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Marçal em motociata. Foto: Maria Isabel / O Globo

As lições que já deveríamos ter aprendido com a histórica ascensão do fascismo

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Candidato de extrema direita Pablo Marçal surge como surpresa na disputa eleitoral paulistana. Mas sua fórmula é apenas a velha roupagem da tradição política que vem desde Mussolini e foi reproduzida por Bolsonaro: uma engenharia reversa da esquerda radical contra o "status quo" - o que demanda mais radicalismo e ousadia como antídoto, não moderação.

Pablo Marçal lançou sua candidatura de última hora pelo pequeno PRTB, um partido de direita popularesca que foi liderado pelo polêmico e folcório Levy Fidélix, o “homem do aerotrem” – já falecido e substituído por dirigentes mais controversos ainda. Hoje, ele sobe em todas as pesquisas, ameaçando o que seria uma disputa entre o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL).

Ainda que pareça uma novidade, o plano de Marçal é uma roupagem ultramoderna de uma velha estratégia. Já na década de 1910, o jornalista Benito Mussolini teve uma ideia genial na Itália do pós-guerra: fazer a engenharia reversa dos partidos socialistas para criar um partido de massas de direita, podendo assim competir com a esquerda em eleições amplas – o que foi reproduzido várias vezes desde então.

Para além das muitas, prováveis justas denúncias contra Marçal, o fato é que ele virou um fenômeno nessas eleições não porque o povo “não sabe” votar, mas por repetir a fórmula de se colocar como o candidato mais radical da mudança – quando o seu real objetivo é mudar tudo para que nada mude, a máxima de O Gattopardo, clássico de Giuseppe di Lampedusa, que os fascistas repetiram, com êxito, inúmeras vezes na história.

Marçal, o candidato contra a ordem?

Ao aparecer no primeiro debate televisivo, impetuoso, agressivo e eloquente, um militante experimentado ou um intelectual progressista só poderiam notar o mau gosto, a falta de educação e o desprezo pelos oponentes. Mas não é assim que aparece para as massas: Marçal pareceu um vingador audacioso, algo irreverente e com uma enorme sede de justiça e indignação.

A análise do primeiro debate pelo instituto de pesquisas Quaest demonstrou essa percepção positiva de Marçal no primeiro debate. Isso também não deveria ser novidade para ninguém depois de Jair Bolsonaro, a forma como ocorreu sua ascensão ao poder em 2018 e, ainda, seus trágicos quatro anos no governo. Não só, a atitude de Marçal desconcertou os adversários e fez suas bases militantes parecerem elitistas e deslocadas – e esse era o plano.

“A questão é por que Guilherme Boulos, justo o único candidato paulistano com uma trajetória singular de luta por injustiças, parecia igual aos demais políticos?”

No dia seguinte, militantes se dividiram entre aqueles que defendiam “não dar palco para Marçal” – enquanto davam – e quem caia na velha arapuca de guerra cultural: afirmar uma pauta de princípios bem no meio de diversas crises só mostra que a extrema direita, na verdade, só queria gerar pânico moral em setores do eleitorado como idosos, religiosos entre outros setores vulneráveis. O velho erro de lutar no terreno e da maneira que o adversário planejou.

A demarcação que Marçal estabeleceu no primeiro debate foi no tom e na performance, o que quebra o “clima de contentes” e lhe fez parecer o candidato diferente, a voz destoante. A questão é por que Guilherme Boulos, justo o único candidato paulistano com uma trajetória singular de luta por injustiças, parecia igual aos demais políticos? Simples, pelo engessamento e uma homogeneização trazida pelo media training e os velhos esquemas padrão do marketing político.

Boulos e os frutos de 2020

Em 2020, Guilherme Boulos protagonizou uma das campanhas mais inventivas dos últimos tempos no Brasil. Enfrentando na esquerda a candidatura de Jilmar Tatto pelo PT, o que foi questionado pela própria base petista, Boulos protagonizou a campanha, chefiada pelo veterano marqueteiro de esquerda Chico Malfitani, com inovações na comunicação, diálogo despojado e um clima arejado. 

Boulos terminou o primeiro turno de 2020 à frente de Tatto, que teve menos votos do que a bancada do PT na disputa para a Câmara dos Vereadores. Era um cenário complexo, em plena pandemia, com Bolsonaro no poder, Lula libertado mas sem direitos políticos de volta, um arco de alianças modesto – e Boulos conseguiu 20% dos votos e chegou à etapa final da eleição contra Bruno Covas, o então prefeito.

“Aquela campanha também contribuiu para a virada do clima político na cidade, o que assegurou a vitória de Lula em São Paulo em 2024.”

A campanha de Boulos de 2020 gerou um enorme acúmulo de forças para o campo progressista, o que serviu de impulso para ele se eleger deputado federal em 2022 mais votado de São Paulo com mais de um milhão de votos. Aquela campanha também contribuiu para a virada do clima político na cidade, o que assegurou a vitória de Lula em São Paulo em 2024  – portanto, 2020 foi uma derrota eleitoral mas que levou a uma vitória política dois anos depois.

Os outros anos, é claro, foram duros. Bruno Covas, que seguia uma linha de centro à centro-direita moderada, faleceu do câncer contra o qual lutava há alguns anos e, em seu lugar, entrou Ricardo Nunes, um vice pouco conhecido, mas que antes foi vereador – e esteve envolto em uma nuvem de negócios no mínimo duvidosos. Nunes criou um amplo arco de apoio, mas governou sob a égide de um bolsonarismo soft.

O eleitorado paulistano quer mudanças

Protegido pela mídia corporativa, Nunes passou os últimos anos incólume, tendo o nome poupado e uma cobertura que mais parecia um gerenciamento de crises profissional. O fato é que os paulistanos não estavam felizes com o prefeito, embora durante anos, pesquisas esconderam parte dessa insatisfação, sempre na margem da nota “regular” em questionários bizantinos que não perguntavam, diretamente, sobre rejeição ou aprovação.

Raras pesquisas miravam o par rejeição e aprovação, mas estes mostravam já há meses que Nunes estava longe de ser um prefeito em uma situação medíocre. O desejo, na verdade, era de mudança. Certas decisões comunicacionais, na verdade, são fruto de opções políticas e podem levar a erros. Repetir, talvez, a fórmula que elegeu Fernando Haddad em 2012 ignora, talvez, que Boulos não é Haddad, nem estamos mais na dinâmica das redes de dez anos atrás. 

Acreditar na variável de que o clima estava morno, levou a decisões burocráticas que conduziram a campanha uma guerra de trincheira: cada um na sua, atirando com o que tem a espera de um desfecho tático – no caso de Boulos, uma hipótese plausível de que aumentando o conhecimento sobre o fato de que ele é o candidato apoiado por Lula, ele poderia bater Nunes em um segundo turno.

“O que não se esperava, e se calculou errado, é que poderia aparecer uma candidatura de extrema direita fraudando uma posição “de ruptura” para hackear o espaço político da direita, com sua linguagem e símbolos.”

A campanha de Boulos renunciou a assumir uma ofensiva na condução da imaginação e da mudança, preferindo fazer um jogo cauteloso – em um suposto clima de favoritismo. Com Bolsonaro sendo obrigado a apoiar Ricardo Nunes, ficando quieto nos bastidores para só entregar seu eleitorado sem fazer muito barulho, enquanto o atual prefeito esperava receber, discretamente, os votos bolsonaristas sem herdar, graças a isso, a rejeição de Bolsonaro

O que não se esperava, e se calculou errado, é que poderia aparecer uma candidatura de extrema direita fraudando uma posição “de ruptura” para hackear o espaço político da direita, com sua linguagem e símbolos – e que isso não avançaria sobre o bolsonarismo envergonhado de Nunes. Ainda mais se essa proposta viesse com doses cavalares de messianismo, promessas de mudança e propostas mirabolantes.

A ideia de rumar ao centro, para parecer mais crível e competitivo, nem sempre funciona, sobretudo se um adversário resolve puxar a polarização para um extremo – e consegue fazer isso funcionar. Isso não serviu nem para reduzir a rejeição, nem expandir a votação – que dependia menos adoção de um tom cordato e mais linguagem popular para, por exemplo, apresentar que Boulos é o candidato de Lula.

O que deveríamos ter aprendido com Bolsonaro?

Em 2018, entre um clima de que seria impossível Bolsonaro vencer, e logo ele encontraria “seu teto”, a campanha do PT, sem Lula, preso injustamente pouco antes, procurou adotar um tom, e um programa, com uma moderação extrema. De um modo geral, tanto a campanha de Haddad quanto a militância de esquerda variaram entre a tentativa de resposta racional às loucuras de Bolsonaro ao escândalo, passando pela denúncia.

É claro que o clima era outro. Lula estava preso e havia um pânico moral enorme, dirigido pela Lava Jato. Igualmente, Bolsonaro abusava do uso das redes sociais, com disparos em massa no Whatsapp sem nenhum controle ou intervenção da autoridade eleitoral, que não compreendia o que estava acontecendo e deixou correr o jogo. Mas isso não diminuiu sua necessidade de inventar fake news e criar um clima de pânico moral específico, com episódios como a célebre mamadeira de piroca.

A reação foi entre tratar isso como bobagem jocosa, denunciar a falta de coerência de Bolsonaro e performar a racionalidade e os bons modos, como “contraste”. O outro, era uma disputa de valores quando, precisamente, a campanha bolsonarista inventava boatos alucinados sobre “ideologia de gênero”. A esquerda foi disputar na mesma trincheira moral, fazendo uma disputa de valores com um eleitorado amedrontado.

Bolsonaro mobilizou a “mudança”, enquanto os demais candidatos eram a “continuidade” e campanha de Haddad escolheu cair nessa armadilha, em uma defesa abstrata da democracia que, aos ouvidos do eleitor da época, soava como reproduzir mais do mesmo – e contradizia o que foi a vitoriosa prática da esquerda brasileira na transição da ditadura à democracia, que era justamente denunciar a normalidade criada pelo sistema.

“A vitória de Lula poderia ter sido mais ampla, e a adoção de uma frente ampla demais, talvez, tenha diminuído o apelo à mudança – fazendo Bolsonaro parecer oposição, mesmo que ele fosse o presidente.”

É evidente que, pelo menos para militantes experientes, era fácil prever que desastre poderia ser um governo Bolsonaro. Mas não era sobre isso. Era como seu discurso simples, a performance que pregava contra o sistema, sua mobilização de símbolos e afetos, além da construção de um inimigo claro, forneciam uma válvula de escape para as massas – e reagir de forma arrogante a isso só aumentava o fosso em relação ao povo.

Parte desses erros, contudo, foram repetidos em 2022. A vitória de Lula poderia ter sido mais ampla, e a adoção de uma frente ampla demais, talvez, tenha diminuído o apelo à mudança – fazendo Bolsonaro parecer oposição, mesmo que ele fosse o presidente – e tem seu peso no governo atual, que menos que gerir a ordem deveria buscar mudá-la – e decisões de inelegibilidade de Bolsonaro tem fôlego curto.

O que fazer contra Marçal?

Marçal é sobre performance, não sobre conteúdo. Exige menos aderência e atenção, sem depender da Justiça Eleitoral, e mais uma resposta para o eleitorado, apontando claramente para mudanças reais, mobilizando e inspirando a base, abarcando a indignação popular e propondo planos simples com slogans diretos: o Bolsa Família não é um sucesso apenas pelo programa, mas pela marca.

Eleição não é um episódio de Scooby-doo ou uma série policial na qual o vilão vai ser desmascarado. E quem é o receptor da informação é o eleitorado, ele que precisa ser convencido de qualquer coisa. Levando em consideração quem se disputa e em que medida. As eleições paulistanas não mudaram muito dos anos 1980 para cá. A esquerda tem uma base sólida de 30%, mas é uma grande parcela centrista que define a eleição.

Venhamos e convenhamos, esse grande campo liberal paulistano, normalmente, tende à direita, mas vez ou outra ele pende – ou pode ser pendido – à esquerda. São setores do eleitorado local que moram em distritos no entorno do centro expandido, uma classe média baixa feita de pequenos e médios empreendedores, que estão sujeitos a campanhas de pânico moral justamente porque estão expostos às turbulências da vida na cidade.

Esse setor se inclinou e votou à esquerda em cenários de crise, como a terra arrasada pós-ditadura ou pós-malufismo – em termos municipais –, mas isso vale também para a ressaca aos oito anos de governo FHC (2002) ou ao desastre Bolsonaro (2022) no plano federal. Ele é um setor sensível à crítica política, embora pragmática e, muitas vezes, amoral em termos denuncistas. Há um precedente aqui, uma janela como naquelas ocasiões.

Sim, outros 30% do eleitorado, ou um pouco mais, tende à direita em São Paulo. Mas sozinho esse setor não decide uma eleição. Nunca decidiu. Possivelmente, não há muito o que disputar nessa fatia do eleitorado. Embora seja possível abrir canais de diálogo e evitar estardalhaços, é preciso gastar energia onde há votos realmente em disputa – não fazer declarações que busquem agradar setores que não votarão numa proposta progressista.

É preciso mapear setores e regiões em disputa real e avançar sobre elas, sem deixar de consolidar o voto em regiões que já poderiam estar mais mobilizadas – assim como é necessária uma sinalização clara de mudança para a cidade. O eleitor se moverá pelo Ele sim, não pela negativa – mas pode ser vergado pelo medo, sobretudo para o mal, o que é possível em cenários nos quais a proposta da esquerda não é de mudança.

“Em vários cenários da história, seja na Itália no começo dos anos 1920 ou na Alemanha dos anos 1920, quando a esquerda trocou um programa de mudança pela gestão da ordem, a tendência é que a extrema direita avance eleitoralmente.”

O cenário atual é bastante parecido ao de quatro anos atrás, embora o clima esteja mais à direita, a direita radical não esteja rachada – em 2020, lembremos, havia Celso Russomanno e Artur do Val rachando votos –, mas o governo atual está longe de ter a mesma força que Covas – assim como há um desgaste com a sucessão de prefeitos que se vieram na esteira da vitória de João Doria em 2016.

Em vários cenários da história, seja na Itália no começo dos anos 1920 ou na Alemanha dos anos 1920, quando a esquerda trocou um programa de mudança pela gestão, pura e simples, da ordem, a tendência é que a extrema direita avance eleitoralmente, sobretudo em momentos de crise e abalo social. Maior metrópole do país, São Paulo sintetiza muitas dessas agonias e aspirações universais.

É evidente que isso não se fará com radicalismo vazio e estridência. Mas é possível radicalizar sem perder o calor, deixando para um candidato como Boulos fazer o que ele sabe de melhor. Ternos e gravatas não lhe caem bem, e ele não pode ser apresentado como o tecnocrata que ele, felizmente, não é e nunca foi. Sob uma suposta decisão técnica, se faz uma opção política que pode não funcionar.

“Boulos é o único candidato que corresponde ao desejo de transformação em São Paulo e pode vencer performando isso – a esquerda francesa fez isso recentemente e colheu frutos.”

Eleições municipais têm sua dimensão própria no Brasil, mas o que se passa em grandes capitais tem seu peso. Guilherme Boulos tem uma oportunidade de ouro em 2024, e o Brasil precisa, pode e merece dar um passo além que nos afaste do bolsonarismo e gere um projeto para o futuro. Aderir à normalidade, como o próprio governo federal por vezes faz, na verdade ajuda o bolsonarismo.

Como a derrota vitoriosa de 2020 ensina, o que mais importa é o processo político, pois aquele evento abriu a janela para uma série de vitórias posteriores. É melhor sofrer uma boa derrota do que ter uma má vitória, muito embora o objetivo deva ser sempre vencer – mas há sempre a possibilidade infernal da má derrota, o que é o pior dos mundos, e já vimos isso ocorrer, infelizmente, há pouco tempo com Marcelo Freixo no Rio de Janeiro.

É preciso buscar vencer, mas com a mudança à frente – e renunciar a ela, sobretudo quando se trata das grandes lideranças da esquerda, tem um peso gravíssimo. Boulos é o único candidato que corresponde ao desejo de transformação em São Paulo e pode vencer performando isso – a esquerda francesa fez isso recentemente e colheu frutos. A história, camaradas, ensina – e o que ela não faz é perdoar.

Sobre os autores

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in América do Sul, Análise, DESTAQUE, História and Política

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