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Rua G. Dimitrov em Sófia, Bulgária, agosto de 1965. Fotos de arquivo / Getty

Nunca esqueça o que os fascistas fizeram

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Tradução
Gercyane Oliveira

A Bulgária se livrou do nazismo com ajuda soviética há 80 anos, em setembro de 1944. Hoje, as campanhas que equiparam o comunismo ao nazismo não têm a ver com a defesa da democracia contra a "intromissão russa", mas com a reabilitação do fascismo búlgaro e sua cumplicidade no Holocausto.

O 81º aniversário da derrota do nazismo deveria ter sido motivo de comemoração. Esse foi o pensamento do centro cultural russo em Sofia, ao anunciar uma exposição na capital búlgara intitulada “O caminho para a vitória”. Em vez disso, a iniciativa provocou uma tempestade de protestos e, dias antes da inauguração planejada para 9 de setembro, o Ministério das Relações Exteriores da Bulgária emitiu uma declaração acusando os russos de “se intrometer nos assuntos internos da Bulgária”.

Mas por que uma comemoração da derrota do nazismo deveria ser considerada uma intrusão indesejada? A resposta se deve ao aniversário específico que está sendo comemorado – os eventos de 9 de setembro de 1944, o dia em que a Frente da Pátria assumiu o governo. Reunindo uma coalizão antinazista de comunistas, camponeses, social-democratas e militares, a Frente Pátria chegou ao poder tendo como pano de fundo a chegada das tropas soviéticas. Essa data é, portanto, geralmente considerada o início do socialismo na Bulgária, abrindo caminho para a tomada do poder pelo Partido Comunista em 1947.

Todo ano, esse aniversário (conhecido como 9/9) provoca debates e censuras. Os liberais nunca perdem uma oportunidade de lamentar os acontecimentos de 1944 e o “desvio criminoso da história” que o socialismo búlgaro supostamente representava. Mas este ano, a exposição russa acrescentou uma dimensão internacional ao tradicional “debate sobre o 9 de setembro”. O problema, para muitos, foi que a derrota da Bulgária – um país aliado dos nazistas, mas soberano – foi integrada a uma celebração geral da libertação da Europa do centro-oriental na ocupação nazista.

“Como explica a socióloga Lilyana Deyanova, na ausência de um confronto político significativo após o eclipse das grandes narrativas, ‘a guerra civil da memória’ começa a agir como uma política substituta.”

O Ministério das Relações Exteriores da Bulgária reagiu com raiva a essa narrativa. Ele argumentou que, independentemente da contribuição indubitável da União Soviética para a derrota do nazismo, o Exército Vermelho não trouxe à Bulgária a liberdade, mas a opressão totalitária, o desvio da dinâmica econômica do mundo desenvolvido e assim por diante. Os russos ficaram perplexos: eles perguntaram, com razão, como alguém ousaria condenar uma exposição que eles ainda não tinham visto.

Mas parece que a explicação estava na intensidade do próprio debate. Mesmo sem um movimento forte da classe trabalhadora ou da esquerda na Bulgária, as forças da classe dominante continuam obcecadas em demonizar o comunismo. Como na moção do Parlamento Europeu sobre a equivalência de todos os “totalitarismos”, uma batalha de direção política que parece impossível no presente é travada no terreno da memória histórica, condenando ou reabilitando os demônios do passado. Diante de uma esquerda ausente, é a mensagem da direita que está vencendo.

Memória histórica

A reação do Ministério encapsula uma posição típica da direita búlgara e, na verdade, dos liberais: a de que o Exército Vermelho não foi o libertador e que o socialismo falsamente chamou de Exército Vermelho, mas que era na verdade uma força de ocupação que impôs o “antifascismo” de fora, como um falso pretexto para seu próprio controle. Eles baseiam essa afirmação no fato de que apenas alguns dias antes do 9/9, a Bulgária havia mudado de lado e declarado guerra à Alemanha nazista. Os soviéticos não se abalaram com essa súbita mudança de opinião: em 8 de setembro de 1944, o Exército Vermelho entrou na Bulgária pelo Danúbio e, no dia seguinte, a Frente da Pátria se autoproclamou o novo governo.

A proclamação coroou uma tomada bem-sucedida das principais instituições do Estado por um pequeno grupo de comunistas com uniforme militar na noite anterior, seguida por mobilizações guerrilheiras em cidades de todo o país (incluindo um levante liderado por guerrilheiros e prisioneiros políticos no porto marítimo de Varna). Com uma classe dominante enfraquecida, em caos e dividida entre o Eixo e os Aliados, e a invasão soviética garantindo o fim do regime existente, não era de surpreender que os guerrilheiros tivessem aproveitado a oportunidade para tomar o poder. De fato, o Partido Comunista, que liderava o movimento, nunca escondeu seu desejo de revolução na Bulgária.

“Em setembro de 1944, o exército soviético entrou na Bulgária sem disparar um único tiro, sem enfrentar nenhuma oposição de sua contraparte búlgara – o que dificilmente acontece em uma ‘invasão’.”

No entanto, até mesmo a legitimidade que poderia estar implícita na palavra “revolução” agora lhe é negada. Se durante a era socialista o 9/9 foi celebrado como uma revolução, depois de 1989 ele foi rebatizado como um “golpe”. Como observa o historiador Alexander Vezenkov, esse “golpe” em particular teve a característica incomum de que o poder foi imediatamente entregue a uma força civil – a Frente da Pátria. Mas negar que isso tenha sido uma “revolução” tem outro objetivo. Apesar de anos de vilipêndio, a palavra “revolução” ainda invoca a participação das massas e, portanto, implica um grau de consentimento democrático, enquanto “golpe” geralmente se refere a alguma tomada de poder ilegítima e faccional.

A direita não pode admitir que houve uma “revolução”, porque isso seria reconhecer que os acontecimento de 1944 responderam de alguma forma às aspirações da massa dos búlgaros, e não apenas dos “ocupantes” russos. Isso também está aliado a uma tendência proeminente na esfera pública liberal pós-1989 – na origem de um revisionismo histórico contínuo – que nega que tenha existido um fascismo búlgaro, contra o qual fosse necessário lutar. Essa negação da legitimidade básica do antifascismo torna mais fácil retratá-lo como uma política fraudulenta e antidemocrática imposta por uma potência imperial estrangeira.

Esse revisionismo histórico necessariamente tem pouca importância para os fatos – afinal, a Bulgária pré-1944 era tudo, menos democrática. Além de ser um aliado nazista, era uma monarquia constitucional com uma vida parlamentar fraca, interrompida por golpes, suspensões da constituição, violência paramilitar e uma ditadura real que suspendeu a vida política partidária de 1934 a 1944. Em janeiro de 1941, dois meses antes de se juntar ao Eixo, a Bulgária elaborou uma Lei para a Proteção da Nação que privou os judeus búlgaros de direitos civis e políticos e lançou um terror estatal contra eles.

Como aliada do Eixo, a Bulgária enviou todos os judeus dos territórios que ocupou na Grécia e na Macedônia para o campo de extermínio de Treblinka. Embora o governo búlgaro não fosse explicitamente nazista, ele tinha tendências fascistas evidentes e criou ou tolerou várias organizações fascistas. Se a Bulgária, de fato, evitou cair sob a chibata nazista, como a vizinha Iugoslávia ou a Grécia, o regime interno era certamente pró-fascista e forneceu motivos suficientes para que a oposição interna lutasse contra ele. De fato, uma resistência antifascista surgiu antes mesmo de a Bulgária entrar para o Eixo: ela certamente não foi apenas “importada” pelas baionetas do Exército Vermelho.

Isso nos leva a outro fato crucial que o revisionismo omite – a escala da oposição doméstica ao fascismo. Devido à natureza ilegal de suas atividades, é difícil chegar a uma estimativa definitiva do número de militantes. De acordo com a historiadora Iskra Baeva, o movimento partisan búlgaro contava com 5.000 a 9.000 pessoas; Vezenkov coloca o número na ponta mais baixa, mas mostra que esses combatentes eram auxiliados por cerca de 12.000 “ajudantes” que forneciam comida, alojamento e outros tipos de assistência aos partisans. Em conjunto, esses números são impressionantes, já que o país não estava enfrentando uma ameaça existencial sob a ocupação nazista como seus vizinhos.

De fato, apesar de seu destino sombrio hoje, a esquerda na Bulgária foi historicamente uma grande força. Vezenkov observa o paradoxo de que o chamado “governo personalista” do rei – que baniu todos os partidos políticos em 1934 – ajudou o Partido Comunista, pois enquanto a atividade dos outros partidos dependia de sua base no parlamento, que agora estava destruído, os comunistas estavam muito mais adaptados à construção de estruturas de massa clandestinas.

“O exército búlgaro participou de forma comprometida da fase final da Segunda Guerra Mundial, ajudando a expulsar os nazistas do sudeste da Europa – um fato também curiosamente negligenciado pela direita búlgara.”

No entanto, havia também outras tradições locais de esquerda, desde o Partido Agrário de Alexander Stambolijski (o primeiro verdadeiro partido de massa nos Bálcãs, que promovia um socialismo voltado para os camponeses) até o Partido Social Democrata dos Trabalhadores. Uma narrativa que vê a queda do rei apenas como o efeito da “ocupação estrangeira” deve necessariamente ignorar essas forças socialistas locais e sua oposição à guerra e ao antissemitismo. E, inadvertidamente, acaba se tornando uma apologia ao fascismo, porque pouquíssimos países europeus se libertaram do fascismo sem intervenção externa. O revisionismo anticomunista também deve ignorar o fato de que não apenas os soviéticos, mas também os britânicos e os norte-americanos, apoiaram os partisans.

Totalitarismos gêmeos?

A declaração do Ministério das Relações Exteriores também reitera outro ponto de vista comum da direita, ou seja, que em 1944 um totalitarismo substituiu outro. Qualquer comemoração da derrota do nazismo é substituída pela reclamação de que a Bulgária foi “excluída à força da Europa pela invasão soviética”.

A suposta equivalência moral entre os “totalitarismos” nazista e socialista justifica um segundo movimento, alegando que o socialismo foi o pior dos dois, pois 1) durou muito mais tempo; e 2) ao contrário do nazismo, violou o direito sagrado à propriedade privada. Esse último ponto foi defendido por políticos como Zhelyu Zhelev, o primeiro presidente búlgaro eleito democraticamente e um filósofo liberal que introduziu a noção de totalitarismo na Bulgária. É claro que os fascistas no poder violaram algumas propriedades privadas, como, por exemplo, a dos judeus, mas parece que esse foi um preço pequeno a ser pago pela adesão da Bulgária ao Eixo e pela preservação do capitalismo em geral.

Se várias declarações do Parlamento Europeu colocaram explicitamente o comunismo e o nazismo em pé de igualdade, as ações dos liberais revelam uma preferência por um “totalitarismo” em detrimento do outro. Um dos patrocinadores da recente e polêmica moção do Parlamento Europeu sobre memória histórica, o deputado búlgaro Andrey Kovatchev, chegou a convidar Dyanko Markov – membro do grupo paramilitar nazista do período entre guerras conhecido como Legiões Nacionalistas Búlgara – para o Parlamento Europeu. Markov aproveitou a onda de reabilitação dos fascistas do período entre guerras nos anos 1990: em uma ocasião solene, em homenagem às “vítimas do comunismo”, ele justificou a deportação dos judeus para Treblinka chamando-os de “população inimiga”. Ele disse essas palavras no Parlamento búlgaro, nada menos que isso.

“Com o futuro impossibilitado, os confrontos simbólicos sobre o passado se tornam o único terreno significativo para expressar diferenças políticas.”

O outro eurodeputado búlgaro que patrocinou a moção do Parlamento Europeu, Alexander Yordanov – um político da antiga oposição liberal anticomunista – insiste publicamente que nunca houve fascismo na Bulgária. Vale a pena enfatizar que esses eurodeputados são membros do Partido Popular Europeu, no poder – a respeitável “centro direita” – e não de algum partido extremista.

Além de criar as condições para essa apologética fascista, um dos principais becos sem saída do revisionismo liberal que equipara os “dois totalitarismos” é que ele torna impossível entender por que os soviéticos se deram ao trabalho de lutar contra os nazistas. Ou, de fato, por que os búlgaros lutaram ao lado do Exército Vermelho nessa causa. Em setembro de 1944, o exército soviético entrou na Bulgária sem disparar um único tiro, sem enfrentar nenhuma oposição de sua contraparte búlgara – o que dificilmente acontece em uma “invasão”. Depois disso, o exército búlgaro participou de forma comprometida da fase final da Segunda Guerra Mundial, ajudando a expulsar os nazistas do sudeste da Europa – um fato também curiosamente negligenciado pela direita búlgara.

Podemos nos perguntar o motivo pelo qual, mais de trinta anos depois de 1989, o comunismo continua sendo uma questão tão polêmica na Bulgária. A ausência de um movimento organizado da classe trabalhadora ou de um forte partido de esquerda lutando pelo poder parece torná-la irrelevante. No entanto, a obsessão da classe dominante com esse assunto persiste, seja nas iniciativas legislativas que criminalizam o comunismo ou nas constantes reclamações de que os livros escolares não estão dizendo a verdade sobre o comunismo.

Mais recentemente, o elogio ao passado comunista foi até mesmo declarado uma “ameaça à segurança nacional” por um novo think tank euro-atlântico, fundado pelo antigo “segundo homem” do partido no poder após sua expulsão do partido por escândalos de corrupção. Uma maneira de entender essa obsessão paranoica com o passado é como uma estratégia da direita para costurar sua hegemonia em desintegração e combater o cansaço crescente com o consenso neoliberal. Os búlgaros não se apressaram em abraçar o Partido Socialista ou qualquer alternativa hipotética de esquerda, mas também não estão entusiasmados com a decadência da centro direita.

Em um contexto no qual o consenso está em declínio, mas não há alternativas, o anticomunismo se torna ainda mais intenso, expressando não a força da direita, mas sua fraqueza e capacidade de mobilização em declínio. O anticomunismo disfarça o distanciamento dos eleitores de uma classe dominante ossificada, incapaz de oferecer um futuro que não seja a repetição interminável das mesmas políticas antissindicais e de austeridade em um modelo de desenvolvimento degradante baseado em baixos salários e baixos impostos.

Com o futuro impossibilitado, os confrontos simbólicos sobre o passado se tornam o único terreno significativo para expressar diferenças políticas. Como explica a socióloga Lilyana Deyanova, na ausência de um confronto político significativo após o eclipse das grandes narrativas, “a guerra civil da memória” começa a agir como uma política substituta. Mas com o anticomunismo e o antitotalitarismo liberal em marcha, o único resultado disso será o de ajudar o fascismo a se aproximar cada vez mais da sua restauração.

Sobre os autores

está cursando doutorado em sociologia na Central European University em Budapeste. Ela trabalha nas áreas de sociologia política e econômica e é membro do Collective for Social Interventions, Sofia.

Cierre

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Published in Análise, Europa, Extrema-direita, História and Militarismo

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