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(Reprodução Dylon)

Quero ser macetada por um som forte

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Tradução
Amauri Gonzo

Escritora e teórica trans australiana, McKenzie Wark, um dos maiores nomes no debate sobre capitalismo e tecnologia hoje, vem ao Brasil para participar da FLIPEI neste fim de semana, onde conversará com Erika Hilton. Selecionamos um trecho do seu novo livro em que descreve as possibilidades futuristas radicais do techno na cena queer.

Nascida em 1961, McKenzie Wark é uma filósofa trans de origem australiana (mas radicada nos Estados Unidos) que transita na conexão entre o analógico fim do século XX e o hiperconectado e digital século XXI. Celebrada pelas suas teorias das novas formas do Capital contemporâneo – em títulos como Um Manifesto Hacker e O Capital Está Morto (ambos lançados em português pelas editoras Funilaria e sobinfluencia) –, Wark foi incorporando novas teorias da subjetividade à sua teoria crítica já bem temperada com boas doses de marxismo heterodoxo a partir de quando inicia sua transição de gênero, em 2017.

No trecho abaixo, extraído do livro Raving (publicado em 2023, ainda sem edição em português), Wark mergulha nas memórias de uma festa para tirar dali teoria, afetividade e também um novo sentido para sua transição.

McKenzie Wark vem a São Paulo para uma grande turnê, que começa na Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI), no dia 3 de agosto (sábado) com a mesa de debate “Hackeando os corpos e o capital” (ao lado de Erika Hilton e Jonas Maria, com mediação de Eduarda Camargo) e para uma performance ao lado do DJ Lau, do coletivo Fuleragi Bucetrans. Também irá lançar nessa passagem pelo Brasil os livros Uma conversa sobre tecnologia como gênero e outras fenomenologias encarnadas (sobinfluencia, Funilaria e revista Rosa) e Filosofia para aranhas (n-1 e revista Rosa). Para saber mais sobre a programação e como participar da FLIPEI, que este ano acontece em São Paulo, clique aqui.


Ninguém sabia ao certo quem tinha organizado, mas U estava promovendo, e confiamos nela de que seria um rolê fofo.

O local ficava a 15 minutos de caminhada do meu apartamento em Bushwick. Pedi para J ir comigo. Alguns dias antes, eu disse a ela, por DM, que gostava dela, e ela disse que gostava de mim. Agora estou perguntando se ela quer me encontrar lá, na minha casa ou na dela. Sem saber a minha posição nisso.

Na noite anterior, encontrei J em outra rave. Eu estava ansiosa para vê-la. Nós tínhamos transado uma vez e trocado mensagens. E eu pensei que gostávamos uma da outra. De alguma forma, parece muito mais fácil transar com alguém pela primeira vez do que descobrir se haverá uma segunda.

Como sempre, eu quero que haja uma próxima vez. A menos que seja realmente terrível, então eu desejo que nunca tivesse acontecido. Eu tenho um problema com continuidade. Com querer que a história tenha outra temporada.

Eu falo com a J quando a encontro na rave. Estamos em um morrinho no quintal. Estou me inclinando para ela. Para me conectar, para descobrir se a intimidade ainda está lá e também porque não ouço muito bem.

Comparamos notas sobre nossos kits. Sua pequena bolsa preta sempre tem lencinhos. A minha prateada, um leque. É quando uma outra garota nos observa, se aproxima, olha para mim friamente, olha para J e os olhos se conectam. Ela chama sua atenção. Olha de volta para mim, como se dissesse: não é sua garota, é minha garota. Estou morrendo.

O que estou dizendo? J não é a garota de ninguém. Só no meu mundo de fantasia de continuidade pode haver mais alguma coisa na história dela em que eu possa estar. É absurdo, na minha idade, imaginar que pode haver muita continuidade.

Principalmente com alguém tão jovem. Jovens olham para mim como se eu fosse uma criatura alienígena.

O que acredito que sou. Eu pude viver como se houvesse todos os tipos de futuros, e agora quase não há nenhum. Eu não os culpo por não guardarem qualquer senso de continuidade para si. Por tratar a mim e aos meus como história. As vidas que eu tive que viver não fazem parte de suas paisagens de sonho em Bushwick.

Kay Gabriel: “Passando por uma mureta ou um banco longo onde muitas pessoas famosas com empregos universitários estão sentadas como se fosse um almoço no ensino fundamental e McKenzie me chama para ir até o final. ‘Kay’, ela diz, ‘venha conhecer Donna’. Mike diz: ‘Esqueça-as, elas estão na escola de beleza das cuzonas’ e Harron diz que eu posso levar o suficiente para o casamento.”

É uma expressão ao mesmo tempo adequada e inepta para usar em uma situação envolvendo três mulheres trans, mas me senti sob os auspícios de uma empata-foda. O que talvez eu mereça. Vou embora. Mais dança. Há house music em outro lugar no quintal. Meu corpo dança qualquer coisa. Dançar house é ótimo para entrar no meu corpo, se eu conseguir. É agradável quando a música conecta meu corpo aos seus momentos passados ​​de vida como um homem cis, gay.

Só que nessa situação eu senti que meu corpo era lixo podre. Só fiquei no quintal um tempinho. Lá dentro, no andar principal, Juana estava discotecando e a pista estava rolando, então parecia melhor apenas tirar toda a última insegurança neurótica de mim na maré amniótica.

Theodor Adorno: “A audição regrediu, parou no estágio infantil. Os sujeitos ouvintes não apenas perdem, junto com a liberdade de escolha e responsabilidade, a capacidade de percepção consciente da música. Eles dissociam o que ouvem, mas precisamente nessa dissociação desenvolvem certas capacidades que concordam menos com os conceitos da estética tradicional do que com os do futebol e automobilismo. Eles não são infantis, mas são infantis; seu primitivismo não é o dos subdesenvolvidos, mas o dos retardados à força.”

Depois de desgastar meu self até virar um toco nu, hora de ir para casa. Na saída, outra garota pega minha mão e a segura enquanto eu passo, como se quisesse me fazer ficar. Talvez eu devesse.

Eu tinha dado o segundo ingresso da rave para U, de alguma forma imaginando que, embora eu já tivesse pedido para J ir comigo e ela tivesse dito que sim, ela não iria. Eu esperei um pouco, até umas 21h ou algo assim, então eu dei. Mas agora ela está mandando mensagem dizendo que está vindo, então eu fui até o chat da rave no Signal para encontrar outro VIP. U me envia um link para ingressos com desconto na Resident Advisor. Ingresso garantido após alguns cliques.

J está chegando, em breve. Um pânico de escolhas diante do guarda-roupa. Está esfriando. O verão, desaparecendo. Um limite para o meme “verão da garota gostosa” de 2021. Eu mal tinha me aquecido. A rave pode estar quente como uma sauna, mas está frio lá fora e estou me sentindo relaxada. Às vezes meu corpo não regula muito bem. Ou talvez quando estou nervosa meu corpo apenas amplifica todos os sinais ruins que estão circulando, para encontrar razões para se esconder. Isso melhorou um pouco desde que fiz a transição, então estou frustrada por me sentir desleixada novamente.

Escolho uma saia curta e justa em stretch preto e uma camiseta azul-marinho justa de manga comprida, decote canoa, para mostrar as alças do sutiã preto simples por baixo. Acolchoado: esses peitos precisam de toda a ajuda que puderem. Muita consideração com calçados. O All-Star magenta? Em vez disso, calço minhas botas pretas Stuart Weitzman na altura do joelho. Quero me sentir quente e gostosa. Quero sentir que alguém pode me querer.

Quando J chega, ela traz seu sorriso vencedor. Nós nos abraçamos, mas ela vira a cabeça para que eu não possa beijá-la. O beijo tinha sido tão doce, aquela vez. A gente tinha dado um tirinho de keta, que filtra os sentidos de alta passagem, mas dá ao beijo um tom escorregadio.

Nos juntamos a Z e E. Eu tiro uma foto de nós quatro na rua antes de sairmos. Eu queria uma lembrança do momento, de todas nós juntas. Para lembrar quando começou ou quando terminou. A continuidade não está clara.

A festa é realmente fofa, como dizem por aqui. Gerador do lado de fora. Estranho que o prédio não tenha energia. Em uma ponta, o DJ e as pilhas de alto-falantes, na outra, há um bar improvisado, uma prateleira baixa de compensado contra a parede do fundo e uma porta, provavelmente para banheiros, envolta em cortinas pretas temporárias.

Pergunto a J se ela quer uma bebida. Cerveja. Mate para mim. Gosto da cafeína. Normalmente não tomo depois das 16h. Mas é uma noite de rave, manhã de rave. Levamos nossas bebidas conosco para a pista de dança. A multidão ainda é pequena, então podemos ficar onde quisermos. Com os protetores de ouvido, vou para a frente do palco. Como K, é onde eu mais gosto de estar.

Demônios das caixas, Madison Moore os chama: aqueles que tentam foder as caixas de som, sobem nelas. Eu sou uma demônia da caixa, mas para mim caixas de som são como interruptores. Como uma passiva natural, certamente eu pensaria dessa forma. Eu quero ser fodida pelo som. Não tanto por um som que você ouve, mais um som que você sente.

Sandy Stone: “Não há nada como ser massageada por um porrilhão de dB — fomos feitos para isso.”

Bem perto da caixa de som, você pode sentir o próprio ar se movendo em sua pele, te abanando. É um pequeno truque da demônia das caixas. Logo ficará terrivelmente quente na pista, mas aqui há uma pequena brisa. Uma sensação extra, um pequeno vento passando pela pele escorregadia.

Alarme de incêndio — disparado pelas máquinas de fumaça. Está em um ritmo diferente da track. Uma pequena preocupação se o Corpo de Bombeiros aparecer, trazendo os policiais na sua cola. Eu danço no ritmo do alarme por um tempo, mas parece muito alegórico.

O que torna as raves ilegais melhores que as legais, V disse uma vez, é que elas são ilegais.

Não consigo evitar, mesmo no momento, em criar uma teoria sobre o que estou fazendo. A maldição de ficar presa em seus próprios pensamentos acelerados. Aqui está a teoria daquele momento: eu quero que a situação, a situação inteira, me foda. Eu quero ser penetrada pela luz, pela névoa, pelo chão, pelas paredes, pelos corpos anônimos balançando. Eu quero ser macetada por um som forte. Ou pelo menos, esse é um modo de viver uma rave, para mim. Eu continuo encontrando novos modos e vendo os dos outros.

J se aproxima e grita no meu ouvido: “Você gosta de ficar na frente!” Não ia negar. Ela rasga um guardanapo e faz bolas de papel para usar como protetores de ouvido. “Tenho que te dar protetores de ouvido”, eu grito de volta. Faça uma nota mental sobre isso. Não quero que ela fique muito perto sem uma boa proteção sonora. Protetores de ouvido, ou como eu gosto de chamá-los, preservativos para raves. Gosto de cuidar das pessoas. Talvez eu apenas imponha minha ideia do que elas precisam. Continuidade. Estou imaginando que estaremos perto uma da outra e eu a possa presentear.

Geralmente não estou interessada em dançar com apenas uma pessoa. Você vê casais dançando em raves. Pode ser irritante, pois eles estão perdidos para os outros corpos ao redor. Não sou contra, só não estou interessada em ficar muito perto disso. O ponto ideal são pequenos grupos que se deixam misturar uns aos outros e à multidão maior ao redor.

Cranberry Thunderfunk: “Você pode sentir uma viscosidade quando você serpenteia. Uma multidão inexperiente ou bêbada será rígida, inconsciente de sua presença e difícil de navegar. Uma multidão experiente é fácil de fluir, mesmo quando densamente compactada. Escolher o lugar certo na multidão pode ser uma arte em si.”

Eu me sinto atraída pela J, e isso muda a relação do meu corpo com a dança, afasta-a de me perder, mais em direção a estar em, e para dentro, da carne. Autoginefilia é um termo amaldiçoado. Como se fosse algo ruim para uma mulher transexual estar em seu próprio corpo. Sentir a corporificação feminina como um núcleo intenso de luxúria expansiva. É ok para todos os outros sentirem isso, mas em mulheres trans isso foi proibido por muito tempo, e ainda é suspeito.

Tão quente e vaporoso. Tenho que pensar sobre calor, calor de verdade, a regulação do corpo como uma máquina de calor, um metabolismo. Calor me empurrando para uma fenda metabólica. Normalmente não sou espontânea, então, somente depois de fazer uma verificação com várias partes de mim, fazemos uma votação e decidimos: a solução para o calor é tirar a blusa e enrolar a saia. A blusa vai para o recipiente de baixo, ao lado da garrafa de mate agora vazia. Estou vestindo o sutiã preto, um rolo de saia preta e botas pretas de cano alto. E parece quente, em todos os sentidos.

Camadas de sensação, de luxúria e fadiga. Ambas são apenas feixes de sinais puxando em direções diferentes. A luxúria mantém meu corpo em si mesmo, moendo. A fadiga é ruído nessa sensação, que alguma parte mais orientada para a realização de tarefas está percorrendo através de árvores de decisão. Tome um gole. Mije. Faça uma pausa. Beije a garota.


Publicado originalmente na Resident Advisor.

Sobre os autores

é professora de Mídia e Estudos Culturais na New School for Social Research e Eugene Lang College, em Nova York. Seus escritos e projetos políticos se voltam para a análise do neoliberalismo tecnológico, além de escrever sobre os diversos movimentos situacionistas, mídia-tática e movimentos antiglobalização. Autora de livros como Um manifesto hacker (no prelo), Reverse Cowgirl (2020, MIT Press), entre outros. McKenzie também é DJ e vive amplamente a cultura da música techno e seus movimentos.

Cierre

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Published in América do Norte, América do Sul, Análise, Livros, Música and Tecnologia

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