua corrupção, também não existe sociedade burguesa que, a partir de certo grau de maturação e sob determinadas condições sócio-políticas, prescinda inteiramente de limites institucionais e legais a ela. Vale dizer: no evolver da sociedade burguesa, emerge a necessidade de regular a corrupção – e a efetiva punibilidade, institucional e legal, dos seus agentes, privados ou públicos, é um dos índices mais claros desta regulação.
“A ‘informação’ que a grande imprensa brasileira sistematicamente entregou a seus leitores destilou, dia a dia, a ideia segundo a qual os templários de Curitiba estavam ‘colocando os ricos na cadeia’.”
É característica histórica saliente da sociedade brasileira uma sempre reiterada e reciclada cultura da impunidade (e a prática que é a sua implicação necessária), já objeto de significativa e diferenciada literatura sociológica e antropológica. Muito frequentemente, a crítica a esse traço tão resiliente da nossa história provém de segmentos políticos de nítido posicionamento conservador e até francamente reacionário e com vieses de vulgar moralismo (tudo isto encontrável noutras latitudes). Trata-se, de fato, de um tipo de crítica tradicionalmente cara a camadas sociais pequeno-burguesas – tais camadas são muito sensíveis a ela, mas a sua incorporação político-ideológica pode levar a comportamentos diversos (do reformismo de que deu mostras o tenentismo do primeiro terço do século XX ao reacionarismo de que se beneficiou o golpe do 1º de abril de 1964).
Parece supérfluo assinalar que um tal background favoreceu a popularidade da Lava Jato; a “informação” que a grande imprensa brasileira sistematicamente entregou a seus leitores destilou, dia a dia, a ideia segundo a qual os templários de Curitiba estavam “colocando os ricos na cadeia” – notável exemplo contemporâneo de como se opera um processo de mistificação massiva (jovens interessados em pesquisas sérias de psicologia social deveriam estudar hoje, com olhos críticos, a obra, do fim dos anos 1930, do velho S. Tchakhotine, há mais de cinquenta anos traduzida por Miguel Arraes – que procurem em alfarrabistas o clássico A mistificação das massas pela propaganda política).
Imperialismo tardio
Observei, linhas acima, que em dois capítulos (o 4º e o 5º) deste livro de Luís Fernandes apresentam-se subsídios para resgatar veraz e criticamente o que foi a Lava Jato. Embora escrito por um historiador que em todos os seus textos jamais deixa escapar a historicidade das questões que enfrenta, a história daquele infausto episódio da vida brasileira não é o objeto central de A Internacional da Lava Jato: imperialismo, nova direita e combate à corrupção como farsa; aliás, já há farto material para avançar na elucidação dessa história. O centro da análise do livro demonstra, ouso dizer que exaustivamente, nos três capítulos que precedem àqueles dois que remetem à história da Lava Jato, os fundamentos e o significado econômico-político da luta contra a corrupção no marco específico do estágio atual do capitalismo contemporâneo – mais exatamente, Luís Fernandes pesquisa a fundo, com o recurso a uma documentação amplíssima e atualizada, essa luta no marco do imperialismo tardio. E o faz com um detalhamento e uma argúcia raramente encontráveis em investigações similares.
O autor está superlativamente preparado para conduzir, com êxito, a sua pesquisa. É que, além de historiador competente, Luís Fernandes é dos mais perspicazes estudiosos da tradição crítico-analítica inaugurada pelos teóricos marxistas do primeiro quartel do século XX, nomeadamente Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburgo, Vladimir Lenin e Nikolai Bukharin, ademais de autores temporalmente mais próximos de nós (como P. Baran e P. M. Sweezy, Samir Amin, James Petras, Costas Lapavitsas) e de muitos intelectuais brasileiros trabalhando e produzindo nos dias correntes. O fato é que este jovem pesquisador integra ao seu sólido conhecimento histórico um seguro domínio da teoria do imperialismo desenvolvida nos inícios do século XX à entrada do século XXI. Luís Fernandes, porém, está muito afastado da condição de um didático divulgador ou um disciplinado seguidor dos “clássicos” do marxismo: vai além destes, é original, inovador, criativo – para comprová-lo, é suficiente atentar nas ideias que expande e instrumentaliza sobre o cosmopolitismo imperialista, o imperialismo legal, a ocidentalização periférica e a institucionalidade extraterritorial.
Ponderando, a meu juízo muito corretamente, o hegemonismo dos Estados Unidos ainda no comando do imperialismo contemporâneo, Luís Fernandes circunscreve o que afirma ser o objetivo estratégico do “grande irmão do Norte”: liderar uma rede institucional e para-institucional de agências de governos, ONGs, entidades de classes e fóruns internacionais que viabilizem o seu domínio extraterritorial “legal”. Estou convencido de que a sua pesquisa, calçada em documentação probatória que não resiste a contestações, é um suporte indispensável para avançar na explicação e compreensão das atuais e dominantes formas de combate à corrupção levadas a cabo por aqueles que pretendem formalmente jogar fora a água suja do banho (isto é, a corrupção) sem realmente se desvencilhar do inatacável bebê (isto é, o capitalismo contemporâneo, no seu estágio tardo-imperialista).
Vê-se: este não é mais um livro importante, em meio aos já publicados entre nós, para lançar luz sobre a Operação Lava Jato que, em embalagem tropical, foi produto essencialmente conectado ao empenho da luta travada, em escala mundial, pelo Tio Sam para colimar o seu “objetivo estratégico”– é, decerto e muito simplesmente, um livro imprescindível.
Sobre os autores
é professor emérito da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tradutor e ensaísta, com publicações no Brasil e noutros países. É autor do livro "Karl Marx. Uma biografia" (Boitempo, 2020).